“Identidade” e as subcamadas do racismo: O que é ser negro/negra?

Sem julgamentos, o filme baseado no romance de Nella Larsen mostra que o racismo, em suas sutilezas mais cortantes, quase nunca é óbvio.

FONTEElle, por Joice Berth
Joice Berth (Foto: Wendy Andrade)

Você é capaz de identificar todas as subcamadas que o racismo constrói na vida de pessoas negras?

Não?

Não se preocupe. Até para as próprias pessoas negras existe uma dificuldade gigantesca em avaliar o nível de violência que o racismo é capaz de alcançar e todas as formas como ele se manifesta em suas vidas.

Estamos acostumados a viver ou visualizar a face mais escancarada do racismo e de seus estragos. Mas há outras faces que muitos não têm nem ao menos bagagem e vivência prática da consciência racial necessária para identificar o que atua muito além dos xingamentos e exclusões explícitas e, principalmente, muitos não têm coragem suficiente para encarar de frente. Muito me espanta o susto generalizado diante de falas alienadas vindas de pessoas negras, como no caso recente da participante do BBB Natalia Deodato, que, do alto de seu negacionismo ou talvez como autoproteção inconsciente, acredita que a escravização se deu por qualidades observadas nos africanos explorados, e não por malandragem da branquitude europeia.

Esse problema, que é resultante do racismo somado ao plano de “deseducação” política que reverbera entre os brasileiros e brasileiras, impossibilita que possamos construir de forma racional maneiras de lidar com questões mais profundas causadas pelo racismo, ou que eu chamo de subcamadas, porque não são invisíveis mas, quase sempre, dada a sutileza, se tornam difíceis de serem captadas e, mais ainda, explicadas.

Identidade (Passing), um dos melhores lançamentos da Netflix em 2021, estrelado pela excelente Tessa Thompson (Dear white people) e pela inigualável Ruth Negga (Loving, de 2016, que lhe rendeu uma indicação ao Oscar), aborda a questão com sensibilidade artística e imparcialidade notáveis. O filme marca a estreia de Rebecca Hall como diretora, que também assina o roteiro baseado no romance Passing, de Nella Larsen.

Ambientado na Nova York da década de 1920, o longa-metragem conta a história de duas mulheres negras, ambas de pele clara ou não retintas, amigas de infância que se reencontram casualmente na idade adulta: Irene, vivida por Tessa, e Claire, interpretada por Negga.

Clare é tão clara que consegue se passar por branca, o que lhe garante um rico casamento com um banqueiro assumidamente racista e uma vida de privilégios. Já Irene é esposa de um médico negro retinto, mãe de dois meninos negros, dona de casa e envolvida (levemente) com as causas raciais dentro de um círculo social de negros bem-sucedidos (dentro do que era possível para a negritude da época), que moram no Harlem renascentista (New Black Movement ou Renascimento do Harlem foi um movimento político cultural da negritude norte-americana da decada de 1920, do qual fizeram parte figuras como Louis Armstrong, Zora Neale-Houston, Langston Hughes etc.).

O encontro entre as duas levanta questões até então mal resolvidas para ambas: Irene, em constante tensão e negação da restrição de liberdade e segurança que o racismo impõe, e Claire, em constante negação do adoecimento emocional que o abafamento de sua real identidade e a convivência com um racista assumido lhe causou.

A genialidade do filme está na maturidade de não julgar ou decretar o que é certo e o que é errado na experiência de vida das duas, coisas que um público ávido por cancelamentos e acusações como o do Big Brother Brasil jamais teria a imparcialidade de exercer. Em se tratando de mulheres negras, todos os pesos são duplos, mesmo na ficção. E podemos terminar o filme com a empatia aflorada pela história das duas, ainda que Claire desperte mais a criticidade por desfrutar de uma situação de poder que Irene não tem e que é dada pelo dinheiro.

A genialidade do filme está na maturidade de não julgar ou decretar o que é certo e o que é errado na experiência de vida das duas, coisas que um público ávido por cancelamentos e acusações como o do Big Brother Brasil jamais teria a imparcialidade de exercer.

Rebecca Hall conduz o espectador, com essa mesma empatia que vai nos despertando ao longo da trama, a uma reflexão fria, analítica, quase que como um experimento científico visual, para no final nos deixar “livres” para concluir que, obviamente, tudo que se passa nessa trama é obra do racismo. Mas também nos leva a entender que quase nunca o racismo, em suas sutilezas mais cortantes, é óbvio. Inclusive, a falta de diálogo sobre o cerne das questões acaba por abrir ainda mais o diâmetro do abismo que distancia todas as pessoas, negras e brancas, envolvidas na trama.

