Uma terrível ameaça de despejo acontece contra 800 famílias de 30 comunidades quilombolas do município de Alcântara, no Maranhão, com a determinação do governo federal em remover essa população em plena pandemia do novo coronavírus. No dia 26 de março, a Resolução 11/2020, publicada no Diário Oficial da União (DOU), determinou a expulsão e o reassentamento dessas famílias a serem executados pela Aeronáutica e Incra, respectivamente.
A resolução veio após acordo firmado entre os governos brasileiro e americano, no ano passado, para a cessão da base de lançamento de foguetes e satélites de Alcântara aos Estados Unidos.
Em resposta, mais de 160 organizações assinaram carta de repúdio, entre elas o Movimento dos Atingidos pela Base Espacial (Mabe), o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar do Município de Alcântara (SINTRAF), a Associação do Território Quilombola de Alcântara (ATEQUILA), e o Geledés – Instituto da Mulher Negra.
Após a publicação da resolução, o Ministério Público Federal recomendou à União que se abstenha da decisão de remover as famílias quilombolas de Alcântara, especialmente em razão da pandemia.
Em entrevista à coluna Geledés no debate, o quilombola Danilo Serejo, assessor jurídico das comunidades e integrante do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (Mabe), chama a atenção para o fato de a decisão poder levar ao risco de morte toda a população de quilombolas daquela região.
Geledés – Como entende a atitude do governo federal brasileiro, diante da decisão publicada no Diário Oficial, de remover as comunidades quilombolas de Alcântara (MA)?
Recebemos essa resolução como uma medida autoritária do governo federal, uma vez que não foi precedida de nenhum tipo discussão, de nenhum diálogo ou consulta prévia junto às comunidades de Alcântara. Não fomos contatados antes e nem tivemos qualquer participação nesse comitê. Portanto, é uma medida verticalizada, autoritária, e que impacta diretamente em nossas vidas, em nosso direito de decidir e de planejar nosso futuro. Na medida em que o governo federal verticaliza uma decisão nesse nível, ele praticamente nos rouba o direito de decidir sobre nossas vidas. Esse tipo de medida só encontra paralelo no Brasil Colônia, em que os negros não tinham direito de decidir sobre suas vidas. Isso releva o caráter racista deste governo com as populações negras e quilombolas.
“Esse tipo de medida só encontra paralelo no Brasil Colônia, em que os negros não tinham direito de decidir sobre suas vidas. Isso releva o caráter racista deste governo com as populações negras e quilombolas.”
Geledés – Na resolução é mencionado que a Aeronáutica deverá fazer as remoções das famílias e o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) se encarregará de reassentá-las. Quais impactos podem acontecer na comunidade quilombola, caso essa ação seja levada adiante em meio à pandemia do novo coronavírus?
É extremamente perigoso adotar a medida de remoção das comunidades. A remoção, por si só, já é algo inconcebível, porque vários dispositivos legais vedam essa ação. A própria convenção 169 da OIT veta a remoção de quilombolas de seus territórios. Há um requinte de crueldade quando o governo brasileiro publica uma medida como essa num contexto em que o mundo inteiro encontra-se no isolamento para evitar o contágio do novo coronavírus. Isso é para gerar pânico e medo entre os quilombolas. Se essa medida for implementada agora há um risco imediato de contágio e seguramente sentenciaria às comunidades à morte. Quem iria fazer esse processo de transferência? Seriam pessoas que viriam de fora do Estado, ou mesmo que fossem dentro do Estado, não seriam de Alcântara. A orientação é isolamento social, então não é crível ou concebível que isso ocorra em plena pandemia. Se isso ocorrer, repito, é um requinte de crueldade que levará os quilombolas à morte.
“Há um requinte de crueldade quando o governo brasileiro publica uma medida como essa num contexto em que o mundo inteiro encontra-se no isolamento para evitar o contágio do novo coronavírus.”
Geledés – Quais providências estão sendo tomadas pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e Movimento dos Atingidos pela Base Espacial (MABE) para conter a ação de remoção dos quilombolas?
Estamos estudando a melhor saída jurídica para isso e ainda não a temos definida. A situação em Alcântara, do ponto de vista jurídico, é muito delicada porque envolve uma série de ações em trâmite nas cortes nacionais e internacionais. Então precisamos ter muita cautela e prudência.
Geledés – Como se posiciona o Estado do Maranhão frente a essa decisão da esfera federal e que tipo de ação governamental pode impedir a remoção?
Durante todo o processo de tramitação no Congresso, o governador do Estado de Maranhão, Flávio Dino, foi o fiador desse processo. Orientou a bancada maranhense no sentido de votar pelo acordo no Congresso, alegando supostas vantagens econômicas para o Estado do Maranhão, inclusive sobre a região de Alcântara.
