Giovana Xavier: “Resistir é visibilizar o que fazemos todos os dias”

Convidada do Mulher com a Palavra, professora da UFRJ lança livro em Salvador e em Cachoeira no fim do mês

Por Marília Moreira, Do Jornal Correio 

Giovana Xavier- mulher negra, de cabelo cacheado, usando macacão vermelho- sentada sorrindo com a mão direita no rosto
Giovana Xavier é professora da Faculdade de Educação da UFRJ. Formada em história, tem mestrado, doutorado e pós-doutorado, por UFRJ, UFF, Unicamp e New York University. É idealizadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras. Em 2017, organizou o catálogo “Intelectuais Negras Visíveis”, que elenca 181 profissionais mulheres negras de diversas áreas em todo o Brasil (Foto: Divulgação/ Amanda Neri)

Você pode substituir mulheres como objetos de estudo por mulheres negras contando a sua própria história. Esse é o nome do livro da historiadora e professora da Faculdade de Educação da UFRJ e digital influencer Giovana Xavier, 40 anos, que se inspirou no meme da Bela Gil, aquele que brincava com as receitas nada convencionais da apresentadora do GNT, para falar de dois assuntos que lhe são caros: a invisibilização das mulheres negras quando o assunto é produção intelectual e as barreiras impostas pela linguagem acadêmica e pelo fazer científico.

Giovana, que também é influencer digital no Instagram (@PretaDotora), faz das redes sociais um laboratório. Não à toa, fez referência a um meme no título do livro, que reúne uma série de textos e artigos publicados originalmente na internet. “Ciência é um lugar para experimentos, e o Instagram pra mim é um laboratório de fazer ciência”, diz. E continua: “Hoje nosso problema não é a falta de ideias, mas a falta de registro”. Por isso, também a decisão de publicar tudo em um livro, que traz um foto dela, sorridente, na capa. “Também tem esse impacto, de uma mulher negra, sorrindo, dizendo que você pode. Por mais que você não compre o livro, gera essa curiosidade”, avalia.

Idealizadora da campanha que em 2016 exigiu autoras negras na Festa Literária de Paraty —a edição daquele ano não teve nenhuma—, a historiadora lançou seu livro de estreia no evento, em julho deste ano. Agora, em setembro, chega à Bahia, onde faz o lançamento em Cachoeira, no dia 25, e em Salvador, no dia 27. Antes, no dia 23, é uma das convidadas do projeto Mulher com a Palavra, junto com Liniker e Leandra Leal. No encontro, elas discutem Arte, Pensamento e Resistência.

Em conversa com o CORREIO, Giovana falou sobre como utiliza as redes sociais para democratizar a informação, defendeu a “escrevivência acadêmica” como um fazer científico e defendeu que “resistir é visibilizar o que a gente vem fazendo”.

Você é uma acadêmica, e também uma influenciadora digital. Como se percebe nesses dois lugares? São mesmo tão distintos quanto parecem?

O fato de ser professora universitária, figura pública, influenciadora mostra um projeto de democratizar a linguagem acadêmica e o sentido de universidade. Eu sou fundamentalmente uma professora universitária, oriento, coordeno projetos, sou uma funcionária pública, que foi entendendo pela própria trajetória, pela família, pelo envolvimento com movimentos sociais, que era possível criar a partir disso um sentido de professora universitária que dialogue com quem está dentro, e com quem está fora da universidade – essa minoria, que é maioria negra fora. Fui e tenho conduzindo minha carreira para criar ferramentas científicas que fossem ligadas às experiências de ser negro, especialmente de ser mulher negra no Brasil. Meu trabalho de influenciadora digital tem muito a ver com esse cruzamento entre experiências acadêmicas e saberes de fora. Escrevo textos a partir da minha experiência, faço uma escrevivência acadêmica – uma releitura do conceito da Conceição Evaristo.

A consciência de sou parte dos 0,4% de mulheres pretas com doutorado ocupando um cargo de professora universitária reforça minha consciência de mulher negra.

É essa escrevivência acadêmica que te move, não é?

Sim, penso isso para revisitar o nosso lugar de mulher negra na academia. Como é que sendo consagradas como objetos de estudo, a gente ainda ocupa o lugar da subrepresentação quando o assunto é o protagonismo da elaboração dessas mesmas narrativas? Faço uma sincronia entre primeira e terceira pessoa porque o que eu, Giovana, vivo e escrevo tem ressonância na maioria das mulheres negras, quando compartilhado. A nós é comum a dificuldade de ter trabalho reconhecido como valoroso, de sermos vistas como intelectuais.

