“Hoje em dia tudo é apropriação cultural”

Oficialmente define-se apropriação cultural como “a adoção indevida de elementos específicos de um determinada cultura por membros pertencentes a outra”, mas pessoalmente gosto de explicar da seguinte forma: “quando indivíduos acostumados a ter tudo, geralmente brancos com menos de 35 anos, se apossam de elementos de uma cultura que desconhecem ou até mesmo ignoram”. Mais ironicamente defino como “quando pessoas brancas decidem dar continuidade ao legado de Cristóvão Colombo e passam a chamar de seu algo que sempre pertenceu a outros”. Contudo, sei que essas explicações por si só não são suficientes então dá tchau pra caravela e vem comigo!

por Leopoldo Duarte no Os Entendidos

“A CULTURA É DE TODOS”

Graça à internet e à globalização, hoje temos acesso a uma infinidade de culturas e povos que antes só tomávamos nota por meio de relatos de viagem, fotos ou editorais da National Geographic. Atualmente os meios de comunicação regularmente nos apresentam a uma diversidade de povos, cores, sabores, padronagens etc. Contudo, saber que uma determinada cultura existe não nos torna proprietário, conhecedor ou integrantes dessa nova cultura. Por mais fantástica que essas “descobertas” sejam, cultura nenhuma é/foi criada para apetecer a opinião de todos – o nome disse é indústria cultural ($$$). Pelo contrário, toda cultura é resultado de anos de interações sociais e tem como consequência a afirmação da própria identidade do grupo que dela compartilha.

Precisamos ter sempre em mente que se o conceito de fronteiras culturais não faz muito sentido agora, isso se deve ao violento processo de expansão colonial executado pela ganância europeia. Se as barreiras nos parecem mais fluidas no presente é porque num passado não muito distante populações inteiras foram usurpadas, exploradas e dizimadas para ganho do “mundo ocidental”. Sendo assim, procure imaginar como uma pessoa descendente dos milhões de ameríndios exterminados e privados de seus territórios se sente quando uma pessoa branca – descendente do continente responsável pelo roubo e extermínio – resolve usar um cocar na cabeça simplesmente porque “achei legal”. #sqn

Caso esse exemplo não tenha sido escuro o suficiente, apertando a tecla SAP do branquês podemos entender duas coisas: UM. produtos culturais não são criados para ser apenas “legais”; DOIS. não é só porque colonizadores europeus roubaram terras e reprimiram seus habitantes que suas culturas passaram a ser propriedade de “todos”.

“É APENAS UMA HOMENAGEM”

Ilustração: Xeidiarte (facebook.com/xeidiarte/)

Idealmente, sempre que prestamos reverência a algo ou a alguém, o primeiro passo a ser tomado é procurar saber se a pessoa homenageada se sentirá respeitada e confortável com tal demonstração. Por exemplo, na China arrotar após uma refeição oferecida é um gesto de gratidão, porém o mesmo gesto por aqui seria lido como, no mínimo, falta de educação. Contexto, como sempre, acaba valendo mais do que “boa intenção”. Não é porque você tatua um ideograma japonês/chinês/sei lá sem saber nem pronunciar – ou diferenciar katana de hiragana e kanji – que ele passa a ter o pretendido significado que o tatuador(a) alegou ter, né?!

É muito comum que pessoas (brancas) resolvam “homenagear” outras identidades culturais enquanto permanecem completamente ignorantes quanto aos valores cultivados por tais identidades. Como qualquer pessoa consegue confundir enaltecimento faltando com respeito é um mistério. Como alguém consegue acreditar que, ao tomar pra si a parte de outra cultura que mais lhe agradou (esteticamente), está demonstrando apreço a toda uma coletividade por cujos valores nunca nutriu o mínimo interesse em se aprofundar parece inexplicável até  perguntarmos: o intuito era mesmo demonstrar respeito ou só ficar bem na fita na frente dos coleguinhas?

Nem todo grupo de fato se incomoda com o que militâncias e estudiosos entendem por apropriação cultural. Em muitos países, por exemplo quando um astro pop internacional se apresenta diante de uma plateia usando algum elemento da cultura local a reação costuma ser bastante positiva. Afinal, essa pessoa veio de tão longe e se deu o trabalho de valorizar algum aspecto estimado e compartilhado com seu público. Contudo, uma coisa é alguém chegar aqui dizer um “o-bri-ka-dou” enrolado(a) numa bandeira do Brasil, e outra é essa mesma pessoa sair daqui se achando ícone da brasilidade por conta disso. Ou seja, se uma única pessoa, pertencente ao grupo de origem, demonstra desconforto, o mínimo que se pode fazer é manifestar respeito real, pedir desculpas e buscar entender por quais motivos a interpretação que se teve foi de um gesto tido ofensivo/incômodo/estereotipado.

“MAS PESSOAS NEGRAS ALISAM E PINTAM O CABELO DE LOIRO”

Outras duas coisas que nunca devemos confundir são aspectos culturais com aspectos físicos/genéticos. Trançar o cabelo da mesma maneira que os tataravós trançavam é algo bastante distinto de descolorir os fios do cabelo. Muita coisa. Mesmo! Embaralhar formas de fazer com variação genética é revelador de uma estupidez singular quando o assunto em pauta é apropriação cul-tu-ral.

