Infâncias, Intersecção e Educação Infantil: Quem tem direito ao afeto?

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por Flávio Santiago para o Portal Geledés

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O debate acerca das intersecções tem suscitado importantes debates no campo do feminismo e das relações raciais, dentro dessa debate trago um pouco do contexto da educação infantil, para pensar essas relações:

As crianças pequenininhas estavam chegando à creche. Eu estava perto da estante de brinquedos enquanto as observava entrar na sala e começar a se organizar nos grupos de brincadeiras. Carolina [menina negra pequenininha] se aproxima de mim com uma boneca negra nos braços e me entrega. Sem hesitar, pergunto para ela:

– É a nenê? Vamos fazer ela dormir?

Ela olha pra minha cara e diz:

– Não é nenê, ela é preta, se vira sozinha!

Um pouco atônico com as palavras que a menina negra pequenininha havia me falado, peguei uma boneca branca com formatos semelhantes àquela que Carolina havia me oferecido e perguntei:

– O nenê?

Carolina sorri e me diz:

– Sim, é nenê! Faz ela dormir.

Poucos segundos depois, ela viu a colega chegando e saiu correndo para abraçá-la, me deixando com este questionamento: as meninas negras pequenininhas não são nenê? O que representa ser uma menina negra? O que é ser uma nenê negra? (Fragmento do diário de campo, abril de 2016)

A menina negra pequenininha anuncia uma localização social para a qual as pessoas negras foram historicamente designadas, apresentando uma intersecção de relações pela qual os sistemas raça, classe e gênero se estabelecem concomitantemente. Conforme escreve Collins (2000), conhecer uma mulher somente a partir da sua identidade de gênero, em uma sociedade sexista, é informação insuficiente para descrever sua experiência; é necessário também conhecer outros sistemas que a atravessam, como o processo de racialização e a estratificação de classe.

Carolina, por meio de sua fala, possibilita também questionarmos a percepção de infância eurocêntrica e única, que em diferentes momentos não respalda as crianças negras pequenininhas, em especial as meninas negras, que “devem se virar sozinhas” desde muito pequenininhas. Afinal, a infância é uma produção histórica: “não podemos hoje, na sociedade capitalista, pensá-la em abstrato, referindo-nos à criança independentemente de sua classe social” (FARIA, 2007, p. 61), de seu pertencimento étnico-racial, das relações de gênero.

O que está em jogo não é somente o afeto compreendido estritamente em uma perspectiva material burguesa, que constrói uma percepção de infância a qual, ao mesmo tempo em que possibilita a atenção para as crianças, estabelece limites para se viver e pensar além do conceito daquilo já posto primariamente. A construção do ato de afeto muitas vezes sufoca ou marca as vidas de meninas e meninas; como já apontou Oliveira (2004), pode parecer negativo que crianças negras não recebam carinho e acolhimento por parte das profissionais da creche, mas pode não ser, pois o âmbito relacional também é um aparelho de captura e controle; é preciso ver a positividade de estar fora dessa prática. Assim, as crianças negras se excluem de serem tratadas como bibelôs, bonecas, estando livres desse afeto inibidor, fraternal e familiar que asfixia e aprisiona (OLIVEIRA, 2004, p. 93). Entretanto, como levanta Nunes (2016, p. 398), temos que ter um pouco de atenção a essa afirmação, pois “também não é possível ter certeza que se tornar outra coisa diferencie-se substancialmente daquilo que uma criança negra já experimenta em seu cotidiano, marcadas que são por serem coisas, coisas estas ligadas à ausência e ao desvio”.

A prática racista tem como um dos seus pilares a falta: constrói o apagamento histórico da ancestralidade de diferentes povos – um controle político da memória (CURCIO; MELLINO, 2012) –, bem como a não legitimação dos afetos e do direto do sujeito negro a relações básicas de carinho, amorosidade, sororidade e fraternidade, afinal as pessoas negras, o processo histórico de racialização, são somente “coisas”, não possuindo acesso a elementos sociais que as transformem em humanos. Assim, não advogo a favor de um afeto que sufoca, castra, mas uso a fala da menina negra pequenininha Carolina para ilustrar que as crianças negras podem aprender e “experienciar” desde muito pequenas que o afeto, o cuidado são elementos exclusivos da infância vivenciada por crianças brancas.

O corpo negro do bebê é marcado pela desigualdade desde o primeiro choro. Afinal, ele não necessita de tanto dengo, ele não representa o modelo de beleza e uma pequena mordida em um/a colega pode levá-lo ao estigma de futuro/a criminoso/a. Desde o momento da sua concepção, no útero da mãe, já se ouve: “Espero que ele seja mais clarinho! Que não tenha cabelo ruim, ou nariz largo” (sic). As crianças negras se constroem pessoas e cidadãs em situações de conflito, de reconhecimento e de desqualificação do seu pertencimento étnico-racial, da sua negritude (SILVA, 2015, p. 181).

Ao encontro do questionamento das estruturas racistas do afeto, na crônica do cotidiano da educação intitulada “Dor de mordida tem cor?”, Martins e Mello (2010) narram que inúmeras vezes não damos a devida atenção a situações de mordidas nas crianças negras pequenininhas, afinal, isso não deixa marcas na pele negra, e que as mordidas são acontecimentos da infância, mas o modo como tratamos cada uma delas é expressão das formas pelas quais concebemos as relações sociais.

As percepções a respeito do que é ser uma criança negra pequenininha e os modos pelos quais os meninos negros pequenininhos e as meninas negras pequenininhas vão se estabelecendo no mundo são diretamente marcados pelo contexto que vivenciam. As marcas coloniais reforçadas pelos aspectos interseccionais dos marcadores de diferença constroem percursos sociais preestabelecidos, que influenciam diretamente as escolhas individuais.

 


Referências

COLLINS, Patricia Hill. Black feminist thought: knowledge, consciousness, and the politics of empowerment. NewYork: Routledge, 2000.

CURCIO, Anna; MELLINO, Miguel. La razza al lavoro: rileggere il razzismo, ripensare l’antirazzismo in Itália. In: CURCIO, Anna; MELLINO, Miguel (Orgs.) La razza al lavoro. Roma: Manifesto Libri, 2012. p. 07-36.

FARIA, Ana Lúcia Goulart de. Educação pré-escolar e cultura: para uma pedagogia da educação infantil. Campinas: Cortez; Editora Unicamp, 2007.

MARTINS, Maria aparecida dos; MELLO, Ana Maria. Dor de mordida tem cor? In: MELLO, Ana Maria et al. (Orgs.). O dia a dia das creches e pré-escolas: Crônicas brasileiras. Porto Alegre: ArtMed, 2010, p. 54-56.

NUNES, Míghian D. F. Cadê as crianças negras que estão aqui? O racismo (não) comeu. Latitude (UFAL), v. 10, p. 383-424, 2016.

OLIVEIRA, Fabiana. Um estudo sobre a creche: o que as práticas educativas produzem e revelam sobre a questão racial? 2004. 112 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2004.

SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves. Crianças negras entre a assimilação e a negritude. Revista Eletrônica de Educação, São Carlos, v. 9, n. 2, p. 161-187, 2015.

 

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