Homens negros relatam casos de racismo ao utilizar máscaras na rua

FONTEPor Fabiana Batista, da Universa
(Foto: Jerome Gilles/NurPhoto via Getty Images)

“Se você continuar falando demais, eu te levo preso, sua desgraça preta.” Com a voz abalada e permeada por pausas, o tecnólogo baiano D.S.S.* 38, relata para Universa um dos inúmeros casos de racismo que viveu. A diferença desta para as anteriores é que agora a agressão foi motivada pelo uso da máscara —essencial para reduzir o risco de transmissão do novo coronavírus.

“Minha namorada e eu paramos em um posto de gasolina. Enquanto eu abastecia o carro, ela foi até a farmácia. De repente, escutei o rádio da viatura parada ao lado: ‘Casal negro de máscara em um carro X de cor X’. Aquilo me chamou a atenção de imediato”, relata o tecnólogo.

“Prontamente, um policial veio à minha direção e pediu que eu saísse do carro. Atendi. Pediu meus documentos e os do carro, atendi novamente. Mandou que eu colocasse as mãos no capô. Eu, de novo, atendi. Quando minha companheira se aproximou e perguntou o que estava acontecendo, eu expliquei. Foi quando o policial disse: “Se você continuar falando demais, te levo preso, sua desgraça preta.”

Constrangido, ele, que prefere não ter seu nome publicado, conta que ele e a namorada ficaram em silêncio durante todo o trajeto para a casa e que, até agora, dias depois, nunca tocaram no assunto.

“Você é a primeira pessoa com quem converso sobre isso”, ele disse à reportagem. Ele acredita que o fato de estar com o rosto parcialmente coberto pela máscara potencializou o estereótipo de criminoso.

Para ele, não é possível se proteger contra o racismo nessas situações. “Mesmo sabendo que estou correndo risco, as pessoas precisam me respeitar independentemente da minha cor. Prefiro continuar me protegendo seja com uma máscara azul, branca ou preta [do que não usar].”

O sentimento ao viver casos de racismo como o relatado por D. são seguidos por impotência, raiva, dor e constrangimento.

O também baiano Cleber Xavier, 26, e os paulistanos Gabriel Matos, 30, e Cassimano Nanau, 37, relataram casos de preconceito racial e afirmaram que o uso das máscaras de proteção potencializou as agressões racistas.

“Não vou mentir: tiro a máscara porque posso ser confundido e morrer”

Cleber Xavier, que trabalha em uma instituição pública com monitoramento de vídeos em Salvador, percebeu que o uso da máscara de prevenção não seria tão simples quando voltava do trabalho para casa.

“Eu estava chegando no ponto de ônibus e passei por um carro. Sabe quando você cruza o olhar no retrovisor do motorista? Ele estava me olhando e, automaticamente, ligou o carro, e enquanto eu passava me acompanhou com os olhos. Percebi que ele estava com medo de mim e não entendi. Continuei andando, e quando passei, ele desligou o carro e continuou no mesmo lugar. Parei e raciocinei sobre aquilo, mas segui em frente.”

Ele também conta que é preciso redobrar o cuidado com a forma como age quando está com a máscara para tentar minimizar o risco que ele mesmo sofre. “Esses dias, em uma farmácia, estávamos apenas eu, a vendedora e uma senhora. Assim que entrei, me veio à cabeça: ‘você está com a máscara, aja de forma tranquila’.”

Cleber conta que agora evita o uso de chapéu e quando chega em seu bairro, na periferia da capital baiana, prefere tirar a máscara para não ser abordado caso a polícia esteja nas ruas.

“Ao ver um negro com máscara, as pessoas piram”

Em uma manhã de quinta-feira, em São Paulo, o diretor de arte Gabriel Matos saiu para fazer compras e foi seguido por uma viatura.

Gabriel Matos
(Foto: Arquivo Pessoal)

“Eu saí de manhã para ir ao mercado e peguei minha máscara, meu fone de ouvido, óculos escuros e andei alguns quarteirões até chegar lá. Mas ao perceber que o mercado estava fechado, voltei para casa.”

No caminho da volta, Gabriel percebeu que uma viatura o seguia. “Pausei a música para poder ficar mais atento caso alguém falasse comigo e andei em direção ao meu prédio. Durante todo esse trajeto, a viatura me seguiu sem falar nada, de perto e devagar”, conta. Ao entrar no prédio, a viatura acelerou e foi embora.

“De máscara, você sente um clima hostil contra você”

Cassimano Nanau, 37, é designer gráfico e morador do centro de São Paulo. Em entrevista a Universa, conta que segue o isolamento social com rigor, mas que, depois de duas semanas em casa, precisou ir ao banco e percebeu que há mais policiais nas ruas. Segundo ele, só a presença de viaturas já o faz se sentir angustiado.

Cassimano Nanau (Foto: Arquivo Pessoal)

“A rua estava vazia e os comércios, fechados. Eu entrei de máscara no banco e, na hora que os seguranças me viram, seguraram a arma, esperaram minha atitude, vigiaram o que eu ia fazer. Eu cheguei perto da porta giratória para pedir uma informação e senti que eles claramente ficaram em alerta.

Culpado até que se prove o contrário

O doutorando em sociologia pela IESP e especialista no tema da masculinidade negra, Henrique Restier afirma que, com a obrigatoriedade do uso de máscaras, casos como esses não serão isolados e fazem parte do histórico de vida dos homens negros.

“Essa é uma história secular em que os contextos se alteram, mas as ameaças continuam as mesmas.” Para ele, o estereótipo clássico do bandido que usa capuz, touca e máscara é parte da construção da imagem do homem negro durante a colonização no Brasil e ainda está representado em publicidades, novelas e cinemas.

Restier afirma que, ao longo dos séculos, “se constituiu um corpo jurídico para criminalizar essas pessoas, suas práticas culturais e criou-se um imaginário em torno de seus corpos, que carregam estereótipos negativos que os associam à criminalidade e à violência”. Para o pesquisador, isso tem reflexo até hoje na sociedade brasileira.

O temor em usar a máscara se dá também, segundo o pesquisador, pelas consequências que esse homem sofre quando é acusado de um crime. “No caso dos rapazes entrevistados, acredito que não implique apenas ser confundido com um ladrão, mas também suas consequências: eles não só passam por humilhações e constrangimentos, mas também sofrem violências físicas e, em alguns casos, são mortos”, diz.

“O homem negro vive o inverso da ideia de que é inocente até que se prove o contrário, ele será sempre culpado e antes que seja provado sua inocência já passou por uma série de violências.”

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