A geração de intelectuais negros que as políticas afirmativas ajudaram a formar

Eles ingressaram no ensino superior graças às cotas, ao Prouni e ao FIES; e agora apresentam rica produção acadêmica e cultural

FONTEPor Helena Borges, do O Globo
Escritora Ana Paula Lisboa é um dos expoentes da geração de intelectuais negros brasileiros que tiveram acesso ao ensino superior através das políticas afirmativas. Foto: Divulgação/FLUP

Uma nova geração de intelectuais negros, que vem apresentando diferentes produções acadêmicas e culturais, está no centro de debates em eventos culturais este mês. Na Feira Literária das Periferias (Flup), a mesa “Primeira pessoa” vai reunir, neste domingo, dia 11 de novembro, autores que são os primeiros de suas famílias e até mesmo de seus bairros, a entrarem para a universidade. Na livraria Blooks, o ciclo de debates “Outras Histórias do Brasil: Resistências e Reparações” vai discutir, no dia 26 de novembro, “Restituição, Ações Afirmativas e Políticas Públicas”.

A escritora Ana Paula Lisboa (uma das autoras da coletânea “Olhos de azeviche”) é um dos expoentes desse grupo que nasce das políticas afirmativas, como as cotas, o Prouni e o Fies. Ela é uma das participantes da mesa “Primeira pessoa”, na Flup. Cursando graduação em Letras em uma faculdade particular, onde ingressou via Prouni, ela foi a primeira de sua família a entrar em uma universidade. Ela se inscreveu no processo seletivo sem contar aos pais, a quem só avisou quando tinha o resultado em mãos.

— Eles achavam que eu ia terminar o ensino médio e acabou. Quando falei que tinha ganhado bolsa para a universidade, ficaram muito felizes.

Ela lembra que, quando morava no Engenho Novo, zona norte do Rio de Janeiro, e contou para sua avó que queria ser escritora, ouviu que não poderia “deixar a vida levar” e que seria necessário arrumar um emprego fixo. Foi isso que a levou ao jornalismo. Hoje, ela conta feliz que 70% de seu orçamento vem do trabalho como escritora.

Também primeira pessoa de sua família a cursar o ensino superior, Tatiana Brandão conta que não teria conseguido o diploma se não fossem as cotas. Hoje ela é consultora em desenvolvimento de liderança e, entre outras iniciativas, se destaca seu trabalho na Aasplande e na Educafro. Ela vai participar tanto da mesa na Blooks como do TEDx Pedra do Sal, que acontecerá no Museu de Arte do Rio (MAR) no dia 29. Tati, como prefere ser chamada, se formou em design em uma universidade particular que adotava a política de cotas raciais, o que a garantiu uma bolsa de 50%.

— Se não fossem as cotas, eu não conseguiria cursar. Acordava às 4h, saía de Belford Roxo às 5:40, chegava à Barra da Tijuca para ter aula às 7:30, 11:40 saía da aula, às 13h começava o turno do trabalho como atendente júnior em um shopping, saía de lá 22:20, chegava em casa meia-noite.

Sua luta para conquistar o diploma e o sucesso na carreira fizeram com que sua biografia entrasse para a exposição “Mulheres Negras Brasileiras Presença e Poder”, em 2017, em Nova Iorque.

Alunos exigentes
Derrubando o discurso de que estas políticas poderiam fazer cair o desempenho acadêmico das turmas de universitários, um estudo publicado em 2017 pela Unicamp mostrou que alunos beneficiados diretamente com essas políticas apresentaram desempenho igual aos demais no Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade).

A professora Fátima Lima, do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-Raciais da Cefet/RJ e do Programa Interdisciplinar de Pós Graduação em Linguística Aplicada da UFRJ, conta que os alunos, verdade, a desafiam cada vez mais.

— As políticas afirmativas têm tensionado as relações de saber a partir do momento em que esses estudantes chegam com vontade, com o pensamento crítico afiado, conectados com o mundo e com as redes, estimulando professores a reverem seus planos de curso.

Uma de suas alunas da pós-graduação na Cefet, Luana Arah, é também escritora. Ela é um exemplo de estudante que questiona bibliografias eurocentradas e que busca trazer novos temas e novos autores para dentro da academia. Luana lembra que, durante sua graduação, na turma de 25 pessoas apenas ela e mais duas eram negras. Agora, no mestrado, a realidade é outra entre os alunos, mas ainda há dificuldade entre professores:

— Atualmente, percebemos mudanças. No curso de Relações Étnico-raciais temos em quem nos espelhar, tanto no corpo discente quanto docente, encontramos turmas majoritariamente negras e professores que dialogam com os objetivos de pesquisa. Mas converso com colegas de outras instituições, onde muitas vezes esbarram na dificuldade de orientação sobre temática escolhida para a pesquisa: temas que nos perpassam e são pressentes na vida da população negra, sendo por isso comum a tentativa de redirecionamento da pesquisa, seja pela exigência de a bibliografia eurocêntrica, seja pela não afetação pelo do tema.

Evandro Luiz da Conceição é um dos alunos da primeira turma de cotistas na pós-graduação da Escola de Comunicação da UFRJ. Foto: Divlugação/FLUP

Primeira geração de cotistas no mestrado
Evandro Luiz da Conceição é um dos alunos da primeira turma de cotistas na pós-graduação da Escola de Comunicação da UFRJ. Formado em jornalismo, graduação que fez em uma faculdade particular com auxílio de Prouni e cota racial, este ano ele ingressou no mestrado na UFRJ. Sua pesquisa busca trazer narrativas antes marginalizadas para dentro da academia: ele estuda o debate sobre legalização da maconha no samba de Bezerra da Silva e no rap do Marcelo D2, analisando como ambos retratam, cada um à sua época, o contexto de desigualdade e violência do Brasil.

Assim como Luana, Evandro havia notado a desproporção entre fontes bibliográficas escritas por autores negros e brancos.

— Me chamou a atenção que a maioria dos teóricos que citei na monografia eram brancos. No mestrado, eu busco romper essa sistemática. Quando pensamos na construção intelectual, tendemos a pensar no que está dentro do contexto erudito, mas existe uma análise muito rica sobre a realidade brasileira nesses dois autores.

Evandro conta que sua mãe, já falecida, teve de abandonar os estudos ainda no primário para trabalhar como babá e como empregada doméstica. Para sua família, o ingresso na universidade — algo que ele só conseguiu após a implementação das cotas e do Prouni — representou mais do que um orgulho fraterno.

— Inaugurei uma nova fase da minha família, me colocou num outro lugar na sociedade. Quando mais novo, falava que queria ser jornalista e ouvia que devia parar de sonhar, que filho de pobre não fazia faculdade. Hoje eu já penso no doutorado.

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