Ialorixá Wanda d’Omolú: ‘O mundo precisa tirar o mofo’

A ialorixá Wanda d’Omolú Foto: Divulgação/Cristiane Cotrim

Criadora do Centro Cultural de Tradições Afro-brasileiras YIê Asè Egi Omim, em Santa Teresa, mãe de santo diz que ‘não podemos voltar ao normal depois do coronavírus, porque o normal era justamente o problema’

Por Maria Fortuna, do O Globo

A ialorixá Wanda d’Omolú (Foto: Divulgação/Cristiane Cotrim)

O terreiro da ialorixá Wanda d’Omolú está fechado. Mas isso não abala a fé dessa sacerdotisa do candomblé, que reza “do portão para dentro” todos os dias, às 10h e às 19h. As orações acontecem em conexão com casas de axé da Bahia, de Goiás e Pernambuco. Carioca, 61 anos, filha de Omolú com Oxum, coordenadora de projetos sociais como o Se Essa Rua Fosse Minha, Wanda é ialorixá há 36 anos. Seu terreiro ficava na Ilha de Guaratiba, mas em 2018 ela baixou com a família e filhos de santo numa casa em meio à Floresta da Tijuca, em Santa Teresa.

— Trazer um terreiro de candomblé para o Centro do Rio neste cenário de desrespeito aos cultos de matriz africana é um ato político — defende. — Até quando viveremos escondidos? Este é um bairro ligado à ancestralidade, foi rota de escravos. Somos um novo quilombo, assim como as favelas.

Para Wanda, o sagrado vai além de ritos religiosos. Por isso, em 2012, criou, no mesmo terreno de Santa Teresa, o Centro Cultural de Tradições Afro-brasileiras YIê Asè Egi Omim, que hoje conta com parceria da rede de financiamento consciente Muda. Lá, em tempos normais, acontecem aulas e eventos. Agora, o Facebook do centro publica dizeres sobre o momento. Wanda também resgata rezas e cantos de cadernos de antecessoras.

— Como nossa cultura é oral, pode-se levar tempo até que se ouça novamente uma reza. Os diários são fundamentais, são o nosso livro preto. Se muitas das nossas mais velhas não tinham formação, as que vieram de África escravizadas, além de iorubá, aprenderam português, inglês, francês — diz.

Wanda também tem papel fundamental no carnaval do Cordão do Boitatá. É responsável pelos cuidados espirituais do coletivo, que não bota o bloco na rua sem a bênção dos orixás. Na semana passada, ela concedeu a seguinte entrevista ao GLOBO:

O que as religiões de matriz africana podem nos ensinar?

Ser de matriz africana é viver em dois mundos: o do lado de dentro, em que se recebe a pedagogia dos ancestrais; e o do lado de fora, com a educação ocidental, do colonizador. O de fora é o mundo dos bobos, que construiu bombas, incentivou competição, ganância, desmatamento. No terreiro, é a pedagogia do ser. Há ritual para ter um nome, conhecimento de onde se vem, do que está fazendo aqui, do que a sua família ancestral pede. É individual, olhando para dentro de si. Mas as ações do terreiro são coletivas. Se agora dizem “cuidem dos velhos, protejam as crianças”, esta sempre foi uma prática do terreiro.

O que os orixás dizem sobre este momento?

A nossa bíblia é a natureza, o vento fala conosco. É o momento da volta do facão para o mato. Porque o homem come e bebe do mato, depois vai e corta tudo. O mato resolveu dar a resposta. Tínhamos sido avisados de que o mundo iria parar. Nossos vudus e orixás diziam que, do jeito que estava, não dava mais. Que chegaria o momento em que teríamos de nos reinventar e voltar à essência para sobreviver ao mundo dos bobos. A Terra está passando por uma limpeza, temos que rever nossas posturas e valores, o consumo de bens materiais.

Daqui a pouco, ela estará limpa e nós teremos oportunidade de fazer diferente. Não podemos voltar ao normal, porque o normal era justamente o problema. Em uma de nossas histórias, Oxaguian, jovem, vem e quebra tudo. Depois chega Oxalufan, mais velho, detalhista, e vai, calmamente, botando tudo no lugar. Não é o poder do capital, mas do invisível guiando. Meu caboclo avisou que viveríamos tempos difíceis, que mesmo tendo dinheiro, não conseguiríamos comprar as coisas. Agora, ir ao supermercado é um risco. O isolamento induz a formar parcerias verdadeiras.

A hora é de reflexão individual e ações pelo coletivo…

Sim, e quem pode fica em casa, tranquilo. Em relação à quarentena, nós de terreiro estamos acostumados. Ao silêncio, a ficar reclusos, a fazer jejum, a comer dividindo com quem está perto. Essa rede de solidariedade que está acontecendo, o povo preto conhece há tempos. Nos curvamos à natureza, aos orixás.

O mundo precisa se curvar agora, tirar o mofo, o lixo, se voltar para os valores que importam. A gente perde tempo com bobagem e vai ter que rever isso. É hora de ouvir, reaprender a comer, diminuir o consumo de tudo, primar pelo saudável, pelo corpo são, por qualidade de vida e Humanidade.

Como lida com a intolerância religiosa?

Chamo de racismo religioso, porque é direcionado à cultura preta. Ninguém nasce racista, isso é plantado. As pessoas caçoam, fazem pouco caso dos nossos valores espirituais, acham que somos afrobalada. Mas o que acontece nos terreiros é muito sério, o tambor acorda, a erva purifica.

Muitas crianças não podem ir à escola paramentadas com nossos fios de conta, cumprindo seus ritos porque são agredidas. Não estão acostumados a respeitar o diferente. Já o candomblé aceita tudo: preto, amarelo, gay, lésbica. Não que a gente não tenha uma cartilha, mas nosso maior ensinamento é o acolhimento, o cuidado, a partilha.

Acha que a pandemia pode servir para as pessoas perceberem que é mais potente unir nossas diferentes crenças e rezar pelo bem comum?

Não há outro jeito. Temos rezar, cada um no seu quadrado. Todos estamos com medo de morrer. As religiões estão rezando numa direção só: pela cura da Humanidade. Meu terreiro está fechado por responsabilidade social, todos têm que fazer isso. Os orixás dizem para ficarmos reclusos, temos que ouvir o que o universo está dizendo.

Os cultos envolvem toque, contato. Como enfrentar essa impossibilidade agora?

O orixá abraça, mas não só. Da minha varanda sinto o vento clamando, não tem quarentena nem fronteira para ele. Eu me conecto com a natureza, que pede mudança de postura. Rezo para que a gente possa se abraçar novamente.

O que vivemos é o maior “presta atenção”. Não é besteira, e vai demorar bastante a passar. O universo está dizendo “Chega!”. O dinheiro não adianta, está morrendo todo mundo. Peço pelos trabalhadores, pelas favelas, onde a água para lavar a mão é insalubre. A Terra se alimenta de carne, quem morrerá em maior quantidade?

 

Leia também:

‘Voltar ao normal seria como se converter a negacionismo e aceitar que a Terra é plana’, diz Ailton Krenak

-+=
Sair da versão mobile