“Há um racismo velado, naturalizado, e por muitas vezes explícito na escola”, diz Elenir Fagundes Freitas

FONTEKátia Mello
Foto: Dernevaldo do Carmo

Assim como milhares de crianças negras, Elenir Fagundes Freitas, enfrentou situações de racismo no ambiente escolar. Logo na primeira série, na hora da fila, um menino se recusava a dar a mão para entrar na sala de aula. O motivo? Dizia que era por ela ser preta. Em uma família em que as mulheres alisavam o cabelo, ela ia de lenço na escola para evitar ser motivo de preconceito entre os coleguinhas. Como professora e educadora, Elenir passou a refletir sobre as possíveis maneiras de combater as práticas racistas no ambiente escolar. Com mestrado em Educação pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e há 35 anos na área, Elenir tornou-se uma grande especialista no assunto.

Ativista do movimento negro e representante da pasta da educação na entidade Educação e Cidadania para Afrodescendente (Educafro), Elenir fará a palestra “Racismo e Educação: como ajudar nossas crianças negras a enfrentá-lo” no dia 25 de maio no 10º. Encontro das Mulheres da Educafro (rua Riachuelo, 342, São Paulo).

A seguir, a entrevista que ela concedeu à coluna Geledés no debate, em que discorre sobre a relevância de promover a igualdade racial nas escolas.

Foto:Dernevaldo do Carmo

“Escutar as queixas dos familiares me possibilitou fazer uma reflexão sobre minha atuação enquanto diretora, inclusive em relação às minhas intervenções sobre as questões referentes ao racismo na escola.”

Geledés – Você foi professora, diretora e coordenadora pedagógica. Em que momento despertou seu interesse em se aprofundar na temática sobre igualdade racial nas escolas?

O interesse surgiu de minha experiência como gestora pública responsável pelas ações pedagógicas da Seção de Ensino Fundamental I e Educação Infantil, na Secretaria de Educação de São Bernardo do Campo. Trabalhando nessa Secretaria, vivenciei situações trazidas pelos pais ou responsáveis de estudantes relatando que, após acolherem as queixas de preconceitos referentes ao campo étnico-racial das crianças. As pessoas procuravam a escola, mas não se sentiam satisfeitas com as devolutivas e os encaminhamentos dados pela equipe gestora.

Escutar as queixas dos familiares me possibilitou fazer uma reflexão sobre minha atuação enquanto diretora, inclusive em relação às minhas intervenções sobre as questões referentes ao racismo na escola. O que havia eram conversas específicas e individuais com os educadores da escola, mas não existia um projeto pedagógico que pensasse as relações raciais numa perspectiva de construção de uma pedagogia que buscasse a igualdade racial no ambiente escolar.

Mesmo vivenciando desigualdades de tratamento por questões raciais, eu tinha como pressuposto que esta diferença estava situada apenas no campo referente ao contraste entre classes sociais, e não às questões raciais. Ao tentar compreender as discussões e reflexões propostas pelo movimento negro, fui tomando consciência da necessidade em entender que as questões de desigualdade racial estão para além das questões sociais.

Passei a atuar como voluntária na instituição “Educação e Cidadania para Afrodescendente” (Educafro), entidade que tem como objetivo contribuir com o empoderamento do povo negro e nos diversos espaços do movimento negro, e a cada dia tenho conquistado uma maior compreensão da necessidade de analisar as desigualdades raciais ainda presentes em nossa sociedade e, especificamente no ambiente escolar, além de tentar encontrar caminhos de superação dessa flagrante injustiça.

Geledés– Você menciona em sua tese que sofreu preconceito na escola. Quais foram essas situações e qual impacto elas tiveram em sua vida pessoal e profissional?

Por várias vezes, vivi experiências de tratamento desigual na escola por conta da cor de minha pele. Lembro-me que ainda criança, quando estava na 1ª série, antes de entrarmos na sala de aula, nos encontrávamos no pátio da escola para organizarmos a fila. O momento mais difícil era quando a professora solicitava que déssemos as mãos aos parceiros para caminharmos até a sala. Quase sempre meu parceiro, um menino “branco”, se negava a dar a mão para mim. Quando eu reclamava para a professora e ela perguntava por que ele não queria me dar a mão, ele dizia que era porque eu era “preta”. Aquele momento me deixava numa situação de extremo constrangimento, mesmo porque a professora sempre questionava os motivos dele não querer pegar na minha mão na frente das outras crianças. Esta situação me constrangia ainda mais. Como várias vezes a cena se repetia, eu ia para a escola torcendo para que a professora não solicitasse tal atitude.

