Domingo, 21 de janeiro, é o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. Nesta data, no ano 2000, morria a Iyalorixá baiana Gildásia dos Santos e Santos, mais conhecida como Mãe Gilda de Ogun, fundadora do Ilê Asè Abassá. Sua morte se deu em decorrência de ataques racistas sofridos por ela por conta de sua religião.
Posteriormente, a Igreja Universal do Reino de Deus foi condenada a pagar uma indenização aos familiares de Mãe Gilda, bem como a exibirem uma retratação em seus canais de televisão. Em 2007, foi aprovada a lei que instituía a data de sua morte como um marco de combate à intolerância religiosa em todo o país.
Em nota ao Brasil de Fato Bahia, a Polícia Civil explicou que não há dados específicos sobre intolerância religiosa no estado, uma vez que o recorte estatístico utilizado é o da tipificação penal específica. “Como a legislação inclui, em algumas de suas tipificações, raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, não há os dados isolados de discriminação religiosa”, explica. No quadro abaixo, compilamos os dados fornecidos pela Coordenação Especializada de Repressão aos Crimes de Intolerância e Discriminação (Coercid) em que podem estar incluídos os crimes de intolerância religiosa.
A nota acrescenta ainda que, após a sanção da Lei nº 14.532, em janeiro de 2023, houve a ampliação do rol de crimes envolvendo intolerância religiosa, o que ajuda a explicar o crescimento dos índices relacionados a alguns dos tipos penais. “A conscientização da população quanto aos crimes de intolerância e as campanhas quanto à importância de comunicar fatos delituosos à Polícia Civil também contribuem para o aumento dos registros”, diz a nota.
Racismo institucional
Para além da dificuldade em compreender os dados desta maneira, chamam a atenção alguns números como na categoria “Obstar, impedir ou empregar violência contra quaisquer manifestações ou práticas religiosas”, com nenhum registro em 2022 e apenas nove, em 2023.
A advogada e yaô do Ilê Asè Airá Tolami, Camila Garcez lembra que a Coercid foi criada apenas em 2022 e, apesar da divulgação do serviço especializado, há ainda um grande desconhecimento da população em geral.
Outro fator para a possível subnotificação dos casos é a desconfiança e o medo de sofrer nova revitimização ao procurar o Estado para realizar uma denúncia. “Há uma desconfiança nas instâncias formais de poder. Um Pai e uma Mãe de Santo não se sentem seguros, não se sentem acolhidos ao entrar em uma delegacia. Eu falo isso porque eu sou praticante do candomblé e, quando o terreiro no qual eu sou filha foi depredado, que eu cheguei à delegacia, enquanto eu não me identifiquei como advogada, eu senti uma questão em relação ao tratamento”, conta.
Ela explica que, sobretudo nas delegacias, esse primeiro atendimento às pessoas vítimas não é adequado. “A gente percebe que há uma maneira de recepcionar que não é igual se fosse alguém registrar uma ocorrência em caso de depredação de uma igreja. As nossas vestes, os nossos colares, os nossos turbantes incomodam e fazem com que nós sejamos revitimizados nos espaços que deveriam nos acolher”, afirma.
A princípio, a invasão do Ilê Asè Airá Tolami, em Dias D’Ávila, região Metropolitana de Salvador, foi registrada como furto. “Se uma pessoa se sente à vontade para pular o muro de um terreiro de candomblé, quebrar tudo, desfazer das insígnias, a gente sabe que é a partir de um racismo, não é porque a pessoa entrou para furtar. A pessoa entrou para o mal. A pessoa entrou para depredar”, acrescenta.
Somente depois de levar o caso à Coercid, a invasão do Airá Tolomi foi registrada como um caso de racismo religioso. Camila Garcez destaca que isso só aconteceu porque ela conhecia a importância da atuação da coordenadoria.
