Grupo resgata rituais ancestrais, pratica poligamia e vive num casarão em Laranjeiras

Integrante da tribo em ritual à beira de fogueira: ‘sacrifício da carne’ – Guito Moreto / Agência O Globo

Tribo Naví foi criada a partir da Academia de Cabala por neto de imortal da ABL

por Joana Dale no Globo

Pouca gente sabe, mas as noites de sexta-feira são sempre de festa num belo e imponente casarão branco de janelas azuis no topo de uma ladeira de paralelepípedos nos arredores da Praça General Glicério, em Laranjeiras. Por volta das 19h, advogados, engenheiros, professores, fotógrafos, astrólogos começam a subir a longa escadaria ladeada por jardins coloridos da propriedade. Na porta de entrada, uma senhora coberta por um véu negro dá as boas-vindas a quem chega, servindo doses de água “energizada” numa jarra de prata. As mulheres pintam o rosto com lápis preto. Os homens vestem saias. Todos tiram os sapatos antes de entrar na ampla sala chamada pelos frequentadores de “tenda”. A tenda é o palco das celebrações da Tribo Naví, fundada há quatro anos por um grupo egresso da cabala.

Nas tais noites de sexta, a sala ornamentada com tecidos, iluminada por velas e refrigerada graças a dois ar-condicionados tipo split recebe o “ashuat”, que celebra o “casamento do céu com a terra”. Considerado sagrado, o ritual é embalado pelo som de tambores e de uma guitarra elétrica, instrumentos tocados pelos homens. As mulheres cantam e dançam sem parar. No avançar das horas, vinho tinto é oferecido em pequenos cálices. Para comer, pães artesanais e cachos de uva são compartilhados. Alguns não se inibem em repetir o vinho até três vezes.

O ritual termina pouco antes da meia-noite, quando todos caminham em direção ao pátio. Sob uma mangueira, os homens se mobilizam para acender uma fogueira e realizar o “sacrifício da carne”. A prática de oferecer como alimento a vida de animais ganha tons contemporâneos: a carne utilizada é uma peça de contrafilé comprada num supermercado da Rua das Laranjeiras — dependendo da promoção do dia, o churrasco da tribo pode ser de picanha ou alcatra.

— Na tradição, os guerreiros caçam. Mas, como vivemos dentro de uma sociedade, temos que ir ao supermercado mesmo. Se resolvermos sacrificar um carneiro, por exemplo, corremos o risco de sermos denunciados pelos vizinhos — explica o astrólogo e tatuador Gabriel Shamai, de 41 anos, um dos integrantes do grupo.

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Mario Meir, o líder da tribo – Leo Martins / Agência O Globo

 

A Tribo Naví é composta por 74 pessoas, sem contar as crianças, e liderada pelo professor de música e terapeuta espiritual Mario Meir, de 42 anos, neto do jornalista e poeta Álvaro Moreyra, integrante da Academia Brasileira de Letras (ABL), morto em 1964. Em paralelo à vida na cidade (a maioria dos adultos tem trabalhos convencionais e mantém os filhos matriculados em escolas tradicionais), o grupo treina arquearia, manuseia espadas, toca tambor, fuma cachimbo e pratica a poligamia.

— É a resultante do trabalho iniciado por Abraham Abuláfia (1240-1291) na intenção de um resgate da tradição dos antigos homens do deserto. Os elementos deste resgate consistem na necessidade das futuras gerações retornarem às bases mais antigas daquilo que passou a ser conhecido por cabala — explica ele. — O trabalho resgatou as meditações proféticas e, em seguida, fez as quebras necessárias com os padrões tradicionais e ortodoxos da religião judaica.

O rabino Nilton Bonder não conhece a fundo o trabalho de Mario, mas respeita:

— É um livre pensador.

A tribo se originou na Academia de Cabala, fundada por Mario há duas décadas na Galeria Condor, no Largo do Machado. Respeitados mestres do meio, como Shmuel Lemle e Ian Mecler, passaram por lá.

— A Academia de Cabala foi muito importante no início dos anos 2000. Sou agradecido pelo que aprendi lá — diz Ian, que criou o Portal da Cabala há dez anos. — Cada um tem um público, e todos trabalham para o ser humano acordar.

