A intolerância religiosa não vai calar os nossos tambores

Aumento de ataques aos terreiros e às religiões de matriz africana não revela só o avanço conservador, mas a influência do nosso passado escravista

Por  Danilo Molina, da Carta Capital 

Os casos de violência e agressão contra templos e seguidores de religiões de matriz africana têm aumentado de forma assustadora em todo o Brasil.

Este ano, só no Rio de Janeiro, estado que historicamente apresenta o maior número de registros de intolerância religiosa no país, foram contabilizados, até o final de setembro, pelo menos 79 ataques contra terreiros ou adeptos de religiões de matriz africana, sendo 39 apenas nos últimos três meses.

Esse número é exatamente o mesmo do que o total de casos de denúncias registradas no Disque 100 do Governo Federal, no mesmo estado, em todo o ano de 2016. Entretanto, há um agravante nessa estatística. As 79 denúncias do ano passado englobam casos de intolerância contra qualquer religião, não apenas as de matrizes africana, apontando a tendência crescimento da violência contra nossos terreiros.

Há poucas semanas, terreiros de candomblé em Nova Iguaçu, Baixada Fluminense, foram alvejados. Em vídeo gravado pelos próprios criminosos, com grande repercussão nas redes sociais, uma mãe de santo aparece sendo intimidada pelos invasores, que a obrigam a quebrar objetos litúrgicos e imagens de santos do terreiro.

O show de horrores é acompanhado por ameaças dos marginais, que entoam “o sangue de Jesus tem poder”, “da próxima vez eu mato”, “safadeza!”, entre outros.

 

Entretanto, no Brasil, a intolerância religiosa não tem fronteiras estaduais. Em São Paulo, também neste ano, foram registrados 27 atos de violência contra templos e frequentadores de cultos de matriz africana, sendo oito nas últimas três semanas. Isso significa que, em média, nas últimas três semanas, a cada dois dias e meio houve um ato desse tipo de agressão em São Paulo.

Cartazes com dizeres neonazistas e xenófobos foram espalhados pelo município de Blumenau-SC, a poucas semanas do início da Oktoberfest, maior festa da colônia alemã no Brasil, que acontece na cidade catarinense.

Nas redes sociais, internautas denunciam as ameaças que constam nos cartazes: “Negro, comunista, antifa e macumbeiro. Estamos de olho em você”.

Em termos gerais, os dados do Disque 100 revelam que, em 2016, foram registradas 776 ocorrências de intolerância religiosa em todo país, um aumento de 36,5% em relação ao ano anterior. De 2014 para 2015, a situação foi ainda mais dramática. Os relatos passaram de 149 para 556, um crescimento de 273,1%.

Se considerarmos toda a série histórica, a situação fica ainda mais apavorante.

Verifica-se uma explosão de denúncias de intolerância religiosa, que passaram de apenas 15 casos em 2011 para os já mencionados 776 em 2016. E por mais que alguns setores conservadores da sociedade tentem desqualificar a questão, as religiões de matriz africana são indubitavelmente as principais vítimas desses ataques.

Na maioria das vezes (25,9%), os agressores são identificados como brancos e as situações de intolerância ocorrem predominantemente dentro das próprias casas (33,9%) e na rua (14,33%).

O perfil das vítimas aponta que os praticantes de umbanda e candomblé, somados aos que se identificam como adeptos de religiões de matriz africana diversas, são os alvos preferenciais dessa intolerância. Juntos, respondem por quase 25% das denúncias.

 

Isso em um país no qual essas religiões possuem algo em torno de 3,1 milhões de adeptos (1,6% da população), de acordo com o último censo demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010.

Os cerca de 123 milhões de católicos (64,6% dos brasileiros) relataram 1,8% dos casos de intolerância religiosa. Os protestantes, que somam 42,3 milhões de fiéis (22,2% da população), respondem por aproximadamente 3,8% dos registros de agressão.

