Governo de SP reconhece que roça tradicional quilombola mantém a floresta em pé

Reestruturação de órgãos ambientais paulistas, porém, torna incerta a emissão de licenças para que comunidades planejem seus plantios com segurança

Do Socioambiental

Imagem de pessoas trabalhando na mata
Direto do ISA

Depois de anos de tentativas de sensibilização e da criação da campanha #TáNaHoradaRoça, uma resolução publicada pela Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente do Estado de São Paulo trouxe avanços para a situação crítica dos quilombolas do Vale do Ribeira (SP), impedidos de plantar pelo governo estadual, que atrasa a autorização para abertura de suas roças tradicionais.

Publicada em dezembro de 2018, pouco depois da entrega das mais de 7,5 mil assinaturas da campanha ao governo do Estado, a resolução nº 189 (leia a íntegra aqui) do órgão passou a tratar a roça dos quilombolas como Manejo Agroflorestal Sustentável. E aumentou o tempo de licença individual de abertura de roças de dois para cinco anos.

A partir de agora, para o governo paulista, a abertura de uma roça tradicional quilombola deixa de ser considerada desmatamento e torna-se um manejo positivo da mata, que mantém a floresta em pé, como atestado pelo Sistema Agrícola Tradicional Quilombola, reconhecido como patrimônio do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

Veja abaixo como são feitas as roças tradicionais quilombolas.

Isso não quer dizer, porém, que de agora em diante os quilombolas estão isentos de pedir autorização para cortar a mata e fazer o plantio. Segundo Raquel Pasinato, coordenadora do programa Vale do Ribeira do Instituto Socioambiental (ISA), continua necessário um amplo trabalho de assistência técnica às comunidades para viabilizar as autorizações das áreas no prazo correto dos plantios.

Qual o futuro da política ambiental paulista?

A Rede de ONGs da Mata Atlântica e o Coletivo Mais Florestas PRA São Paulo publicaram uma carta em que mostravam “enormes preocupações” com a “lentidão apresentada até o momento pelo Governo [de São Paulo] para tratar as diretrizes mínimas que irão orientar o trabalho dos órgãos estaduais na área ambiental.”

“[A lentidão] dificulta a transparência necessária para o posicionamento dos diversos atores da sociedade civil sobre os rumos que estão sendo definidos para políticas públicas ambientais chaves tanto para o Estado como para o país, entre estas aquelas relacionadas a florestas, áreas protegidas e mudanças climáticas”, diz o texto. Leia a carta na íntegra.

O decreto 64.132, publicado dia 12 de março deste ano pelo governador de São Paulo, João Dória (PSDB), ratificou os temores das entidades. A extinção da Secretaria do Meio Ambiente e a criação de uma Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente, em que obras públicas e licenciamentos ambientais ficam nas mãos de um único secretário, geram incertezas sobre o futuro da política ambiental paulista.

Ao mesmo tempo, a Coordenadoria de Biodiversidade e Recursos Naturais, órgão que coordenou as discussões sobre a resolução nº 189, foi absorvida pela recém-criada Coordenadoria de Desenvolvimento Rural Sustentável, vinculada à Secretaria de Agricultura e Abastecimento. Restam, assim, dúvidas sobre quem será responsável pela implementação da resolução referente às roças tradicionais, bem como outras pautas relacionadas à biodiversidade no Estado de São Paulo.

“Mesmo que a resolução 189 entenda a roça de coivara como manejo, para poder abrir uma área nova de vegetação com fins de roça será preciso que as áreas sejam identificadas geograficamente, que seu tamanho seja adequado à legislação e que a vegetação seja caracterizada”, explica.

Por outro lado, afirma Pasinato, a resolução traz como possibilidade a criação, a médio e longo prazo, de acordos voluntários entre o governo paulista e as comunidades. “Como estes acordos serão construídos e se vão funcionar ainda é cedo para afirmar, mas a possibilidade existe e precisa ser aproveitada”, ressalta.

O aumento no tempo das licenças, de dois para cinco anos, trouxe um respiro diante do penoso trâmite burocrático para um quilombola poder plantar no Vale do Ribeira. Hoje, boa parte das licenças atrasa a ponto dos quilombolas perderem o tempo de plantio. Há casos em que os documentos atrasaram por dois anos.

Roças continuam com tamanho e formato definidos pelo Estado

A resolução 189 trouxe avanços, mas muitas das propostas das comunidades quilombolas não foram atendidas.

Elas pediram um prazo máximo de quatro meses para obter as autorizações de abertura de roça, mas não há garantias de que isso vá acontecer. Elas esperavam uma área de roça de um alqueire, mas o limite de um hectare foi mantido. E elas queriam que as áreas das roças fossem marcadas com um único ponto georreferenciado, mas a proposta de polígono foi mantida.

Em suma, as autorizações de abertura de roça tradicional ainda podem atrasar. Caso não atrasem, as roças dos quilombolas continuarão a ser são marcadas no mapa por técnicos do governos em polígonos de um hectare. Para as comunidades, não faz sentido que uma roça deva ter o formato de um quadrado, um retângulo ou um losango.

“Do mato entende quem mora nele. Nós é que sabemos onde se planta arroz, feijão, milho. Eles fazem as leis lá, mas nós sabemos como funciona aqui”, disse Hermes Modesto Pereira, do Quilombo Morro Seco. “A gente ainda tem preocupação com as vistorias, porque a roça ainda não é no lugar que a gente quer”, disse Vandir Rodrigues da Silva, do Quilombo Ivaporunduva.

Para acompanhamento da resolução, o texto prevê a criação de um Grupo de Trabalho com a participação de representantes do governo de São Paulo, da sociedade civil e dos povos e comunidades tradicionais. No entanto, ainda não há informações sobre o processo de escolha desses representantes e sobre quando esse Grupo de Trabalho será implementado.

Comunidades comemoram visibilidade

Lançada em agosto pelas comunidades quilombolas do Vale do Ribeira (SP), a campanha #TáNaHoradaRoça alcançou, em apenas três meses, mais de 7,5 mil assinaturas com o objetivo de pressionar o governo de São Paulo a autorizar, no tempo certo, a supressão de vegetação para abertura das roças tradicionais das comunidades.

No dia 13 de fevereiro, os resultados do alcance da campanha foram apresentados às lideranças das comunidades reunidas no Quilombo São Pedro, que responderam com exemplos de como a visibilidade mudou suas rotinas.

Eles participaram da Virada Sustentável no Museu Afro-brasileiro e de uma peça de teatro com a atriz Ana Flávia Cavalcanti no Sesc Ipiranga, ambos em São Paulo, e receberam apoio de artistas e ativistas do movimento negro, como o rapper Rincon Sapiência e a filósofa Sueli Carneiro.

“Ficamos felizes em ver que muita gente de Iporanga, no Vale do Ribeira, assinou a petição e que recebemos mensagens de gente de fora do país”, relatou Vanessa de França, do Quilombo São Pedro.

“É importante que as pessoas conheçam o tempo das coisas, o tempo da roça”, disse Gilberto das Neves Motta, um dos coordenadores da Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira (Cooperquivale). “Isso ajuda no resgate do modo de fazer roça tradicional e a valorizar o conhecimento dos mais velhos.”

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