“Os governos do PT não quiseram enfrentar os militares e contribuíram fundamentalmente para agravar o quadro de vulnerabilidade em que se encontram hoje os quilombolas.”
Geledés – A questão da remoção dos quilombolas do Maranhão para a execução do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) vem sendo dada há duas décadas. Como se chegou à atual situação?
Ao longo de 40 anos, passaram governos de esquerda e direita que nunca abandonaram o pensamento dos militares de ocupar todo o litoral de Alcântara. De Sarney a Bolsonaro, nenhum dos presidentes abandonou essa ideia. Desde o início dos anos 2000, as comunidades intensificaram o processo político, acionando o Ministério Público e a Justiça para solucionar essa situação. O Ministério Público propôs várias ações civis em relação ao passivo ambiental sobre a base espacial de Alcântara. Essa base funciona desde a década de 80 sem licença ambiental! Não existe relatório ambiental, nem licença ambiental exigida pela Constituição. Ou seja, há 39 anos, a base espacial funciona sem essa licença. Ninguém sabe dimensionar os riscos que ela causa à população, porque não há estudos. Por via de regra, se for levada em consideração a Constituição, o centro de lançamento de foguetes não deveria nem estar funcionando, e muito menos deveria ser expandido. Então é muito grave o que ocorre nesse cenário.
Agora, em relação à remoção dos quilombolas durante a pandemia, o Estado do Maranhão se posicionou contra, enviando uma nota técnica para o governo federal. Por esse posicionamento público, considerado positivo, existe a chance de evitar-se a remoção. Porém, como o Estado do Maranhão foi fiador dessa proposta de expansão da base de Alcântara, ele não pode ser agora o mediador ou interlocutor dessa situação, porque ele apresentou seu lado nessa história.
No governo Bolsonaro, a ideia de expansão da base sobre o território das comunidades ganhou força. O presidente atual resolveu celebrar essa expansão com os Estados Unidos, e a resolução passou facilmente pela homologação do Congresso. Quando houve tramitação do acordo no Congresso, buscamos, por todos os meios possíveis, alertar os congressistas, o governo federal e o estadual, comandado por Flávio Dino, – que é de esquerda -, de que esse acordo implicaria em questões fundiárias e remoções. Em todo o processo, o governo federal negou que haveria remoções, mas nós sabíamos que isso iria acontecer. Alertamos as autoridades e nunca fomos ouvidos. A resolução prova isso.
“Não podemos aceitar a máxima racista de que Alcântara tenha sido destinada à tragédia e, de certa forma, somos experientes nessa situação. Vamos reverter tudo isso.”
Geledés – Diante do acordo firmado entre Brasil e Estados Unidos, em março de 2019, que garante ao governo americano a exploração da base de Alcântara somado à decisão de remoção das famílias, quais as reais possibilidades de reversão desse quadro?
O processo de representação do território quilombola de Alcântara ficou pronto no governo Lula. Esse processo estacionou na mesa do presidente Lula para emissão do título de propriedade. Os governos do PT não quiseram enfrentar os militares e contribuíram fundamentalmente para agravar o quadro de vulnerabilidade em que se encontram hoje os quilombolas. Há uma lógica racista do Estado brasileiro com as comunidades quilombolas. Sucessivos governos de esquerda e direita, sem tirar nem por, se negaram a emitir o título de território dos quilombolas. Essa situação é de racismo estrutural. Tanto a esquerda quanto a direita tem essa dívida com a gente.
Estamos numa conjuntura bastante difícil, sob um governo que não ter qualquer zelo constitucional, que não zela pela proteção de ninguém e quando se trata de Direitos Humanos, ele tem total aversão ao tema, como é de conhecimento público e notório. Trata-se também de um governo racista; as falas do presidente sempre foram racistas quando se refere aos povos indígenas e quilombolas. Só não vê quem não quer. Apesar de tudo isso, acreditamos muito que é possível reverter esse quadro. Por isso, estamos mobilizando todos os nossos esforços políticos. Ainda que a conjuntura seja complicada, é preciso acreditar nas instituições democráticas, no poder judiciário, para que elas possam resguardar as comunidades quilombolas deste país. Estamos aqui há 40 anos e já passamos por sucessivas ameaças, estando no campo da incerteza e da insegurança jurídica. Já passamos por muito sufoco. Não podemos aceitar a máxima racista de que Alcântara tenha sido destinada à tragédia e, de certa forma, somos experientes nessa situação. Vamos reverter tudo isso.