ORIGEM NA ACADEMIA DE CABALA

A Academia de Cabala começou pequena: a primeira turma tinha 12 alunos. Mas, com a popularização da filosofia milenar — que chegou a ter Madonna como “garota-propaganda” —, a instituição só fez crescer.

— Quando eu dei por mim, estava falando para 300, 400 pessoas. A cabala tinha virado um espetáculo, um modismo — lembra Mario Meir. — Foi quando senti a necessidade de fazer um mergulho mais profundo.

O “mergulho mais profundo” foi a criação da Tribo Naví.

— Foi um ato de coragem — acredita o engenheiro Tom Malki, de 62 anos, discípulo de Mario desde 2002. — A radicalização fez o mestre perder vários seguidores.

O engenheiro Tom Malki e sua esposa – Guito Moreto / Agência O Globo

Alguns não concordaram, por exemplo, com a introdução da poligamia. Pela legislação brasileira, contrair matrimônio já sendo casado configura crime, sujeito a pena de dois a seis anos de prisão — na tribo, porém, os adeptos da prática não são casados no papel.

— É uma permissão baseada na Torá. Abraão, Jacó, Salomão, entre outros homens da Bíblia, eram polígamos — explica Tom.

Uma das famílias da tribo é composta por um marido, três esposas (típicas garotas da Zona Sul, na faixa dos 30 anos) e cinco filhos. A primeira esposa foi quem escolheu a segunda. Há cinco meses, as duas, em comum acordo, escolheram a terceira. Todas vivem em harmonia sob o mesmo teto. O marido tem um quarto, as crianças outro e elas um terceiro. Num esquema de revezamento, a cada noite uma visita o marido em seus aposentos. Ano passado, duas ficaram grávidas praticamente ao mesmo tempo: os irmãos nasceram com dois meses de diferença.

— Na nossa tradição, a poligamia é uma concessão dada às mulheres. O homem não pode chegar para a esposa e avisar que trouxe mais uma — diz o líder. — A poligamia fez parte da composição da raça humana por mais tempo que a monogamia, que virou padrão mundial coisa de dois mil anos para cá. Até o século XVII, o próprio judaísmo permitia a poligamia. E, historicamente, o século XVII foi ontem.

‘É RETRÓGRADO’, DIZ ESPECIALISTA

Para a psicanalista e escritora Regina Navarro Lins, autora de “A cama na varanda”, o molde da poligamia praticada na tribo é “retrógrado”:

— É a volta de uma mentalidade patriarcal, que faz mal a homens e mulheres. Nada contra o poliamor, mas desde que seja para eles e elas. Por que as esposas não podem ter mais de um marido?

Mario tenta justificar:

— O que está por trás da poligamia é uma questão muito maior do que o fato de um homem ter mais de uma mulher. O que existe de pensamento por trás disso é a reconstrução de um modelo familiar tendo como o ponto central o feminino.

Polêmicas à parte, nem todos da tribo estão abertos à “união reprodutiva entre mais de duas pessoas’’.

— Uma sogra já dá muito trabalho, imagina três? — brinca Gabriel Shamai.

Gabriel é casado (apenas) com Juliana Mahast, a doula da tribo. O casamento dos dois foi um dos mais de 30 já celebrados por Mario.

Grupo canta e dança antes de entrar na tenda, onde acontece o ‘ashuat’ – Leo Martins / Agência O Globo

O líder também faz unções, espécie de batizado que introduz recém-nascidos ou recém-chegados ao universo tribal. O ritual é feito com um azeite preparado com especiarias. Na ocasião, cada novo integrante ganha um sobrenome espiritual, como Malki, Shamai, Mahast.

— É uma inspiração que surge na hora — explica Mario, olhos pintados de kajal e tatuagens no ombro direito com os dizeres “paz” e “força” em aramaico.

Mario foi criado no Leblon, estudou no Anglo Americano e fez períodos de Direito e Psicologia em universidades particulares — mas não se formou. Ele mora com a família no casarão de Laranjeiras.

Juridicamente falando, a tribo é uma organização religiosa que vive de doações. Por mês, cada integrante paga R$ 115.

