Imagem acolhedora do Brasil não se aplica a imigrantes negros, diz sociólogo

Para pesquisador, receptividade de brasileiro é seletiva, e migrantes africanos e haitianos são alvos de duplo preconceito

FONTEFolha de São Paulo, por Flávia Mantovani
Alex Vargem (segurando a bandeira, de máscara) durante marcha de nigerianos em outubro de 2020 em São Paulo; comunidade foi às ruas pedir o fim dos assassinatos cometidos por forças policiais da Nigéria - Arquivo pessoal

A imagem do Brasil como uma terra acolhedora não se sustenta se olharmos para seu passado escravagista —ou para o presente de muitos imigrantes negros que chegam ao país. Para o sociólogo Alex Vargem, 41, que cresceu em meio à militância familiar em movimentos afrodescendentes e há 20 anos pesquisa a imigação africana em São Paulo, tanto o Estado quanto a sociedade brasileira adotam historicamente uma atitude seletiva em relação aos estrangeiros, baseada na cor da pele.

Isso pode ser constatado, segundo Vargem, por vários exemplos antigos e recentes —das leis pós-abolição que incentivaram a chegada de trabalhadores da Europa e proibiram a vinda de pessoas da África às dificuldades que os imigrantes haitianos e africanos enfrentam atualmente para conseguir bons empregos no Brasil.

Ele observa que esses imigrantes enfrentam tanto episódios de xenofobia explícita quanto dificuldades mais sutis relacionadas ao racismo estrutural que, em sua opinião, têm contribuído para a saída de milhares de haitianos que vivem no Brasil por rotas perigosas em direção aos EUA.Filho de Edna Vargem, ativista que participou nos anos 1970 de “E Agora Falamos Nós”, icônica peça de teatro com elenco exclusivamente negro dirigida por Thereza Santos e Eduardo Oliveira, o sociólogo defende uma aproximação entre os movimentos de afrodescendentes brasileiros e os de imigrantes e refugiados africanos.Ele diz que não dá para igualar a migração europeia ao sequestro de africanos escravizados ao longo de 350 anos. “Os brasileiros com antepassados brancos ou asiáticos se orgulham do pai espanhol, do bisavô alemão, japonês. Isso é bonito, é lindo. Mas nós, afrobrasileiros, não conhecemos nossas origens porque esses registros foram apagados. Isso é uma ferida aberta.”

Por que você considera que a ideia de que o Brasil é um país acolhedor em relação aos estrangeiros é um mito? Nos debates sobre migração, existe aquela frase: “Somos todos migrantes”. Tenho um olhar crítico sobre isso porque, se olharmos para a fundação do Brasil, vemos que o país foi construído à base da escravidão. De qual país acolhedor estamos falando? Um Estado que patrocinou a escravidão, que foi o que mais escravizou pessoas, o último a ter a abolição.

E depois da abolição tivemos políticas higienistas de embranquecimento da população brasileira. Além do incentivo à vinda de europeus, houve vários decretos proibindo a entrada de africanos no Brasil.

Os brasileiros com antepassados brancos ou asiáticos sabem de suas origens, orgulham-se do pai espanhol, do bisavô alemão, japonês. Isso é bonito, é lindo. Mas nós, afrobrasileiros, não conhecemos nossas origens porque esses registros foram apagados. Isso é uma ferida aberta. Os próprios sobrenomes das pessoas foram apagados, muitas recebiam o sobrenome da família que os escravizava. Não dá para igualar à migração europeia o caso desses homens e mulheres que foram raptados, jogados ao mar, que sofreram uma conjunção de violências. Seria romantizar a história.

Atualmente, o acolhimento do brasileiro a imigrantes também é seletivo? Sim. O africano que chega aqui hoje é visto como o refugiado, uma vítima passiva à espera de ajuda. E é claro que tem pessoas que passam por adversidades, mas muitos são intelectuais, profissionais liberais, estudantes. Temos africanos fazendo pesquisa de ponta em grandes universidades, mas isso não os exime de serem discriminados, xingados, de sofrerem xenofobia. Em 2007, na UnB, atearam fogo a três apartamentos onde viviam estudantes africanos enquanto eles dormiam. Na Unesp, em 2012, fizeram pichações racistas contra intercambistas da África. Muitas vezes a violência que não é manifestada contra corpos de negros brasileiros é manifestada contra corpos de imigrantes que aqui estão.

O imigrante negro não é visto como alguém com talentos, que pode ajudar a desenvolver o Brasil? O negro imigrante é inserido em nosso contexto de racismo estrutural. Há acadêmicos com doutorado na França, que poderiam estar em postos-chave, mas não conseguem ascender. Antes do advento das ações afirmativas, muitos universitários brancos de elite nunca tinham se sentado ao lado de um negro em sua trajetória escolar até passarem a estudar com dois ou três intercambistas africanos. Isso era um choque para esses brasileiros e para os africanos também.