Outra dificuldade dizia respeito ao meu cabelo. Para ir à escola, usava um lenço para escondê-lo. Por muitas vezes os meninos da classe puxavam meu lenço, e eu me sentia humilhada. Diante disso, para estar mais parecida com o grupo e ser mais bem aceita na sala de aula, aos 10 anos de idade, eu implorava à minha mãe para alisar o meu cabelo, tendo como referência a minha irmã mais velha, a minha mãe e todas as minhas tias que alisavam seus cabelos crespos.

Fui me acostumando e aceitando a diferença de tratamento como algo natural. Tanto que, no ato da matrícula no ensino médio, por exemplo, ao perguntar quais cursos estavam disponíveis, ouvi a funcionária me responder “secretariado e magistério”. Optei pelo magistério por acreditar que, por ser negra, ninguém haveria de me empregar como secretária. Afinal a narrativa era “precisa-se de moça, de boa aparência, para secretária”. Boa aparência era atributo de pessoas brancas.

Em minha trajetória profissional, enquanto professora alfabetizadora, da disciplina de história, e como coordenadora pedagógica, vivenciei muitas situações em que as crianças negras eram tratadas de forma diferente das de pele “branca”, principalmente, no que dizia respeito às suas necessidades afetivas. Sendo negra e tendo passado por atos de racismo, quando criança e adulta, preferi por muitas vezes não falar sobre o assunto.

“Pesquisas apontam que encontramos no interior das escolas práticas que fortalecem a segregação racial, fazendo com que os alunos que frequentam esse espaço passem a encarar o racismo como prática natural. É nesse contexto que a escola tem confundido racismo com bullying.”

Geledés – Há inúmeros relatos de casos de racismo nas escolas. Qual a melhor forma de combatê-los?

No espaço escolar há situações que expressam a desigualdade racial da mesma forma como ela é expressa em nossa sociedade, tendo como protagonistas crianças, jovens e adultos. Tais práticas revelam o racismo existente na sociedade brasileira a partir da valorização da supremacia da pessoa branca em detrimento de pessoas não brancas.  Há um racismo velado, naturalizado, e por muitas vezes explícito na escola.  Portanto, cabe aos educadores refletir sobre as questões raciais, reconhecendo a diversidade presente na escola como valor humano e contribuir no fortalecimento das relações de igualdade racial na escola.

Entendo que diretores escolares e coordenadores pedagógicos, por terem como atribuição a coordenação das ações pedagógicas na escola, têm papel importante na construção e efetivação de projetos políticos pedagógicos que reduzam as desigualdades raciais. Portanto, a parceria entre professores, diretores e coordenadores pedagógicos deveria construir uma cultura de práticas que fortalecesse as relações de igualdade racial, qualificando a ação pedagógica e ampliando o olhar sobre a escola, em um projeto político pedagógico que garanta os avanços na qualidade da Educação.

Penso que refletir sobre a gestão das relações étnico-raciais no ambiente escolar é tarefa dada àqueles que acreditam que o racismo precisa ser denunciado e enfrentado; àqueles que acreditam que passar por experiências de racismo prejudica o desempenho de nossos educandos, e também àqueles que compreendem que muitos conflitos ocasionados na escola são frutos das relações de desigualdade racial.

Geledés– Entre educadores, existe ainda uma confusão entre racismo e bullying. Qual é a melhor maneira de esclarecer as diferenças para pais, diretores e professores?

A escola faz parte desse universo de instituições públicas e por muitas vezes tem legitimado o racismo em seu ambiente, o que chamamos de racismo institucional. Pesquisas apontam que encontramos no interior das escolas práticas que fortalecem a segregação racial, fazendo com que os alunos que frequentam esse espaço passem a encarar o racismo como prática natural. É nesse contexto que a escola tem confundido racismo com bullying.

Tenho refletido o quanto o trabalho nas escolas está permeado de ausência de reflexões em relação às questões raciais, pela invisibilidade da criança negra e pelo racismo ignorado ou reduzido ao bullying. O fato de a escola, diante dos conflitos raciais, não parar pra ver as causas e consequências do mesmocontribui para que situações de racismo sejam reduzidas ao bullying, e dessa forma a desigualdade racial é colocada no mesmo patamar de outras violências contra “o gordo”, “o baixinho”, etc.

Bullying está muito próximo do preconceito que é juízo antecipado em relação à cultura, sexualidade, religião e outros.

