‘Gosto de pensar que eu, mulher preta, sou a cara da UFRB’

Reitora fala dos desafios de administrar uma universidade formada majoritariamente por alunos negros

FONTEA Tarde, por Divo Araújo
Georgina Gonçalves, reitora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia - Foto: Divulgação

Demorou quatro anos para a comunidade da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia ver seu desejo reconhecido. No início deste mês, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva nomeou a professora doutora Georgina Gonçalves dos Santos como reitora da instituição. Barrada pelo então presidente Jair Bolsonaro, ela será agora primeira mulher a assumir o cargo na UFRB.

Nesta entrevista exclusiva ao A TARDE, a professora Gina se mostra esperançosa e satisfeita pela autonomia da universidade ter sido finalmente respeitada, mas também fala dos desafios que tem pela frente. E não são poucos: com 86% dos estudantes com renda mensal de até um e meio salário-mínimo e 82% que se declaram negros, a UFRB tem a missão de seguir sendo protagonista nas ações afirmativas e nas políticas de assistência estudantil.

Quatro anos depois de ter sido boicotada pelo governo anterior, o presidente Lula finalmente nomeou a senhora como reitora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Qual o sentimento que fica depois de todo esse processo?

O sentimento de hoje é de muita alegria, contentamento e esperança. É muito bom do ponto de vista pessoal, mas é muito bom também do ponto de vista comunitário. A comunidade da UFRB tinha muita vontade de ter a sua autonomia respeitada. Há quatro anos, a comunidade se comportou resistindo a esse processo. Não ter sido nomeada foi para toda comunidade acadêmica uma grande  frustração, que se sentiu desrespeitada na sua vontade. Mas nada como o tempo. Depois desse momento de resistência, nós estamos muito esperançosos, buscando unidade no sentido de nos fortalecermos para responder aos desafios que a UFRB tem.

A senhora é a primeira mulher negra à frente da Reitoria da UFRB. Quando a senhora teve seu nome barrado publicou uma carta aberta na qual questionava as motivações e perguntou se era racismo, homofobia, e misoginia. Essas são questões muito presentes ainda na sociedade brasileira?

Não tenho dúvida que as marcas que trago no meu corpo, na minha biografia, são questões que, certamente se não as principais, contribuíram para minha não-nomeação naquela época. Entretanto, como disse, não se trata apenas de uma questão de natureza individual. Não se trata apenas de eu não ter sido nomeada. Racismo, misoginia, homofobia são questões que precisam ser tratadas pelo Estado, pela sociedade brasileira, garantindo direitos a esses setores da população, tais quais o acesso ao ensino superior, ao poder, além de implantar medidas de combate à violência que se abate a esses setores da população. O combate a toda e qualquer forma de discriminação é uma questão emblemática para a sociedade. O Estado brasileiro tem uma dívida que precisa ser superada através da ampliação de direitos sociais a esses segmentos da população.

A nomeação da senhora agora para este cargo pode ser interpretada como uma vitória para esses segmentos de nossa sociedade?

A presença de mulheres no espaço de poder é sempre significativa para uma sociedade que quer aprofundar princípios e valores democráticos. Portanto, penso que esse lugar na Universidade Federal do Recôncavo, esse lugar nas universidades de um modo geral, nos espaços de política, nos espaços decisórios, sempre é fundamental para construção de uma sociedade que se queira mais justa e democrática. Portanto, penso que sim.

A UFRB é conhecida por ser a universidade com maior contingente de professores, servidores e estudantes negros do país. O que explica essa característica? Isso exige um olhar diferenciado de quem está à frente da universidade?

Somos uma universidade com 18 anos de  existência. E nascemos tendo como princípio as ações afirmativas. Nós estamos no Recôncavo e nascemos num momento importante de política de expansão do ensino superior. Todos esses elementos sustentam a UFRB. Todos esses elementos, essas dimensões que você colocou, sobretudo essa questão étnica, diz o quanto essa universidade joga um papel importante na garantia e consolidação do ensino superior nesse país.

Esse papel da UFRB também fica evidente quando se olha para o perfil de renda familiar dos alunos?

