Há muito racismo, sim

Foto: Marta Azevedo

A constatação, amparada em dados oficiais e levantamentos consistentes, não pode ser negada

Por Flávia Oliveira, Do O Globo

Flávia Oliveira (Foto: Marta Azevedo)

A seis dias do 13 de Maio, data em que o movimento negro faz reflexão crítica sobre o quão incompleta foi a abolição instituída pela Lei Áurea, o presidente da República declarou que “racismo é algo raro no Brasil”. Na mesma semana, 14 representantes da sociedade civil estavam na Jamaica denunciando à Comissão de Direitos Humanos da OEA os efeitos na população afrodescendente do pacote anticrime do ministro da Justiça, Sergio Moro, e da política de segurança do governador do Rio, Wilson Witzel. Alertaram, de um lado, para o aumento do encarceramento em decorrência de uma legislação penal que, historicamente, faz de adultos e jovens negros os suspeitos-padrão. Sobretudo, chamaram atenção para a escalada dos homicídios, seja pela autorização estadual para o abate, seja pela via do excludente de ilicitude — que pode livrar agentes da lei da condenação por crimes cometidos sob escusável medo, surpresa ou violenta emoção. Duas medidas propostas por ex-juízes, o ministro e o governador; ambas relacionadas ao racismo estrutural que fundamenta a organização política e econômica da sociedade brasileira, na definição do advogado e filósofo Silvio Almeida, autor de “O que é racismo estrutural” (Letramento, 2018).

Não é de hoje que intelectuais e ativistas negros debatem origem e consequências da discriminação racial no Brasil. Nos anos 1930, integrante da Frente Negra Brasileira, o escritor, artista plástico, teatrólogo, professor e político Abdias Nascimento já se batia contra a exclusão social dos afro-brasileiros. Nasceram dessa mobilização as leis que tornaram crime o racismo e a injúria racial e, mais tarde, as ações afirmativas que melhoraram o acesso de jovens negros às universidades.

O país avançou no debate, mas não limou a mazela, tampouco a tornou imperceptível ou rara. Estão aí as redes sociais a comprovar. Domingo passado, em Porto Alegre, o jogador Yony, do Fluminense, foi chamado de macaco por torcedores do Grêmio, após marcar o quinto gol da vitória do time carioca por 5 a 4 sobre os gaúchos. Não foi sequer o primeiro episódio.

No ano passado, a Paraíso do Tuiuti foi vice-campeã do carnaval carioca com o enredo “Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?”, de Jack Vasconcelos. Em 1988, centenário da Lei Áurea, a Mangueira foi para a avenida cantando “Cem anos de liberdade, realidade ou ilusão”. Desde 2015, mulheres negras marcham país afora, Rio incluído, contra o racismo e pelo bem-viver.

É preciso avisar ao titular do Planalto que, no Brasil que ele preside, racismo é comum e se expressa em múltiplas dimensões. Há racismo na violência obstétrica que atinge preferencialmente gestantes e parturientes negras. A expressão, não as más práticas, está sendo banida do léxico do Ministério da Saúde da atual gestão. É racismo quando negros e negras são invisíveis nos espaços de poder, mas presença maciça entre desempregados, trabalhadores de baixa qualificação, informais e mal remunerados.

Há racismo na perseguição secular às religiões de matriz africana; nos índices de homicídio de jovens, em que oito a cada dez vítimas têm a pele preta ou parda; e na população carcerária predominantemente afrodescendente. É a percepção do racismo que faz a maioria dos negros (55%) temerem a polícia, segundo pesquisa do Instituto Datafolha.

A constatação, amparada em dados oficiais e levantamentos consistentes, não pode ser negada por quem não compreende ou não se interessa por diversidade, conceito que implica convivência respeitosa e mesmas oportunidades para todos os grupos sociais. Ao contrário, parlamentares do grupo político do presidente, desde o início da legislatura, vêm se ocupando de destruir uma das mais bem-sucedidas políticas públicas de inclusão social e racial do país, o sistema de acesso por cotas às universidades públicas.

Primeiro a deputada Dayane Pimentel (PSL-BA) encaminhou projeto para revogar a Lei 12.711/2012. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) — do partido que arguiu a constitucionalidade do sistema e foi derrotado no STF — prometeu não encaminhar o tema. Anteontem, foi a vez de Rodrigo Amorim (PSL), o deputado que quebrou a placa em homenagem à vereadora Marielle Franco, executada barbaramente há um ano, propor a revogação da lei no Rio. No estado, pioneiro no sistema, a Lei de Cotas foi renovada por mais dez anos em 2018, após parecer favorável da PGE, aprovação na Alerj e sanção do então governador, Luiz Fernando Pezão. É debate desnecessário. Mas o apetite pela exclusão dos negros não cessa.

 

-+=
Sair da versão mobile