Falando nessa escrita a partir da vivência, narrada em primeira pessoa, muitos textos seus partem de reflexões geradas no cotidiano, como na relação com a vestimenta, com as trabalhadoras terceirizadas da universidade, a partir de uma conversa entre mulheres em uma fila para ir no banheiro em uma festa…

Esses são conteúdos que repercutem no meu trabalho formal, que é o de como posicionar mulheres negras como intelectuais ou intérpretes do Brasil, independente dos títulos acadêmicos. Quais as nossas histórias familiares? O que há de documento preservado? Quais são as comidas que preparamos em nossas festas? Como se dá a relação entre mães que preparam suas filhas para serem as primeiras mulheres da família a entrar na universidade? Como essas histórias não são reconhecidas como histórias legítimas, minha ideia é tornar isso autorizado porque é desse maneira que a gente faz a nossa ciência. As redes sociais são muito interessantes porque me fazem compreender esse lugar único que eu ocupo: eu sou famosa, porque sou acadêmica. Consegui quebrar duas barreiras: uma mulher negra influenciadora com trabalho reconhecido por fazer ciência. Geralmente, a gente fica famosa pela dança, pelo programa na TV, pelo comercial que bombou. Não que sejam experiências menos importantes, mas para mim é uma experiência muito forte estar construindo isso na academia.

Nomear sua conta nas redes sociais como @pretadotora tem a ver com isso?

Sim. O @pretadotora é um lugar pra repensar umlugar que a gente não costuma pensar para si. Eu pergunto muito nas minhas turmas, que tem alunos e alunas de vinte e poucos anos, se eles planejam a vida. Numa turma de 40, ouço três dizerem que sim. Temos essas dificuldade mesmo, de nos projetarmos nesses lugares, mas ao mesmo tempo há todo um planejamento das famílias desses mesmos alunos e alunas, e deles mesmos, para ingressar e permanecer na universidade. A gente não planeja da forma tradicional, não faz planilhas, então não é reconhecido porque não é feito desse modo. Só que olhando para trás tem a ver com planejamento. As narrativas que contam nossas histórias como extraordinárias é que fazem pensar que tudo foi ao acaso, a esmo, quando na verdade tudo isso faz parte de um planejamento, não só nosso, mas de nosso ancestrais.

Falando nisso, você planejou ter esse alcance com o Instagram?

Não foi um plano. Hoje eu tenho 25 mil seguidores, mas não fico ligada nisso, não ganho dinheiro com isso. Para mim, o Instagram é uma plataforma de produção de conteúdo e de democratização dessa informação. Tudo começou com um blog, em 2014. Lá, minha questão, o primeiro texto que escrevi foi “O dia em que Rui Barbosa sorriu (ou chorou?)”, em que eu contava como foi estar em um evento para discutir história da escravidão, em que só tinha uma pesquisadora negra – a Wlamyra Albuquerque, daí da Bahia. Sempre me incomodou essa história de brancos contando nossa história. Achava que podia ir além, e narrar nossas histórias com autonomia. A segunda coisa que sempre me incomodou foi a linguagem. Qual a dificuldade de escrever uma dissertação que tanto eu quanto minha vó possam ler? Quem consegue escrever em uma linguagem erudita, pode se esforçar um pouco para escrever mais popular. Foi em 2016, que assumi o Instagram de forma mais direta, quando fiz a carta aberta à Flip, pensando o evento como o arraiá da branquidade. Assim, o @pretadotora foi ganhando forma. Vi que era um espaço público que deveria ser ocupado como um espaço político de discussão e informação. Tudo isso é muito intuitivo, e é por isso que é difícil de cruzar isso com o trabalho acadêmico, porque a academia por mais liberdade que eu tenha, tem muitos engessamentos. Ciência é um lugar para experimentos, e o Instagram pra mim é um laboratório de fazer ciência. Lá vejo que é importante discutir alguns temas, como o autocuidado com as mulheres negras, como a gente pensa isso com a história desigual do país.

Autocuidado é um dos temas recorrentes de suas postagens. Sobre o que mais você costuma falar?

Eu fui vendo que eu tinha uma agenda de trabalho como influenciadora digital, que impacta muito no meu trabalho na UFRJ: mercado editorial, ioga, importância do candomblé para produção do conhecimento científico. Fui entendendo isso, porque toda vez que você é entrevistada, toda vez que você participa de uma mesa, você é obrigada a sistematizar para responder. Os dois lugares, de influenciadora e professora, se retroalimentam. Tudo vai se somando. Minha questão hoje não é restringir, é ampliar. As teses, os livros, são tão importantes para a construção do meu pensamento e elaboração das minhas aulas quanto a discussão em uma mesa de café, quanto uma conversa em uma fila, quanto algo que vejo no Instagram.

