Governo Lula terá até 10 chances de reduzir desigualdade racial no Judiciário

Criado em 1891, Supremo teve só 3 ministros negros; situação reflete defasagem histórica

FONTEPor Priscila Camazano e Géssica Brandino, da Folha de S. Paulo
Ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) durante evento de posse de Rosa Weber como a nova presidente da corte (Foto: Fellipe Sampaio - 13.set.22/STF)

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) enfrenta pressão para ajudar a reduzir a desigualdade racial histórica na cúpula do Judiciário. Ao longo do atual mandato, ele terá a possibilidade fazer até dez indicações para as principais cortes do país.

Criado em 1891, o STF (Supremo Tribunal Federal) teve apenas três ministros negros: Pedro Lessa, Hermenegildo de Barros e Joaquim Barbosa. No STJ (Superior Tribunal de Justiça), formado por 33 magistrados, Benedito Gonçalves é o único ministro negro da história da corte, em 33 anos. Nenhuma mulher negra foi ministra até agora.

No Supremo, duas vagas serão abertas em 2023: a de Ricardo Lewandowski, em maio, e da atual presidente da corte, Rosa Weber, em outubro. Ambos completarão 75 anos, idade da aposentadoria compulsória.

Lula, porém, já admitiu a possibilidade de indicação de seu advogado, Cristiano Zanin, homem e branco, para uma vaga no STF —embora enfrente questionamentos de que poderia ferir princípio de impessoalidade e pressão dentro e fora do governo para a escolha de uma magistrada negra.

No STJ, o ministro Jorge Mussi se aposentou de forma antecipada, em janeiro, abrindo uma segunda vaga para a corte além da deixada por Felix Fischer, em agosto do ano passado.

Os ministros Laurita Vaz, Assusete Magalhães, Antônio Saldanha Palheiro e Og Fernandes atingirão a idade limite para aposentadoria nos próximos quatro anos. Há também a possibilidade de os ministros Paulo de Tarso Sanseverino e Villas Bôas Cueva pedirem a aposentadoria antecipada, como fez Mussi.

Na corte, os ministros são escolhidos e nomeados pelo presidente da República, a partir de lista tríplice feita pelo STJ.

O presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB São Paulo, o advogado e doutor em direito Irapuã Santana, afirma que é preciso cobrar o Executivo e o Legislativo sobre o perfil racial dos indicados, para que a representatividade seja considerada.

“Temos na história do Supremo menos de 1% de ministros negros. Precisamos parar, olhar e fazer com que essas instituições sejam inclusivas. Fazer com que os governantes atentem para essa responsabilidade”, diz ele.

Em 2014, ele conta que era o único assessor negro na corte, no gabinete do ministro Luiz Fux. De 2016 a 2018, passou pela mesma situação ao assessorar o ministro no TSE.

Irapuã cita nomes de magistrados negros que podem ser escolhidos pelo presidente.

Entre as mulheres, a professora da USP Eunice Prudente, a promotora de Justiça do Ministério Público da Bahia Lívia Vaz e a procuradora federal Chiara Ramos. Entre os homens, o ministro Benedito Gonçalves e o desembargador do TJ-RJ Paulo Rangel.

O fato de o Poder Judiciário ser composto, na maioria, por homens brancos, é um entrave na aplicação das leis, segundo o ativista e advogado Ewerton Carvalho. “É um perfil que não conhece a realidade do brasileiro médio”, diz.

Essa falta de representatividade interfere nos processos, já que o juiz, quando analisa um caso, primeiro decide e depois procura o fundamento legal, afirma ele. Portanto, as decisões são baseadas na subjetividade.

“A falta de pessoas que compõem a grande massa brasileira dentro desses espaços faz com que as nossas leis, apesar de boas, sejam mal aplicadas”, diz o advogado.

O professor de direito da UFBA (Universidade Federal da Bahia) Samuel Vida cita como exemplo desse distanciamento entre um Judiciário branco e a realidade brasileira uma decisão de 2013, no Rio de Janeiro, na qual o magistrado declarou que o candomblé não era religião.