Uma correta análise sobre essa alarmante realidade não deve se restringir ao simples avanço das forças conservadoras e obscurantistas em todo o mundo.

No caso do Brasil passa, necessariamente, pelo resgate de um passado colonial e escravagista que permeia, até os dias de hoje, a nossa cultura.

“Antros de feitiçaria”

As religiões de matrizes africanas nasceram dentro da senzala e eram reprimidas, inclusive com força policial, ainda no início do século XX.

Na Bahia, por exemplo, na década de 20, a imprensa local atacava duramente os terreiros de candomblé e a polícia reprimia e perseguia os capoeiristas, outra bela expressão da cultura de matriz africana. Artigos e matérias da época classificavam a religião como locais onde “ocorrem cenas monstruosas” e “antros de feitiçaria”.

O catolicismo chegou em terras brasileiras junto com os colonizadores portugueses, sendo uma religião de Estado, oficializada e imposta como parte essencial do processo de colonização.

A Igreja Católica deixou raízes profundas em nossa cultura. Foram as missões jesuíticas que assumiram a educação nos colégios do Brasil colônia e que introduziram a evangelização dos indígenas e, posteriormente, dos negros.

A estreita relação da Igreja Católica e o Estado, no Brasil, também foi intensa durante todo império. Era a igreja quem registava nascimentos, casamentos e mortes naquela época. Também contribuía para a manutenção de serviços hospitalares, notadamente, as Santas Casas. A estrutura da Igreja garantia a disciplina social dentro de limites que, por um longo período histórico, interessava aos colonizadores portugueses.

A Constituição de 1824 chegou a permitir o culto de outras religiões em nosso país, porém, com rigorosas restrições. Os cultos deveriam ocorrer de maneira doméstica e não poderia haver a identificação oficial de igrejas ou centros religiosos que não fossem católicos. A separação oficial entre o Estado e a igreja só ocorre após a proclamação da república, em 1890, logo após o fim da escravidão, quase quatro séculos após o descobrimento do Brasil.

O Ato nº 2º, complementar à referida Constituição de 1824, proibiu os negros de frequentarem escolas, pois eram considerados “doentes e portadores de moléstias contagiosas ”. Essa lei vigorou até, 1888, quando foi abolida tardiamente a escravidão no Brasil.

A Lei Áurea foi assinada depois que a escravidão já tinha sido abolida em toda a América. Países como República Dominicana (1822), Chile (1823), Bolívia (1826), México (1829), Paraguai e Uruguai (1842), Equador e Colômbia (1851), Argentina (1853), Venezuela e Peru (1854) e Cuba (1886) o fizeram antes do Brasil.

A simples abolição da escravidão e a permissão da prática de cultos religiosos diferentes do catolicismo não foram capazes de incluir os negros na sociedade brasileira. Nenhum mecanismo legal para realizar essa inclusão foi previsto.

Os negros, quase todos ex-escravos, foram relegados à própria sorte, em uma sociedade extremamente preconceituosa, sendo obrigados a enfrentar severas dificuldades de acesso ao mercado de trabalho e à escolarização. Processo semelhante ao que ocorreu na aceitação da sua cultura e religião.

O fim da escravidão, da forma que se deu no Brasil, mergulhou o negro, estigmatizado pelo seu passado de senzala e chicote, em uma condição de subcidadania. Uma realidade de baixa escolaridade e de subemprego, que, infelizmente, perdura até os dias de hoje e explica porque durante tanto tempo fomos uma das sociedades mais desiguais do planeta.

Reparação 

As políticas de ação afirmativa no Brasil para mitigar a desigualdade social e a descriminação racial só começam a virar realidade no Século XXI, mais de um século depois da abolição da escravidão.

A 3ª Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e formas correlatas de Intolerância promovida pela Organização das Nações Unidas (Onu), em Durban, na África do Sul, seguramente contribuiu para fomentar essa nova agenda, corajosamente assumida pelos governos Lula e Dilma.