Racismo é a ideia de superioridade de uma raça sobre a outra e extrapola os muros da escola. Interessante como quando apontamos a necessidade de falarmos sobre o racismo na escola, falar sobre a dor da criança negra e relações raciais desiguais, sempre encontramos resistência de educadores alegando que racismo é igual ao bullying. As duas situações devem ser combatidas e para diferenciá-las podemos dizer que um adolescente branco que sofre bullying na escola porque usa óculos não é barrado na porta do shopping por esse motivo, já um adolescente por ser negro corre este risco. O silêncio da escola tem legitimado o racismo. E quando ela se dispõe a falar, nega-o ao chamar de bullying. É inegável a dificuldade que a escola tem de assumir o racismo.

“O trabalho com a oralidade em sala de aula contribui para educarmos as crianças para que possam, através de posturas argumentativas, construírem diálogos sobre a situação de racismo vivenciada por elas.”

Geledés – Um quarto das escolas públicas do país não aborda o tema em sala de aula. Como incentivar atividades que falem a respeito da relevância da igualdade racial?

A busca pela promoção da igualdade racial na escola vem ancorada a uma diversidade de ações afirmativas governamentais como a Lei 10.639/2003, que alterou a LDB incluindo no currículo oficial da Rede de Ensino da obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira; o estudo sobre o Estatuto da Igualdade Racial, entre outros. Porém, ainda encontramos um grande número de escolas que não implementam tais conteúdos por meio de seus Projetos Políticos Pedagógicos (PPPs). E quando acontece são vivenciados apenas em situações pontuais, e não em práticas cotidianas. É necessário discutir incansavelmente o racismo na escola, dia-a-dia.

Nesse sentido acredito que diretores e coordenadores pedagógicos  tem papel relevante nesta empreitada por ter como uma de suas atribuições a coordenação e a promoção das ações pedagógicas na escola, em parceria com os outros educadores da escola, podem protagonizar a construção e a efetivação de projetos que contribuam para a reflexão das relações étnico-raciais existentes no ambiente escolar, e consequentemente construir uma cultura de práticas pedagógicas que fortaleça as relações de igualdade racial neste contexto.

Hoje encontramos um acervo de documentos oficiais, livros ou outros aportes bastante qualificados, referentes à história da África e afro-brasileira, à disposição da equipe gestora para que possa subsidiar os momentos de formação e em parceria com a equipe escolar, propor práticas pedagógicas em seus currículos escolares na perspectiva da implementação da Lei 10.639/03, além de contribuir para a construção de uma escola verdadeiramente inclusiva.

Geledés – A criança ou o adolescente pode ser um multiplicador de práticas contra o racismo? De que forma?

Entendo que o racismo desumaniza crianças negras e brancas. Quando nos calamos diante de práticas racistas contribuímos para que crianças negras sofram com o racismo e crianças brancas aprendem a ser racistas.  Se por um lado já percebemos que a escola realiza algumas intervenções por meio do diálogo diante da queixa da criança referente à questão racial, por outro evidenciamos que a escola pouco ajuda a criança negra a se defender quanto às injúrias raciais.

Há um sofrimento vivenciado pelas crianças negras pelos ataques racistas e isso nos reforça a ideia de que é importante atentarmos para o que esta criança negra está sentido.  As relações afetivas na escola têm mostrado o isolamento das crianças negras e, consequentemente, o abandono e o aumento da baixa autoestima. Portanto, verificar se as crianças negras estão sendo tratadas com respeito como todas as outras crianças é uma ação necessária.

Fomentar reflexões com educadores para que possam oportunizar a escuta da vida das crianças por elas mesmas, realizar momentos de integração entre todos, reconhecer que as ofensas, apelidos e piadas devem ser denunciados e desnaturalizados, contribui para a construção de uma nova cultura, de uma pedagogia antirracista em busca de um contexto escolar que, dia a dia, reduza as desigualdades raciais.

A escola tem um forte conteúdo que pode auxiliar as crianças a se protegerem do racismo. O trabalho com a oralidade em sala de aula contribui para educarmos as crianças para que possam, através de posturas argumentativas, construírem diálogos sobre a situação de racismo vivenciada por elas. Nesse diálogo a sala de aula como um todo, crianças negras e brancas, se beneficiam.

Desconstruir estereótipos através de ações que busquem valorizar belezas e saberes do povo afrodescendente brasileiro e do povo africano contribui para que a sala de aula seja um espaço onde crianças brancas e negras se beneficiem desse aprendizado para se constituírem mais humanizadas.

Geledés -E quando o professor é declaradamente racista?  O que fazer?