E porque a decisão de publicar um livro com muitos dos textos que você tinha publicado originalmente na internet?

O livro vem de tudo que você está perguntando. Primeiro, porque o livro é um produto fundamental dentro da cultura acadêmica. Não existe carreira acadêmica sem livro, em área nenhuma. Hoje eu vejo meu trabalho como uma curadoria acadêmica do pensamento de mulheres negras. Hoje nosso problema não é a falta de ideias, mas a falta de registro. As livrarias são uma forma de democratização do conhecimento. Também tem o impacto da capa: uma mulher negra, sorrindo, dizendo que você pode. Por mais que você não compre o livro, gera essa curiosidade, tem gente que compra por conta disso. Sem falar na representatividade. No livro, tem textos publicados no Medium, no @pretadotora, no Nexo, no Conversa de Historiadoras…E tem textos inéditos que escrevi para ele. Como foram textos escritos em épocas distintas, eu me dei conta que ali estava o método que eu construí: reunião de pontos de vista de uma mulher negra, reinterpretando a história do Brasil. A gente não vê essa produção como interpretação legítima. Seguir os posts aleatoriamente é um efeito, ler na sequência gera outros afetamentos. Além disso, acho que a existência do livro tem muito a ver com o direito de restituir humanidade negada a mulheres negras. Agora eu estou muito nessa fase de jogar luz no que funciona. Não precisa sempre se narrar a partir do projeto genocida do Estado, isso já sabemos. Eu priorizo mesmo: postar fotos ao ar livre, sorrindo, com roupas que eu uso no dia a dia.

E qual a expectativa para o encontro com Liniker e Leandra Leal no Mulher com a Palavra, no próximo dia 23?

A primeira coisa é aprender a controlar e a curtir a surpresa e a alegria. Nossa, gente, é muito doido! Tenho 25 mil seguidores, mas não consigo mensurar quem está me seguindo, como o que eu estou dizendo ali está sendo recebido. Achei surpreendente a formação do trio. Uma surpresa positiva! Acho interessante a atuação de Leandra, e por mais que não acompanhe o lado global, gosto da militância política, das causas que defende. No caso da Liniker, eu sou super fã, é uma cantora que aparece muito nas minhas aulas pelas minhas alunas, porque por mais que não pareça há uma diferença geracional entre nós. Liniker aparece como esse lugar de representação da mulher negra, seja através das suas letras, da performance, do não-binarismo. Ao reunir todas nós, o evento chama em causa vários aspectos da intersecicionalidade: raça, gênero, TV, academia e música. Como é resistir em cada um desses espaços sob o ponto de vista dessas mulheres que partem de diferentes lugares? Essa é uma coisa que eu gostaria de ter pensado, não pensei, mas curti que pensaram e que me chamaram [risos]. Quando eu sou convidada pra isso é uma evidência e uma autorização de quanto meu trabalho é importante. E acredite: é mais importante que receber uma parecer favorável para publicação de artigo. É engraçado porque quando faço essas atividades cria um movimento de trabalho que fortalece o que faço dentro da UFRJ. Um lugar raro, porque a academia não costuma ter esse trânsito.

Você recebeu com surpresa esse convite?

A gente tem mania de dizer que tudo é uma surpresa, e uma coisa que me fizeram pensar é que tudo isso é coerente com o caminho que eu tenho trilhado. E é isso, não quero dizer que nunca imaginei, porque não é verdade. O que acontece quando a gente narra desse modo é que gera um incômodo, soa arrogante. Acho que estou onde deveria estar, e isso cria um desconforto, porque não é o que as pessoas querem ouvir. Para o evento, estou preparando meu lugar de escuta. Tenho muito a ouvir de todo mundo. Como é que é fazer resistência dentro da academia? Como sair do confronto direto, do pé na porta? Já operei muito desse jeito, mas tenho revisto, porque pode ser um tiro no pé. Como a gente repensa isso? Estou mais a fim de entender o curso do rio, a malemolência. Estar no Mulher com a Palavra é a escrita de uma nova história. Sem falar que é um respiro, uma oxigênio, nesses tempos obscuros.

É um lugar muito importante na minha carreira, uma das universidades mais representativas do que construímos nesses 25 anos, mas que é uma construção ancestral – Giovana Xavier sobre a UFRB, em Cacchoeira, onde ela lança livro no próximo dia 25

Capa do livro de estreia de Giovana Xavier (Foto: Reprodução/ Malê)
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