Mesmo assim, sofreu forte resistência de setores conservadores da sociedade brasileira, que se posicionaram frontalmente contra, por exemplo, a Lei de Cotas, aprovada em 2012 e sancionada pelo governo Dilma, para acesso diferenciado nas universidades federais para estudantes das escolas públicas, com recorte preferencial para famílias de baixa renda, negros e indígenas.

O projeto de lei das cotas nas universidades foi combatido durante 13 anos no parlamento por veículos da grande imprensa e até com ações judiciais. Não foi diferente com a discussão curricular da obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileiras e africanas nas escolas. Só em 2010, o presidente Lula sanciona a Lei 12.288, que institui o Estatuto da Igualdade Racial.

Apesar dos recentes esforços, a inclusão dos negros, nos mais diversos aspectos da vida social, permanece sendo um imenso desafio. Segundo o IBGE, em 2005, apenas 5,5% dos jovens pretos ou pardos de 18 a 24 anos frequentavam uma faculdade.

Na idade que deveriam estar na faculdade, 53,2% dos negros estão cursando nível fundamental ou médio. O percentual de brancos na mesma condição é de 29,1%.

O Censo da Educação Superior do Ministério da Educação aponta que em 2012, ano de sanção da Lei de Cotas, 2,6% dos alunos matriculados nas universidades brasileiras se declaravam negros. Em 2015, verificamos um avanço nesse percentual, que foi de 5,3%. Em números absolutos, saltamos de 187.576 negros na educação superior, em 2012, para 429.632, em 2015, um aumento de quase 130%, um salto inédito em nossa história.

Todo o passado colonial e escravocrata não pode ser desconsiderado quando olhamos para a intolerância e o preconceito, manifestos nas agressões contra os templos e os adeptos de religiões de matriz africana.

Não se trata apenas do preconceito contra uma religião específica, mas também contra todo um segmento da sociedade brasileira, marcado por um processo histórico de exclusão social profunda.

É inevitável a analogia entre os nossos terreiros e templos em chamas e as milhões de pessoas queimadas vivas nas fogueiras da inquisição, durante a idade média. E, apesar de todas essas agressões e violações, o Brasil sequer tipificou o crime de intolerância religiosa. Por isso mesmo, não há nenhuma punição prevista legalmente para esses tipos de crimes de ódio.

A marca da ignorância e da intolerância está na cicatriz na cabeça da menina Kailane Campos, agredida covardemente com uma pedrada no meio da rua, aos 11 anos de idade, quando saía de um culto religioso, no subúrbio do Rio de Janeiro, em 2015. Mesmo nesse caso emblemático, que teve repercussão nacional e ampla cobertura da imprensa, dois anos depois, os culpados continuam imunes.

Enquanto não enfrentarmos definitivamente as sequelas do nosso passado colonial e escravagista, nossos terreiros continuarão sendo vítimas do ódio da Casa-Grande. É nossa obrigação não aceitar o avanço dessa intolerância. A capacidade de resistência dessas manifestações culturais e religiosas foi forjada dentro das senzalas e é parte da luta e identidade da população negra, que tanta contribuição deu a construção da nossa nação.

Não podemos mais aceitar a escalada de intolerância. O respeito à diversidade cultural e a todas as religiões e manifestações do povo brasileiro é essencial para a consolidação da democracia e dos direitos das minorias em nosso país.

Nosso dever civilizatório é conviver e valorizar a diversidade e avançar para o respeito integral e para aceitação plena de nossos terreiros e nossos tambores.

*Danilo Molina é jornalista, servidor de carreira e foi assessor especial da Casa Civil da Presidência da República e assessor do Ministério da Educação e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) no governo da presidenta Dilma Rousseff. Também é zelador do Centro de Umbanda Cavaleiros de Ogum, em Brasília (DF) e possui pós-graduação em Comunicação Pública.

-+=
Sair da versão mobile