Passados dez anos de ações afirmativas nas instituições federais de ensino superior como um todo, mas em especial aqui no UFRB, nós temos um percentual de quase 87% de estudantes com renda mensal de até um e meio salário-mínimo. Quase 82% de nossos estudantes se declaram negros. Esse é um perfil que, de novo, traz uma marca de distinção importante para a UFRB. Eu sou uma mulher preta de 60 anos. Quando estava na universidade apenas 1% das pessoas negras estavam no ensino superior. Portanto, essa é uma diferença importante. Quando você fala em simbologia com a minha candidatura, com a minha nomeação, eu gosto de pensar assim que eu tenho a cara da UFRB. Eu cheguei aqui não por políticas afirmativas, infelizmente. Cheguei aqui ainda num momento onde éramos minoria da população estudantil nas universidades, nós pessoas negras. Mas hoje estou numa universidade, e não digo isso  satisfeita, achando que a gente já cumpriu todas as etapas. As ações afirmativas têm ainda uma agenda a cumprir. Mas essa nova conformação de perfil populacional dos estudantes revela uma necessidade de avançar nas políticas e assuntos estudantis. Nós somos a universidade que têm 86% dos estudantes com renda de um e meio salário-mínimo, mas nós temos também muitos trabalhadores, muitas mulheres. Para você ter uma ideia, 57% do nosso corpo discente é formado por mulheres. Agora, o Estado brasileiro tem uma demanda, uma agenda que precisa ser pautada que é de aprofundamento de acesso, de permanência e sucesso no ensino superior através das ações afirmativas e das políticas de assistência estudantil. Nós temos uma tarefa a cumprir. A gente nasce sob a égide das ações afirmativas, e tendo essa pauta como importante para garantia de acesso ao ensino superior, mas sobretudo como estratégia de desenvolvimento e de construção de uma sociedade que se organize, se constitua e se consolide de um modo diferente. As ações afirmativas, a expansão do ensino superior devem ser encaradas como estratégia de desenvolvimento dessa nação.

A senhora falou agora das políticas afirmativas e em junho agora a gente viu a Suprema Corte dos Estados Unidos anunciar que as faculdades não poderiam mais levar a raça em consideração como um fator expresso nas admissões. Teme ver um movimento assim acontecer no Brasil?

Eu tenho uma impressão que a população negra representada nos movimentos sociais no Brasil tem muita clareza da importância das políticas e ações afirmativas.  E aí gente está falando de universidade, mas a gente podia falar com corte transversal em outros setores. Da importância dessa política no sentido de fazer com que as pessoas negras, a sociedade brasileira possa se ver representada por pessoas negras em diversos espaços. Não sou uma estudiosa deste assunto, mas penso que o que aconteceu na Suprema Corte é passível de acontecer no Brasil, mas será debatido, disputado pelos movimentos sociais organizados, inclusive pelas universidades. A suprema corte no Brasil também já se posicionou há alguns anos atrás sobre a constitucionalidade das cotas. Creio que não há nesse momento uma situação que nos faça pensar isso, ainda que a gente tenha essa como uma questão de disputa na sociedade. O racismo é uma questão em disputa na sociedade brasileira, uma questão a ser debatida por todos nós,

Ampliando um pouco a conversa, a senhora observou na aula magna da UFRB de 2019 que o Brasil foi o último lugar das Américas a ter uma universidade. O que isso diz sobre o processo de construção do ensino superior e do desenvolvimento nacional?

O Brasil de fato é o último país das Américas a constituir uma universidade. Tinha ensino superior, mas não tinha universidade. No Recôncavo, por exemplo, existe numa ata de vereança em Santo Amaro a reivindicação de criação de universidades no Brasil. O ensino superior brasileiro era visto até o início do século 21 como um espaço das elites. Equivocadamente como um espaço das elites. Eu não sou socióloga, mas acho que é possível a gente arriscar que a elite brasileira  nunca viu a educação como espaço estratégico para consolidação do  poder. No ano 2000, com a política de expansão do ensino superior, esse paradigma é colocado à prova. Naquele ano, com a ascensão da agenda das ações afirmativas, luta de muito tempo de movimentos sociais notadamente do movimento negro, esse paradigma é colocado em prova. Os resultados da expansão do ensino superior, o impacto das políticas das ações afirmativas está sendo sistematizado. Estou aqui lembrando, por exemplo, que no caso da Bahia, demorou quase 60 anos para uma segunda universidade federal existir. E a tarefa do ensino superior, do conhecimento científico, tecnológico, a formação de profissionais de ponta é uma tarefa estratégica para toda sociedade que se quer desenvolvida. É preciso expandir o ensino superior – hoje, a gente tem menos de 30% de pessoas que acessam o ensino superior. A gente não pode nem falar no Brasil de um sistema massificado. Então, as universidades, sobretudo as federais, que contribuem de maneira tão efetiva para construção de conhecimento, para  formação de profissionais qualificados e críticos, para preservação de conhecimento, têm uma contribuição também no sentido de mostrar que ensino superior precisa ser compreendido como política de Estado, estratégia de Estado para o desenvolvimento nacional.