— Demos entrada na casa com parte das doações e fizemos um consórcio para pagar o restante. Aliás, ainda estamos pagando. Vivemos bem apertados — diz Mario, que em março inaugura uma sala no prédio do Cinema São Luiz para dar aulas de aramaico e de meditação.

Entre árvores frutíferas e bougainvilleas cor-de-rosa, 12 altares estão espalhados nos jardins do casarão de Laranjeiras. São reverências a 12 deusas cultuadas pela tribo: da criação, da transformação, dos mistérios, das guerras, da lua, da sabedoria… As composições têm sempre três pedras sobrepostas, velas, conchas e óleos perfumados. Cada elemento, segundo ele, é carregado de significados.

— Para nós, o princípio de tudo é sempre o feminino, e isso se estende por toda a compreensão da existência. O feminino é uma representação do elemento receptor e o masculino representa a força doadora — explica Carmem K’hardana, de 50 anos, uma das integrantes do conselho ancião.

Fachada do casarão de Laranjeiras, comprado com dinheiro de doações – Leo Martins / Agência O Globo

Três vezes por mês, as mulheres da tribo realizam círculos do sagrado feminino. A ordem é mexer as cadeiras.

— Os rituais são para estimular a energia sexual, pois a tradição ensina que o retorno coletivo ao Jardim do Éden será através dessa energia. Mas não é promiscuidade. Os ritos têm sempre muita dança, muita música — explica Gabriel Shamai.

O sagrado feminino segue caminho distinto ao do movimento feminista.

— O feminismo desloca o homem e a mulher do lugar sagrado. O rio não é igual à margem. A essência dos dois funciona junto — acredita a advogada Nicole Malkah, de 38 anos, discípula de Mario Meir há 14 anos.

Para a antropóloga Debora Diniz, pesquisadora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, o discurso “se fundamenta na antiga insubordinação das mulheres”:

— Não diria que é contra o feminismo, mas que é contra todas as mulheres do século XXI.

No entendimento das tribalistas, a família está em primeiro lugar:

— Somos um grupo buscando o estado original do ser humano. A única coisa radical é o mergulho no pensamento — diz Nicole, que acabou aposentando a carteira da OAB. — Não fazia sentido ganhar dinheiro com os problemas das pessoas.

GRUPO VIVE DE DOAÇÕES

Por falar em dinheiro, foi a partir do empréstimo de um abastado tribalista que o grupo adquiriu um pedaço de terra em Trajano de Moraes, no Norte Fluminense. É no Sítio Amarit (que significa “mãe terra” em aramaico) que os homens são treinados para usar o arco e a flecha, e as mulheres plantam frutas, legumes e verduras.

— Em Amarit, podemos praticar o que antes, nos tempos da Academia de Cabala, só fazíamos na teoria. Mas a questão maior não é viver de forma ancestral, é pensar de forma ancestral — diz Mario, que troca e-mails com um grupo que segue princípios semelhantes, na França.

A ideia é criar guerreiros urbanos.

— Minha filha de 5 anos sabe acender uma fogueira — conta, orgulhoso. — Quando houve o tsunami no Japão, uma sociedade muito avançada tecnologicamente, uma cidadezinha ficou sem energia elétrica por uma semana. Era inverno. Os jovens morreram de frio e os velhos conseguiram sobreviver. É importante que nossos filhos aprendam técnicas ancestrais para terem a liberdade de ficar à vontade no mundo contemporâneo.

Uma vez por mês, enquanto os mais velhos participam do “ashuat” as crianças fazem oficinas de artesanato e tambor.

— Desde os primeiros dias de vida, as nossas crianças aprendem o sentido de tribo — conta a analista de sistemas Denise Yehudit, de 42 anos, tutora dos pequenos tribalistas.

A tribo já tem um futuro mestre sendo treinado para substituir Mario. É o pequeno Zaion, de 10 meses, seu primeiro filho homem. Em abril do ano passado, o bebê nasceu no hall de entrada do casarão. Quando a esposa de Mario começou a sentir contrações, começaram a arrumar as malas para ir para a maternidade Perinatal — a família tem plano de saúde. Mas só deu tempo de descer as escadas.

— Fiquei com a obstetra no telefone e consegui fazer o parto do meu filho. O embalei num lençol e, antes de o levar para tomar as vacinas na maternidade, o apresentei aos deuses no altar da tenda.

 

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