“Gota d´Água, para a minha tristeza, é totalmente atual”, diz o dramaturgo Jé Oliveira

FONTEKátia Mello

Na tarde do domingo 31, uma plateia se apertava no auditório do Itaú Cultural, em São Paulo, para ouvir atentamente o diretor de teatro e ator Jé Oliveira e a cantora e atriz Juçara Marçal, protagonistas do espetáculo Gota d’Água {Preta}. Durante duas horas ineterruptas, na sessão chamada Encontro com o Espectador, promovida pela instituição, a versão negra da peça, escrita por Chico Buarque e Paulo Pontes há quatro décadas, ganhou novas dimensões.

Como conta nessa entrevista à coluna Geledés no debate, Jé de Oliveira afirma que essa releitura da tragédia grega é “uma analogia necessária ao trazer com aprofundamento a questão dos negros para a Gota d´Água (Preta).” No papel da protagonista Joana, o dramaturgo traz a voz cristalina e retumbante de Juçara Marçal. Só que desta vez, Joana é traída por uma mulher mais jovem e mais clara. “A traição é racial”, explica o diretor. A nova dramaturgia também leva para o palco os expoentes da música urbana negra, promovendo diálogos musicais entre a obra de Chico Buarque e dos Racionais MC´s.

Leia abaixo a entrevista com o dramaturgo sobre a peça que volta em cartaz no dia 10 de maio, desta vez no Auditório do Ibirapuera, em São Paulo.

Gota dÁgua Preta
Gota dÁgua Preta / foto Evandro Macedo

Geledés – Como surgiu a ideia de fazer a Gota d’Água (Preta), que já teve uma versão escrita no Brasil em 1975 por Chico Buarque e Paulo Pontes?

Eu estava pensando sobre a situação do país e tentando entender como chegamos a esse estado de extrema direita, com valores completamente neoliberais. Queria compreender como o povo brasileiro hoje se situa neste contexto. Fui reler alguns clássicos e encontrei Gota d´Água (do Chico) e não para o meu espanto, mas para a minha tristeza, a peça é totalmente atual dentro da análise social do país.

Gota dÁgua Preta_foto Evandro Macedo4

Geledés – Gota d´Água, a famosa tragédia grega debate a discrepância social, a ética e a falácia utópica da meritocracia. Em que medida essas temáticas refletem o Brasil contemporâneo?  E de que forma esses temas impactam na comunidade negra?

Na versão original, a temática racial não está presente. Eu que fiz essa analogia ao perceber que havia questões relacionadas à população preta. Quem sofre o impacto maior de juros abusivos, de endividamento e de abandono social é a população preta. Portanto, para mim foi uma analogia necessária ao trazer com aprofundamento a questão dos negros para a Gota d´Água – uma peça que já havia sido apresentada anteriormente. De 1975 para cá, o capitalismo transmutou-se para pior e de forma ampla, infelizmente, do ponto de vista econômico e social. Então a peça diz muito sobre esse avanço neoliberal e esse capitalismo cada vez mais selvagem, descriterioso e seletivo, que a gente vive.

Geledés – A versão dramatúrgica de Chico Buarque tem como pano de fundo as dificuldades vividas por moradores de um conjunto habitacional no Rio de Janeiro. Quatro décadas depois, a capital fluminense vive uma situação dramática de violência urbana, com aumento exponencial do genocídio de jovens negros – um fenômeno que recrudesce em todo país. A sua peça resvala nessa questão? De que maneira?

Sim, a minha peça não só resvala nessa questão, como também propõe uma reflexão do ponto de vista simbólico dos por quês de algumas dessas situações acontecerem no Brasil. O genocídio da população preta, – como uma consequência de um discurso e de um posicionamento -, está representado na figura do Creonte. Aquele tipo de discurso, aquele tipo de pensamento e aquele tipo de ação levam, em última instância, ao extermínio da população negra, tanto simbolicamente como fisicamente. É o pensamento presente nas polícias militares, na maioria dos nossos governos, e ele está sendo disseminado e legitimado. Portanto, sim, é possível chegar-se a este tipo de análise.

“Quem sofre o impacto maior de juros abusivos, de endividamento e de abandono social é a população preta. Portanto, para mim foi uma analogia necessária ao trazer com aprofundamento a questão dos negros para a Gota d´Água”

Geledés – Quais foram os elementos brasileiros introduzidos no clássico grego, desde a coreografia, música, etc, que ajudaram a transportar à realidade da comunidade negra?

Os elementos estão presentes em nossos corpos e na maneira com que nos apresentamos em cena, com pessoas pretas, pobres, ex-favelados. Está também nas escolhas estéticas musicais. Nos arranjos das canções, fazemos o Chico Buarque dialogar com os Racionais MC´s, com funk carioca, numa demonstração da potência da música preta de hoje. Escolhemos o samba e o rap justamente por serem músicas genuinamente pretas, de gente favelada. Também está muito presente a religiosidade afro-brasileira, a umbanda, tanto na entidade quanto no discurso e no reforço simbólico que oferece à personagem central, a Joana, a possibilidade de resistência, em uma representação muito bonita dessa matriz afro-brasileira.

A peça tem um enfoque coletivo, da importância do povo.  No caso da traição, é uma traição de raça. A Joana é abandonada e trocada por uma mulher mais clara e mais jovem. Essa é uma releitura nossa por tratar dessas questões, em legítima defesa.

Geledés – Como se deu a escolha da atriz Juçara Marçal para ser a protagonista da peça?

Eu já vinha analisando a perfomance da Juçara (atriz, cantora e professora fluminense) no (grupo) Metá Metá e me chamou muito atenção como ela se relaciona com a palavra cantada, sua postura cênica e voz. Encantei-me com tudo isso na Juçara. Ela também já conhecia o meu trabalho e sendo assim, não dava para ser outra pessoa. Depois da cantora Elza Soares, ela é hoje a voz negra feminina mais importante no país.

“Depois da cantora Elza Soares, ela é hoje a voz negra feminina mais importante no país.”

Geledés – Quais foram suas referências para se chegar a essa versão de Gota d´Água?

Li a tese da historiadora mineira Miriam Hermeto, Olha a gota que falta: um evento no campo artístico-intelectual brasileiro, que faz a análise comparativa entre o texto de Chico Buarque e o original Gota d´Água. . Li ainda o artigo do professor Homero Vizeu, Um pote até aqui de mágoa, O narrador, de Walter Benjamin, e O pequeno Organon para o teatro, de Bertolt Brecht. Eu sou quase um sociólogo, pois estou estudando na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e todo o meu arcabouço teórico vem de estudos marxista e racial. Isso sem contar na nossa própria vivência de homens e mulheres negras no Brasil.

Gota dÁgua Preta_foto Evandro Macedo1

Geledés – Que papel o teatro exerce nos dias atuais?

O teatro tem um papel hoje como sempre teve na história, desde o seu surgimento: é uma amostra de como coletivamente nos debruçamos sobre a condição humana para tentar algum tipo de encontro. Às vezes esse encontro é emocional; às vezes traz alívio, no caso de uma comédia, e às vezes traz reflexões. É muito potente.

Geledés – O que achou do debate com o público?

Fiquei feliz porque o auditório lotou. Foram duas horas de intensas discussões. A peça alcançou o público e as reflexões a que se propôs fazer, encontrando aliados e aliadas.

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