Relutei muito a decidir quem herdaria meus arquivos de computador e meu blog “Tá lubrinando – escritos da Chapada do Arapari”. Achava uma bizarrice, porém, tremia só de pensar que há gente que morre e deixa de herança pendências trabalhosas. Uma aporrinhação sem fim. Então, é preciso pensar em meus guardados de computador e no que produzi que está na web.
Por: Fátima Oliveira
Há algum tempo, recebi de uma pessoa amiga um e-mail com as senhas do seu blog: “Toque o blog se eu morrer…”. É um blog literário, com a maioria das postagens de sua autoria, mas há escritos de autores dos quais gosta, clássicos e contemporâneos.
Levei na galhofa. É uma pessoa nostálgica e introspectiva, e eu a conheço assim desde sempre. “Fez testamento? Registrou em cartório?”. Fiquei sem resposta, pois a pessoa tem muito medo de morrer, se crê imorrível; e não aspira à eternidade, que pressupõe morrer, mas à imortalidade do corpo.
Semana passada, ouvi uma história que mais se parece com uma lenda da internet: uma mulher e um homem, amigos virtuais, que nunca se encontraram, jamais perguntaram sobre a vida real do outro, e a única coisa que sabiam eram as respectivas profissões: uma professora de literatura e um médico. E assim se passaram cinco anos. Há quilos de páginas de e-mails trocados quase diariamente. O nome dela era real, o dele, nem tanto, mas ela só descobriu depois.
Uma noite, ela abriu o jornal e estava lá que o “dr. Fulano de Tal dos Anzóis Pereira”, que mantinha o blog “Coisa & Tal”, com o pseudônimo de “Etc. e Tal”, falecera no dia anterior e seria enterrado em sua cidade natal naquele dia. Já era noite, ele já estava enterrado. Chorou copiosamente. Depois, mais calma, acessou o “Coisa & Tal”. Lamentou que uma produção literária cuidadosa e meticulosa, quase uma obra de arte, deixasse na orfandade mais de mil seguidores.
Lembrou que, há uns dois anos, recebera um macabro e-mail dele: “Você é a minha herdeira digital. Quando eu morrer, meu blog será seu, assim como os e-mails que trocamos, MSN e Facebook”. Enquanto ela tentava encontrar o tal e-mail, chegou uma mensagem do provedor do blog: “Temos autorização de comunicar-lhe a senha de acesso ao blog sempre que completarem 48 horas de inatividade”.
Ela se apossou do blog. Fuçou o que pôde. Havia nos rascunhos seis contos, que ela publicou, as senhas de todas as contas digitais dele e um comunicado de falecimento, no qual constava que ela era a herdeira do seu acervo digital e poderia decidir livremente o que fazer com a herança, até deletá-la. Após uma semana, recebeu telefonema do advogado da viúva (ali descobriu que ele era casado e que tinha três filhos adultos!), que estava inconsolável por não ser a herdeira do acervo digital do marido e oferecia uma recompensa pelo seu silêncio e a desistência da herança!
Não houve acordo e o caso está na Justiça. Ela continua em pleno gozo de seus direitos de herdeira e recebeu uma oferta milionária para a história da herança virar um filme. No Brasil, não há lei específica sobre herança de acervo digital. Caso não haja um “testamento”, o espólio digital pertence à família da pessoa falecida, que, se não possuir as senhas, poderá obtê-las por ordem judicial.
Os dois fatos mudaram a minha opinião. Até fiz meu testamento digital, mas ainda não “fiz um tempo” para ir ao cartório. Freud até que explica: é a sensação idiota de imortalidade corpórea que nos faz postergar decisões inadiáveis, pois quem é vivo é mortal. E a vida segue, e o que caiu na web também…
Fonte: O Tempo