É comum imigrantes negros descobrirem o que é racismo aqui? Acontece muito. Nos países africanos há diferenciações do ponto de vista étnico, é outra realidade. Aqui existe o racismo explícito, dos xingamentos ou da violência, mas existe também o racismo sutil. Para muitos deles, entender isso exige um esforço. Nesse processo pedagógico de compreender o Brasil, eles começam a perceber que, mesmo tendo todo o potencial, não conseguem avançar muito. E aí eu faço uma crítica construtiva ao terceiro setor: mesmo nas organizações que fazem um trabalho bonito com migração, a gente não vê imigrantes negros —nem afrodescendentes brasileiros— em postos de coordenação. Eles são contratados para abrir a porta ou fazer atendimentos, mas não estão no conselho fiscal, na diretoria.

Muitos imigrantes são vítimas do racismo estrutural, mesmo sem reconhecerem isso. E esse racismo estrutural está produzindo uma massa de pessoas migrando para outros países.

Você se refere aos haitianos e africanos que saem do Brasil migrando para os EUA? Sim. Quando você vê as narrativas [desses imigrantes], a pessoa vai falar bem do Brasil, vai dizer que ama o país, mas que precisa sair porque não consegue dinheiro suficiente para sua sobrevivência. Isso também tem a ver com o racismo estrutural. O sujeito pode ter formação, diploma, mas consegue [nem] empregos precários.

Que outras dificuldades os imigrantes negros enfrentam no Brasil? Já começa com a xenofobia de fronteira. Os que não são brancos têm mais probabilidade de serem barrados em aeroportos, mesmo tendo vistos, reserva de hotel e todas as prerrogativas. E ainda acontece de africanos chegarem aqui escondidos em porões de navios de carga. A pessoa está numa rota de fuga, vê um navio com bandeira canadense, por exemplo, dribla a segurança no porto e entra no porão. O navio faz escala em Santos, eles são descobertos e enviados a seus países, o que viola o princípio de não devolução [tratados internacionais que proíbem a repatriação de imigrantes que pedem refúgio]. Ou seja, existe a lei, a salvaguarda jurídica, mas como isso é aplicado na ponta?

Você vê algum paralelo entre esses casos e o passado colonial escravagista? Podemos fazer algumas reflexões, e uma delas é que nos remete aos navios negreiros. Em 2003, em um navio chinês no Recife, um grupo de africanos foi jogado ao mar pela tripulação. Por sorte, foram resgatados por um barco de pescadores. Em 2011, nigerianos foram aprisionados em um navio de bandeira turca no porto de Paranaguá porque os agentes de fronteira os consideraram ameaças à saúde pública e à segurança nacional. Ainda hoje chegam africanos nos porões, sofrendo todo tipo de violência.

A dimensão racial é levada em conta nas políticas públicas para imigrantes no Brasil? Temos que racializar o debate da migração. O imigrante às vezes é visto como um sujeito abstrato, sem cor. A lei de migração de 2017 foi um grande avanço, mas ainda é preciso garantir aos imigrantes o direito à fala e à esfera de decisão. Não é só estarem de enfeite no conselho, eles devem ocupar esses espaços, não dá para ficar só como antigamente, em que a pessoa faz a comidinha, canta no coral, todo mundo bate palma e vai embora.

A inclusão pela cultura é limitada? É muito legal que o brasileiro se aproxime das populações imigrantes pela questão cultural, da comida, da dança. O problema é quando não há outras possibilidades, outras portas se fecham e a pessoa só tem aquilo para fazer. Essa é a crítica. É preciso ir além. Às vezes a sociedade brasileira aceita a pessoa que bate tambor, mas manifesta xenofobia em relação àqueles que transcendem esses limites sociais e territoriais, que querem opinar e estar nos espaços de decisão.

Os imigrantes africanos e haitianos estão organizados? O racismo é uma pauta desses movimentos?
São Paulo tem hoje uma multiplicidade de coletivos e associações de imigrantes que estão reivindicando seu lugar de fala para diversas pautas. Alguns olham para a questão racial brasileira, outros para questões que afetam todos os imigrantes. E é interessante notar que muitos grupos vão às ruas para dar visibilidade ao que está acontecendo em seus países, denunciar um massacre, um genocídio. Tem a comunidade de Biafra [região no leste nigeriano que declarou independência em 1967] se posicionando quando uma liderança é presa, grupos de Angola e da Nigéria questionando o governo local. É um ativismo transnacional, que quer chamar a atenção dos brasileiros para o que acontece do outro lado do mundo, já que o Brasil muitas vezes não olha para a África.

Os movimentos negros brasileiros têm interlocução com as pautas dos imigrantes negros? Muitos movimentos sociais brasileiros não sabem como é a vida do imigrante, e alguns grupos africanos não se reconhecem nas pautas dos movimentos negros brasileiros. Nos últimos quatro anos alguns grupos têm se aproximado para construir uma pauta conjunta, há uma comoção do movimento negro brasileiro quando um imigrante negro é assassinado, mas ainda não existe uma agenda comum consolidada. Os dois lados estão se conhecendo.


O sociólogo Alex Vargem, 41, que pesquisa a imigração africana no Brasil – Arquivo pessoal

ALEX VARGEM, 41

Sociólogo pela PUC-SP e diplomado em direito dos refugiados pelo International Institute of Humanitarian Law (IIHL), na Itália, é doutorando em ciências sociais pela Unicamp. Assessor da Comissão de Direitos Humanos, Migrantes e Combate à Xenofobia do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe), é membro de movimentos de afrodescendentes e pesquisa há mais de 20 anos a temática de imigrantes e refugiados africanos no Brasil.

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