Nos últimos anos, os recursos federais direcionados à UFRB, assim como para outras universidades federais, sofreram contingenciamentos e cortes. Hoje, a universidade tem recursos suficientes para manutenção de ações de ensino, pesquisa e extensão?

Eu falei de esperança e acho que a gente pode ter materialidade na esperança na disposição do atual governo de acolher a vontade da comunidade universitária e respeitar a sua autonomia. Temos um governo que enfrenta dificuldades de origem fiscal, mas que tem buscado atender do ponto de vista orçamentário as universidades. O ministro (de Educação) Camilo Santana no dia 17 último, junto com o ministro  Rui Costa e o governador Jerônimo Rodrigues, estavam presentes na reinauguração de um pavilhão de aulas aqui na UFRB, e fez questão de declarar a sua disposição de retomar os compromissos que outros governos  tinham conosco e não foram cumpridos. Compromissos relacionados às condições de infraestrutura fundamentais depois desses tempos que as universidades federais enfrentaram de 2015 e 2016 para cá. Por outro lado, em relação a investimentos e orçamentos, estamos muito longe de ter algo que responda às nossas necessidades. Mas é verdade que a gente tem um relacionamento hoje diferenciado,  um olhar mais sensível sobre a importância das instituições tais  quais a UFRB.

UFRB foi criada dentro de um contexto de interiorização do ensino superior no país. Após  quase 18 anos de fundação da universidade, quais são os reflexos nos municípios que possuem campus e da região do Recôncavo como um todo?

Nós estamos em sete cidades, com seis campi. Para você ter uma ideia, nós temos um contingente de 13 mil estudantes. Estamos presentes em três territórios – no Recôncavo, Portal do Sertão, Vale do Jiquiriçá -, com 71 cursos de graduação e 40 cursos de pós-graduação. A grande maioria dos nossos estudantes é baiana. Por volta de 93% dos nossos estudantes são baianos. Quase 80% dos nossos estudantes são do interior do estado – 34% no Recôncavo, algo em torno de vinte e poucos por cento dos outros territórios, do Vale do Jiquiriçá e do Portal do Sertão. E aí estou falando de Amargosa e Feira de Santana, especificamente.  E mais uns 20% em outras cidades da Bahia. Ou seja, essa presença do interior é uma marca da UFRB. Em sendo uma instituição com esta envergadura, com esse porte nas cidades onde estamos, consequentemente nossa presença repercute socialmente, mas também economicamente. É importante, também, pensar na nossa missão institucional. Somos uma instituição socialmente referenciada. Somos uma instituição que produz, reproduz, preserva, conhece, reconhece a gente do lugar. Gosto muito de pensar no interior, mas gosto muito de pensar no conceito de lugar. Aí estou fazendo uma referência ao mestre Nilton Santos. Neste lugar assertivo. Eu estava aqui lembrando que nós temos muitas tarefas na área de pesquisa, extensão, ações chamativas, graduação. Mas gosto muito de pensar que a nossa primeira doutora foi Dona Dalva do samba. Que tem muito a nos ensinar pela sua biografia, pela sofisticação da sua cultura, daquilo que ela produz, daquilo que a presença dela manifesta.  Então é importante pensar nisso.

Professora, para concluir, quais são os principais desafios e prioridades para a UFRB nos próximos anos?

É verdade que nós vivemos um tempo de esperança. Nós olhamos para frente, mas tivemos um passado recente muito difícil. Tivemos uma crise social, uma crise política, uma crise sanitária que afetam sobremaneira a vida e o perfil desses estudantes que aqui estão. Portanto, nós temos a tarefa de fazer com que essa universidade seja uma universidade potente.  Que a gente possa garantir políticas de assistência estudantil, políticas de ações afirmativas. Que a gente possa aprofundar políticas na área cultural, políticas de extensão, políticas de ensino. Nós temos uma grande tarefa nesse momento de ter uma universidade cheia, plena, revigorada e focada na missão que tem pela frente.

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