Historiador citado por Toffoli rejeita chamar ditadura de ‘movimento’

Ele também afirma que esquerda e direita não têm as mesmas responsabilidades no processo de radicalização que levou ao golpe (Arquivo Nacional )

Em seminário sobre Constituição de 1988, o presidente do STF afirmou que prefere chamar a ditadura civil-militar de “movimento de 1964”

Por Carol Scorce, da Carta Capital  

Ele também afirma que esquerda e direita não têm as mesmas responsabilidades no processo de radicalização que levou ao golpe (Arquivo Nacional)

O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, afirmou nesta segunda-feira 1º que não usa, ao falar do período da ditadura civil-militar no Brasil, os termos “golpe” ou “revolução”. “Me refiro a movimento de 1964”, disse. A fala foi feita em um seminário que tratava dos 30 anos da Constituição de 1988.

Ao falar do período da ditadura militar, Toffoli mencionou o historiador Daniel Aarão Reis. Segundo o presidente do STF, sua pesquisa indicaria que tanto a esquerda quanto a direita conservadora, naquele período, tiveram a conveniência de não assumir seus erros anteriores a 1964, passando a atribuir os problemas aos militares.

O conceito elaborado por Toffoli nesta segunda-feira não é, no entanto, o mesmo utilizado por sua fonte. O historiador Daniel Aarão Reis, professor e pesquisador da Universidade Federal Fluminense, afirmou, em entrevista a CartaCapital, que chamar a ditadura militar de ‘movimento de 1964’ é impróprio, assim como igualar “os que lutavam por justiça social com os que queriam eternizar a injustiça social.”

Carta Capital: O senhor concorda com a interpretação do ministro Dias Toffoli sobre as responsabilidades das diferentes correntes ideológicas que antecederam o golpe militar de 1964?
Daniel Reis Aarão: Ele (o ministro) cometeu um equívoco. Ele deveria ter citado uma outra estudiosa do assunto, que é a Argelina Figueiredo. Ela fala realmente disso, que a gente (historiadores) chama da doutrina dos dois demônios. Essa doutrina foi criada na Argentina, e atribuía às esquerdas e às direitas as mesmas responsabilidades.

Então seriam dois demônios que a sociedade deveria exorcizar. Essa corrente foi extremamente combatida lá (na Argentina), e está superada. Essa doutrina foi importada para o Brasil, e a Argelina Figueiredo que se incumbiu disso. Ela requentou para o Brasil. Na interpretação dela a radicalização anterior a 1964 deve ser atribuída igualmente às esquerdas e às direitas. Porque foi essa radicalização, segundo ela, que levou ao golpe.

CC: O senhor, como pesquisador, avalia como coerente essa interpretação da história?
DAR: Essa interpretação dos dois demônios eu rejeito categoricamente. Eu não nego que antes do golpe havia um processo de radicalização no Brasil. Mas parece utópico igualar camponeses que lutam pela terra a latifundiários. Me parece impróprio igualar aqueles que lutam por justiça social com os que querem eternizar a injustiça social. Me parece impróprio, em relação à conjuntura anterior a 1964, igualar os marinheiros que queriam ter o direito de voto às oligarquias que não queriam democratizar o voto.

No Brasil, antes de 64, os analfabetos, que eram mais de 50% da população, não votavam. Então, havia um movimento muito grande no Brasil antes de 64 por justiça social e democracia, e comparar esses (a esquerda) aos que recusavam a democracia me parece um procedimento vesgo, que o ministro Toffoli teve a infelicidade de atribuir a mim.

CC: É correto chamar o período da ditadura militar de movimento de 64?
DAR: Foi muito infeliz da parte dele dizer que abandona a terminologia ditadura, que expressa perfeitamente o estado de exceção que se passou no País, pra assumir um outro conceito. Vindo da parte de um juiz, presidente do STF, é uma coisa que provoca espanto. Eu estou estarrecido de ver um juiz, que deveria ser o guardião da lei, relativizando o desrespeito à lei.

CC: O senhor avalia, então, que é ruim para a história um autoridade jurídica assumir esse tipo de conceito.
DAR: Devemos lembrar, para desgraça nossa, que na época de 64, o então presidente STF, ministro Ribeiro da Costa, sem consultar seus colegas, apoiou o golpe de 64. Então o ministro Ribeiro da Costa foi cúmplice do golpe. Fato lamentável para a tradição jurídica brasileira. E é uma pena que o ministro Toffoli, de alguma maneira, recupere essa tradição triste que foi assumida pelo Ribeiro da Costa na época. Depois o Ribeiro da Costa entrou em conflito com a ditadura, mas ai já era tarde. Acho que hoje muitos estão namorando a hipótese de uma nova ditadura, e depois irão se arrepender, mas ai também será tarde.

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