Impacto do racismo na saúde mental

FONTEPor Claudia Petlik Fischer, Thiago Fernando e Maria Alice Fontes*, do Estadão
Getty Images

“Ninguém pode ser autenticamente humano
enquanto impede que os outros o sejam.”
Paulo Freire

Há uma prolífica discussão nos meios acadêmicos que os conceitos de raça e etnia são construções sociais dependentes das complexas relações vigentes dentro dos grupos sociais. De acordo com muitos autores o conceito de raça serve para garantir o funcionamento de normas sociais, em sociedades marcadas por uma grande desigualdade.

Silvio Luiz de Almeida, autor do livro “O que é racismo estrutural?” argumenta que o racismo pode ser definido a partir de três concepções: 1) individualista, pela qual se apresenta como uma deficiência patológica, decorrente de preconceitos; 2) institucional, pela qual se conferem privilégios e desvantagens a determinados grupos em razão da raça, normalizando estes atos, por meio do poder e da dominação; e 3) estrutural que, diante do modo “normal” com que o racismo está presente nas relações sociais, políticas, jurídicas e econômicas, a responsabilização individual e institucional por atos racistas não extirpam a reprodução da desigualdade racial.

Dados do IBGE de 2019 apontam que a população negra e parda representa 56% da população brasileira. Esses indivíduos constituem uma proporção majoritária dentro dos que vivem em situação de rua, das pessoas privadas de liberdade, das que vivem na extrema pobreza e em domicílios que não respondem aos padrões de habitabilidade, com ausência de abastecimento de água e ou esgotamento sanitário como nas favelas. Entretanto, os números mais acentuados são os de violência armada. A taxa de homicídios de brasileiros negros é de 37,8 para cada 100 mil habitantes, contra 13,9 de não negros.

A população negra e parda também é maioria entre os que apresentam menores rendimentos ou sobrevivem da informalidade; dos que dependem do lixo de natureza reciclável ou não; das empregadas domésticas; cuidadoras de idosos, dos que estão em situação de insegurança alimentar. Essa população infelizmente apresenta grande dificuldade de acesso a serviços de saúde, assistência social e educação. As diferenças de saúde entre grupos raciais e étnicos geralmente são secundárias às piores condições econômicas e sociais, mais comuns entre as minorias.

Quais são os efeitos do racismo na saúde mental?

Em relação à saúde mental, os dados são alarmantes. A cada 10 jovens que se suicidam no Brasil, 6 são negros (Ministério da Saúde e UNB, 2016). Além da maior prevalência de transtornos mentais em indivíduos negros, múltiplas barreiras de acesso ao tratamento culminam com piores evoluções dos quadros clínicos.

A sensação opressora de não pertencimento, frequentemente citada por indivíduos segregados em nossa sociedade é sentimento relevante para a saúde mental, impactando em desequilíbrio nos diversos aspectos da pessoa. Estar saudável vai além de não ter doenças, mas sim um estado pleno de bem-estar biopsicossocial.

O racismo é fonte de grande sofrimento, já tendo sido objeto de análise pelo Conselho Federal de Psicologia, em sua resolução nº18/2002. Neusa Santos Sousa, importante intelectual brasileira registrou de forma incisiva a questão do racismo: “Eu sinto o problema racial como uma ferida. É uma coisa que penso e sinto todo tempo. É um negócio que não cicatriza nunca.”

Racismo gera ansiedade, angústia e insegurança. Violência sistemática do Estado, com um número assustador de mortes na juventude, encarceramento em massa e exposição continua a situações constrangedoras desde a infância estão associados ao adoecimento psíquico dos indivíduos negros.

Nota-se ainda a alta incidência de ansiedade e baixa auto estima, em decorrência da invisibilidade e racismo na escola. Os negros e pardos não conseguem se ver em muitos locais, já que a cultura e os espaços são predominantemente brancos, o que leva a um sentimento de muita solidão. É de grande importância saber nomear situações que vivenciam, verbalizar o que passaram e como se sentem a fim de promover tratamentos de saúde mental.

Quais são os efeitos do racismo desde a infância?

1. Corpo em estado de alerta constante

O racismo e a violência dentro da comunidade e a ausência de apoio para lidar com isso são experiências adversas. Passar constantemente por essas experiências na infância faz com que o cérebro se mantenha em estado constante de alerta, provocando o chamado “estresse tóxico”. Anos de estudos científicos mostram que, quando os sistemas de estresse das crianças ficam ativados em alto nível por longo período de tempo, há um desgaste significativo nos seus cérebros em desenvolvimento e outros sistemas biológicos, diz o Centro de Desenvolvimento Infantil da universidade de Harvard.

Isso pode ter efeito a longo prazo no aprendizado, comportamento, saúde física e mental. Um crescente corpo de evidências das ciências biológicas e sociais conecta esse conceito de desgaste (do cérebro) ao racismo. Essas pesquisas sugerem que ter de lidar constantemente com o racismo sistêmico e a discriminação cotidiana é um ativador potente da resposta de estresse.

2. Mais chance de doenças crônicas ao longo da vida

A exposição ao estresse tóxico é um dos fatores que ajudam a explicar diferenças raciais na incidência de doenças crônicas. As evidências são enormes: pessoas negras, indígenas e de outras raças nos EUA têm, em média, mais problemas crônicos de saúde e vidas mais curtas do que as pessoas brancas, em todos os níveis de renda, sugerem o artigo de Harvard.