A existência de pessoas preconceituosas na escola é muito forte e o diálogo com elas tem que ser muito cuidadoso porque implica ressignificar crenças, concepções internalizadas. Costumo dizer para educadores que como falou Franz Fanon: o branco de hoje não tem culpa da escravização de pessoas negras em nossa sociedade, mas tem a responsabilidade de ajudar a desfazer as mazelas que ela deixou.

Fazer com que o currículo escolar tenha como um dos objetivos a construção de uma pedagogia antirracista é fundamental. Muitos professores justificam a dificuldade de falarem sobre esse tema por não terem vivenciado o de racismo, por serem pessoas brancas. Os momentos de formação na escola possibilitam a superação dessa situação, que como qualquer outra, não precisou tê-las vivenciado para denunciá-las. É necessário o investimento nos momentos de formação coletiva para o estudo do tema.

A ausência de intervenção quanto às ofensas da criança, com a crença de que são meras brincadeiras, e a negação de que há relações de desigualdade racial entre as crianças, têm contribuído para dificultar a denúncia sobre o racismo e propor intervenções pedagógicas que contribuam para que as crianças reflitam sobre suas ações. O mito da democracia racial impregnado em nossa sociedade e por consequência na escola nos envolve em uma ideia de que entre as crianças não há tratamento racial diferenciado.

Falar sobre um tema que mexe com pessoas que estão com suas estruturas internas acomodadas não é fácil. Volto a dizer, o fato da pessoa branca não ter vivenciado a discriminação racial não pode ser empecilho para que denuncie o racismo. A escola precisa reconhecer que práticas racistas constituem crime que precisa ser denunciado e banido da sociedade, e se posicionar contra qualquer forma de discriminação. Lutar contra o racismo é tarefa de todo educador, independente de ter passado por esta situação ou não. Compreender os privilégios da pessoa branca é parte desta luta.

Geledés – A temática em relação à questão racial na escola já foi tratada por inúmeros autores. O que avançamos e como podemos avançar ainda mais?

Avançamos a cada dia através da organização do movimento negro que possibilitou conquistarmos políticas afirmativas e protagonismo. E temos que avançar muito mais. Estarmos atentas às relações raciais na escola, rever o racismo negado nas palavras e não nas ações, estimular a formação de todos os educadores apoiando-os nos projetos sobre o tema e desenvolver o trabalho coletivo para a mudança de paradigma é um bom caminho.

Construir uma escola acolhedora onde todos se sentem respeitados, reconhecidos e acolhidos em suas diferenças, um ambiente educacional que não exclui, que se importa com os sentimentos dos que a frequentam e se preocupa com a inclusão de todos/as, onde crianças, jovens e adulto se beneficiam e se humanizam neste espaço.  Há a necessidade de realizarmos um trabalho qualificado na escola, que busque a construção das relações de igualdade racial no ambiente escolar. Trabalho esse que reconhece o protagonismo da equipe escolar enquanto sujeitos importantes para a efetivação de uma pedagogia voltada para a humanização. Reconheço que nos constituímos através de múltiplas mediações. Que vivemos em uma sociedade que nega o racismo nas palavras, mas que o legitima nas ações. Mas considerar esta situação não significa que podemos aceitá-la.

Por fim, é necessário uma reeducação étnico-racial se desejamos uma escola que contribua para a formação de crianças, jovens e adultos que assumam como princípio humano a igualdade racial. A década do afrodescendente instituída pela ONU é um grande convite a esta discussão.

Geledés – As cotas raciais estão sob ameaça neste atual momento do país. Como analisa os resultados de anos de cotas na educação brasileira e quais os impactos para a população negra caso sejam extintas?

Não é fácil disputar um espaço que por anos foi dominado por uma elite branca, espaço esse que significa poder. A lei de cotas nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, vêm na perspectiva da redução das desigualdades no âmbito educacional e por conseguinte a partilha de poder em relação ao conhecimento. É isso que assusta aqueles que se declaram contrários. Como nos ensina Carvalho (2016) compreender as cotas é reconhecer que as vagas nas instituições públicas não podem ser destinadas, sejam elas por qualquer motivo, a apenas um grupo social ou étnico neste país. Assim, possamos juntos, negros e brancos construir uma sociedade que caminhe para um novo pacto de cidadania, transformando uma nação excludente e segregada em uma nação multiétnica e multirracial.

A extinção das cotas causará grandes prejuízos à população negra, um retrocesso perverso que dificultará o avanço de políticas públicas que têm como objetivo a redução das desigualdades. Precisamos entender que o racismo estrutura a sociedade brasileira e não há como superá-lo sem acreditar que políticas públicas são fundamentais para reparar inúmeras leis constituídas pelo Estado a fim de prejudicar e segregar a população negra.

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