Pessoas negras, e não-brancas no geral, sentem a necessidade de alterar atributos físicos, muito em parte, por conta de toda dominação cultural ainda herdada dos processos de colonização europeia. Pessoas negras não tinham como odiar a textura e cor do próprio cabelo/pele se não tivesse sido ensinados por cartilhas eurocentradas que cabelo liso é o cabelo “bom” e a ter o cabelo loiro como o ideal de beleza. Querer se adequar a um padrão estético que te despreza em nada se compara a se apropriar de algo do qual não se faz parte. Sujeitar-se a processos químicos, muitas vezes dolorosos, para se sentir menos rejeitado(a) pela sociedade em nada se equipara a se achar no direito de afanar traços culturais e usá-los como meros adereços/alegorias porque “deu vontade”.

Exemplo bom pra isso é o uso de dreads, tranças e turbantes. Cada um desses elementos é revelador de uma história de resistência afrodescendente à colonização europeia que tanto demonizou – e ainda amaldiçoa – tudo que tenha origens no continente africano. O próprio termo dreadlocks – que significa algo como tranças/cachos abomináveis – foi cunhado por colonizadores ingleses que enfrentaram um exército de jamaicanos “panafricanistas” que prometeram não cortar mais seus cabelos até que toda a negritude em Diáspora pudesse retornar ao continente-mãe. Em outras palavras, “penteados” podem possuir todo um histórico político que se descaracteriza quando uma pessoa (branca) o implanta na sua cabeça porque quer ser cool ou “inventar moda”. O mesmo vale para tranças e turbantes que também permanecem carregados de estigmas racistas, mas que quando passam a decorar cabeças brancas são tão esvaziados de identidade negra que passam até a ser aceitáveis admiráveis pela mesma opinião pública que taxa de “macumbeira” mulheres negras de turbante e de “exóticas” as que adere as tranças. Na tecla SAP do branquês: corre-se o sério risco de se ficar tão ridículo quanto um “caboclo” neonazista.

“ENTÃO POR QUE EU NÃO POSSO?”

Ilustração: Shannon Wright

Infelizmente, parte do legado de colonização ainda inclui o fato de que pessoas não-brancas não têm poder para decidir o que pessoas brancas podem ou não de fato. Sendo assim, não se trata de quem pode ou não pode utilizar determinada coisa. A triste realidade é que pessoas brancas sempre se sentiram no direito a tudo e a(os corpos de) todos, e a opinião ou sentimentos de pessoas negras e indígenas jamais foram levados em consideração. Não há nenhuma novidade nisso! O que está em questão são os sentidos que essa coisa deixa de ter ao ser utilizada por pessoas não integradas ao seu contexto original – cultivado ao longo de gerações. O que se pretende é lembrar a pessoas brancas é que o mundo não é um grande armário cheio de adereços e ornamentos a serem “desbravados” e apontados como “tendência”.

Diferentes culturas realmente têm a capacidade de se misturar e afetar umas as outras, porém a história recente dessas “trocas” costuma ter um final feliz apenas para pessoas de origem europeia. A manutenção e a retomada de tradições culturais por pessoas não brancas/ocidentais representam atos de oposição a padronização mundial. Elas resistem apesar de todos os processos de colonização e globalização propagadas pela Europa e seus descendentes. Portanto, quando elas são capturados pelo repertório cultural do ocidente elas passam a ser, mais uma vez, diminuídas e deturpadas em seus princípios.

Então se você ainda pretende, genuinamente, adotar algum traço cultural alheio e evitar polêmicas, comece pesquisando T-U-D-O sobre o seu berço cultural. De onde veio? Tem importância pra quem? Quais os usos e significados atribuídos pelos nativos? E, mais importante: certificar-se que não só os seus serão beneficiado pelo uso? Pois, uma coisa é usar turbante quando se é movido(a) pela dedicação a uma religião de matriz afro e se passa a comungar dos mesmos preceitos que a originaram, outra coisa é usar turbante porque decidiu fazer a/o rebelde e mostrar pro mundo que pensa muito diferente da avó que sempre dizia que “turbante é coisa de preto/macumbeiro”.

Pouco importa se você se dedica ao máximo para pra se parecer o mais negro possível, se você faz pouco caso da luta antirracista, por exemplo, por exemplo. De nada adianta se sentir negro culturalmente se você se mantém neutro indiferenteao nosso genocídio. Porque sem comprometimento com as pessoas responsáveis pela cultura apreciada, qualquer uso dela vira faz-de-conta, caricatura ou comércio, e a única tradição que se mantém é a iniciada pelos bárbaros“civilizadores” europeus há mais de 500 anos atrás. O desprezível hábito de “descobrir” o que nunca foi novidade para outros e achar que isso confere título de posse para uso irrestrito. A terrível mania de achar que a branquitude “agrega valor” a tudo que toca.

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