3. Disparidades na saúde e na educação

Os problemas descritos acima são potencializados pelo menor acesso aos serviços públicos de saúde. Segundo levantamento do Ministério da Saúde, 67% do público do SUS (Sistema Único de Saúde) é negro. No entanto, a população negra realiza proporcionalmente menos consultas médicas e atendimentos de pré-natal.

E, entre os 10% de pessoas com menor renda no Brasil, 75% são negros. Na educação, as disparidades persistem. Crianças negras de 0 a 3 anos têm percentual menor de matrículas em creches. Na outra ponta do ensino, 53,9% dos jovens declarados negros concluíram o ensino médio até os 19 anos —20 pontos percentuais a menos que a taxa de jovens brancos, apontam dados de 2018 do movimento “Todos Pela Educação”.

Como romper o ciclo?

As formas de combater o racismo são complexas e múltiplas. O olhar da saúde mental para esta temática, a subjetividade da pessoa negra, está ainda começando a ter espaço. Teorias e contos, por exemplo, são sempre baseados na subjetividade do homem branco.

Enquanto as teorias europeias de psicologia não concebem a opressão racial como causadora do sofrimento psíquico, o racismo segue provando sua letalidade com os inúmeros casos de depressão e suicídio.

Um nome de destaque nesse campo é Frantz Fanon, Médico psiquiatra e filósofo nascido em Martinica, um influente pensador acerca da descolonização e da psicopatologia da colonização. Fanon, em sua obra seminal “Pele negra, máscaras brancas” aborda a questão do racismo de maneira magistral, discutindo como a opressão e violência sistemática e cotidiana dos processos colonizadores afetam os indivíduos negros.

A vinculação dentro das comunidades e o incentivo para que se criem e fortaleçam uma rede de apoio com pessoas negras é fundamental para aumentar o sentimento de pertencimento.

Olhar para a ancestralidade do indivíduo permite o resgate de quem a pessoa é, de onde vem, como a família lida com a questão para assumir a identidade e enfrentar os desafios que a pessoa encontra.

Sabe-se que o acesso a um profissional de saúde mental sensível a essas questões, também acaba sendo um empecilho. Cabe também aos profissionais da saúde mental promover a criação de espaços para a expressão livre do preconceito e da discriminação racial. O incentivo aos estudos sobre as relações raciais no Brasil são fundamentais para enfrentar a desigualdade racial e minimizar o sofrimento psíquico da população negra brasileira, que parece se iniciar ainda na infância.

Como o racismo esconde uma tentativa de desumanização?

Segundo Brene Brown, a desumanização é um processo que geralmente começa com a criação de uma imagem que alimentou inúmeros atos de violência, violações dos direitos humanos, crimes de guerra e genocídios. Torna a escravidão, a tortura e o tráfico de pessoas possíveis. Desumanizar os outros é o processo pelo qual aceitamos violações contra a natureza humana, o espírito humano e, para muitos de nós, violações contra os princípios centrais de nossa fé.

Como isso acontece? Quando ouvimos pessoas serem chamadas de animais ou “coisas”, devemos imediatamente nos perguntar: “Isso é uma tentativa de reduzir a humanidade de alguém para escapar impunes de feri-los ou negar-lhes os direitos humanos básicos?” Nunca devemos tolerar a desumanização, pois ele é o principal instrumento de violência que foi usado em todos os genocídios registrados ao longo da história.

Fazemos parte da minoria de profissionais de nosso país. Entendemos que nosso “lugar de fala” social seja de pessoas brancas, e reconhecemos a importância de nos engajar na luta pela humanização. Segundo Djamila Ribeiro, pessoas brancas não costumam pensar sobre o que significa pertencer a esse grupo, pois o debate racial é sempre focado na negritude. Para desnaturalizar nossos privilégios, segundo ela, todos devem questionar o contexto que vivemos e pensar em ações que mudem essa realidade. Perceber-se é necessário e nos permite situar nossos privilégios diante de injustiças contra grupos sociais vulneráveis.

Referências:

episódio Chega Junto #12 – Saúde Mental do Jovem Negro de Chega junto https://open.spotify.com/episode/6tFDJMuoIZy2WA81WJxVdS?si=lxoZEFyiTIG5SQhO3DR7vg

https://g1.globo.com/pa/para/noticia/2020/11/25/impacto-do-racismo-nasaude-mental-dos-negros-e-tema-de-debate.ghtml

https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2179-89662018000402581

http://newpsi.bvs-psi.org.br/tcc/170.pdf

Them and Me — The Care and Treatment of Black Boys in America, Kevin M. Simon, M.D.

https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/bbc/2020/12/09/4-efeitos-doracismo-no-cerebro-e-no-corpo-de-criancas-segundo-harvard.htm

https://brenebrown.com/blog/2018/05/17/dehumanizing-always-starts-withlanguage/

*Claudia Petlik Fischer é psicóloga, pós graduada em Neurociências; Thiago Fernando da Silva é psiquiatra Forense pelo Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP; Maria Alice Fontes é psicóloga, doutora em Saúde Mental pela Unifesp.
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