Subnotificação
Nem todos os casos, no entanto, são levados à Coercid ou registrados corretamente. Atendendo a uma solicitação do vereador Alexandre Xandó (PT), a Polícia Civil em Vitória da Conquista informou haver registrado apenas nove casos de “injúria religiosa” ao longo dos últimos 10 anos. “Contudo, em pesquisa que eu venho realizando no meu doutorado, somente de 2019 pra cá, consegui identificar oito casos de grande repercussão, que variaram desde agressões diretas realizadas por pastores até cidadão com caixa de som pregando na praça das baianas do acarajé e atacando as entidades da religião de matriz africana”, conta.
A região, infelizmente, ficou famosa por registrar casos emblemáticos de racismo religioso nos últimos anos, como a destruição da Casa de Candomblé Axé de Xangô, de Tata Lucas de Xangô, em 2023, que teve imagens destruídas e tambores rasgados no primeiro dia do ano. Ou ainda os ataques sofridos ao longo de vários anos por Mãe Rosa, no Ilê Asé Alaketo Omí Ógba, perpetrados por integrantes de uma igreja evangélica da vizinhança.
“As autoridades não têm sido repressivas, elas não têm dado a devida atenção. Inclusive o Ministério Público, após um caso emblemático, em 2019 com o ataque a Mãe Rosa, ele apresenta uma recomendação para a igreja católica, para as igrejas evangélicas, para que se abstenham de praticar intolerância religiosa. Aconteceu um crime, e o Ministério Público simplesmente remete uma recomendação”, conta Alexandre Xandó.
Ele acrescenta ainda que a atuação de órgãos como Centro de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela, ligado à Secretaria de Estado de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi), acaba se concentrando muito na capital e não tem alcance ou presença no interior.
Racismo e intolerância religiosa
A advogada Camila Garcez explica que existe uma distinção entre racismo e intolerância religiosa. “A intolerância religiosa pode atingir vários segmentos religiosos. Mas o que é emblemático, que é estrutural, que é desumanizante, é o racismo religioso que é praticado contra as religiões de matriz africana”, diz.
O termo racismo religioso foi cunhado pelos praticantes de religiões de matriz africana para distinguir uma forma de violência que precisa ser vista como parte do racismo estrutural que perpassa toda a sociedade brasileira. “A partir do momento que jogam sal na Pedra de Xangô, que conseguem dar uma pedrada na cabeça de uma menina negra de 12 anos pelas suas vestes, pelos seus colares, pelas suas contas, pelas insígnias, são casos de racismo”, acrescenta Camila.
Combate
Para promover um efetivo combate ao racismo e à intolerância religiosa, tanto Camila Garcez quanto Alexandre Xandó apontam a necessidade de uma atuação mais firme do Estado. “Precisamos, essencialmente, de ações educativas, mas também precisamos de respostas firmes das instituições, porque se essas pessoas praticam um crime e não acontece nada com ela, ela se sente à vontade para praticar outro”, diz Xandó.7
Camila Garcez acrescenta ainda a importância das políticas públicas de assistência aos terreiros. “[É preciso] a atuação veemente nos casos e a promoção de políticas públicas de assistência aos terreiros. E são coisas mínimas! Quando você for vítima de racismo religioso perpetrado contra qualquer segmento, o que é que você deve fazer, como deve ser o atendimento na delegacia, como deve ser o acompanhamento desse caso? E não os praticantes de religiões de matriz africana serem confrontados pela polícia”, explica.
O vereador Alexandre Xandó também defende a importância de políticas que contemplem uma perspectiva simbólica do problema. Ele cita como exemplo a promoção de ecumênicos e atos interreligiosos. “O exemplo das lideranças acaba afetando, acaba estimulando, acaba mostrando para os fiéis qual é o caminho que deve ser seguido”, afirma Xandó.
Outra ação importante, de acordo com Camila Garcez, seria transformar a Coercid em uma delegacia especializada. “Na Bahia, em Salvador, nós não temos ainda uma delegacia especializada em crimes de racismo. Isso é muito grave!”, pontua.