De acordo Carvalho, há um viés inconsciente que enxerga preto e pobre como passível de cometer crime. “O Judiciário pesa a mão da caneta da sentença ao julgar pessoas negras. Uma das consequências é o encarceramento em massa dessa população.”

Dados do Depen (Departamento Penitenciário Nacional), levantados de janeiro a junho deste ano, mostram que a população carcerária é composta por 67,81% de negros (51,02% pardos e 16,79% pretos).

Segundo Samuel Vida, decisões judiciais ao longo das últimas décadas mostram a negação do problema do racismo entre magistrados. Ele diz que esse debate só começou no Judiciário em 2014, com a criação das cotas raciais para o ingresso nas carreiras jurídicas.

Entre os empecilhos para o acesso à profissão estão a falta de apoio financeiro, a falta de tempo para estudar e o alto custo do concurso para a magistratura.

Para Vida, o modelo de seleção para cargo de juiz também é uma barreira para os negros.

No recrutamento, os critérios raciais estão pressupostos, embora não de forma explícita, diz. “O processo é organizado de forma tão seletiva que é um tipo de concurso de acesso exclusivo da elite”, afirma o professor.

O tempo médio necessário de preparação é de cinco anos de estudos exclusivos, segundo o professor. “Ou seja, é para alguém que pode ser bancado por este período. É quase impossível para a comunidade negra”, diz.

Segundo especialistas, as políticas de cotas nos concursos de carreiras do Judiciário são uma iniciativa importante, mas insuficientes para aumentar a representatividade.

Para Chiara Ramos, procuradora federal e cofundadora do coletivo Abayomi Juristas Negras, as cotas raciais podem até facilitar o acesso de pessoas negras em concursos intermediários (técnicos e analistas), mas não para o de juiz.

Nos concursos para o cargo, as cotas são aplicadas após a aprovação nas provas e não como reserva de vaga desde o início da seleção.

“No concurso do Tribunal Regional Federal do Nordeste, os negros foram menos de 5% das pessoas que se inscreveram. Nenhum deles foi aprovado na primeira fase. Tivemos vagas reservadas para pessoas negras que não foram ocupadas”, diz.

De acordo com a procuradora, o caso exemplifica dois fatores que impedem os negros de acessarem a magistratura.

Primeiro, a falta de representatividade faz com que essa parcela da população não veja esses espaços como possíveis de serem ocupados. Por consequência, há um baixo índice de inscrições nos concursos.

Segundo, as notas de corte da primeira fase, que eliminam os negros já no início do processo. “A forma como as provas são elaboradas privilegia quem tem acesso a uma determinada informação que a população negra em geral não tem.”

Um estudo do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) sugere que houve aumento de negros no Poder Judiciário nos últimos anos. O percentual de negros que ingressaram na carreira antes de 2013 era de 12%. Entre 2016 e 2018, subiu para 20%. Já nos anos de 2019 e 2020, passou a 21%.

As metodologias dos censos já realizados são diferentes, portanto a comparação não é perfeita. A porcentagem também pode estar inflada, pois nem todos os magistrados do país responderam à pesquisa.

Irapuã Santana afirma que o perfil dos magistrados negros é desconhecido. “Não sabemos quem são os negros e onde eles estão. Sabemos onde não estão: no STF, no STJ e no TSE. Tem o ministro Benedito Gonçalves, mas é um em 33 no STJ, um em sete do TSE.”

Em nota, o CNJ afirmou que tem atuado para aumentar a presença de pessoas negras em seus quadros. Entre as ações está a política de cotas raciais, aplicada para ingresso na magistratura e nos serviços públicos.

O conselho lançou no dia 25 de novembro o Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial, com o intuito de “fomentar a representatividade racial, desarticular o racismo institucional, implementar políticas públicas baseadas em evidências e estabelecer articulação interinstitucional para ampliar o diálogo com órgãos do Sistema de Justiça e movimentos sociais organizados”.

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