A escolha pela estética P&B, que remete a uma atmosfera clássica e elegante, típica do cinema noir, me parece também um trampolim para uma crítica muito pontual: primeiro, porque evoca uma discussão clássica da negritude: o que é ser Negro/Negra?

Segundo, porque enfatiza que o desinteresse da branquitude por esses assuntos mais sutis e igualmente profundos, o que também é clássico e sempre presente, se serviu do cinema por décadas para alienar tanto branquitude quanto negritude.

Enquanto brancos forjavam dramas e os envernizavam com uma polarização cromática para impactar o espectador que se acreditava modelo universal de existência humana, carente de dramas reais, a negritude realmente os vivenciava, ao vivo e a cores, nas mais variadas formas de violência racial, inclusive praticando uns contra os outros.

Toda a estética do filme nos remete ao passado porque não estamos falando de problemas novos ou inéditos. Estamos falando sobre questões ainda negligenciadas, sobretudo porque exigem um mergulho interior profundo e coletivo dentro da sociedade que tem medo de reconhecer erros e limites, tanto da negritude quanto da branquitude.

Mas seria leviano não atentar para a discussão sabiamente exposta de como as distorções do comportamento humano também impactam nas questões raciais. Claire, apesar de dizer que tem tudo o que sempre quis, sente inveja de Irene e passa a “roubar” sua vida. Irene se sente cerceada pelo racismo da sociedade, mas não consegue enxergar que sua inteligência e aceitação da própria identidade é o que a mantém livre. O filme, em alguns momentos, insinua uma atração sexual entre as duas, o que poderia levantar uma discussão sobre bissexualidade muito oportuna para o momento, já que muitas repulsas, severas e violentas, podem muito bem ser a expressão inconsciente de atrações sexuais que os preconceitos e crenças sociais bloqueiam nas pessoas, já na infância. Se na época do Renascimento do Harlem ser negro ou negra já pesava tanto, imagine ser bissexual ou outra vivência LGBT qualquer?

No momento em que captamos a inveja de Claire, é possível entender que embranquecer vai além da aparência ou da estética, já que ela age exatamente igual às mulheres brancas quando sentem necessidade de reivindicar o olhar da sociedade sobre elas: choram e evocam o estereótipo da fragilidade natural da mulher branca, que trabalha em oposição ao estereótipo de “raivosa” conferido a mulheres negras que brigam, literalmente, por respeito.

E isso funciona, já que tudo que a misoginia quer e precisa é da falácia do “sexo frágil” como garantia de que a supremacia da masculinidade, branca ou negra, será respeitada.

Não por acaso isso é percebido por um homem branco, Hugh (Bill Camp), o amigo a quem Irene pergunta a certa altura:

“Afinal de contas, não estamos todos nos passando por algo que não somos?”

Outra abordagem importante, porque traz a questão de classe social aplicada à questão racial, que é mais um assunto tremendamente negligenciado, é a existência de uma empregada na casa dos Redfield. Ela sim, negra retinta, o tom mais escuro e mais rejeitado de negritude, não apenas na trama como também na vida real. A empregada representa as mulheres negras que não têm “opção” de se embranquecer e que cuja militância é sempre contestada e assimilada como um perigo. Tanto que a empregada se mantém na condição de subalternidade e invisibilidade o tempo todo, como na vida real, mesmo dentro de um lar preto, onde pessoas lutam contra o modus operandi do racismo. Ou seja, os oprimidos reproduzem a linguagem da opressão em suas vidas e histórias cotidianas, como bem pontuou Paulo Freire e Michel Foucault, esse último quando fala em “poder”.

E no final a brancura domina tudo, gelada, silenciosa e altamente influente, avisando que irá continuar ditando regras. O filme é, sem dúvidas, apesar da tensão e dos questionamentos cortantes que levanta, um oásis de inteligência cinematográfica, com direção e roteiro maduros e responsáveis, ambientação impecável, figurino e trilha sonora perfeitos, temperado com grandes atuações e uma fotografia primorosa. Imperdível e necessário.


Joice Berth é arquiteta, urbanista, escritora, feminista e apaixonada por uma boa série. É autora do livro O que é empoderamento, da coleção Femininos Plurais.

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