Invisíveis nos hospitais, funcionários de limpeza relatam medo e ansiedade

FONTEPor Michele Contel, do TAB
Imagem: Oda Moura/UOL

Aprontar-se para sair de casa, hoje, envolve muito mais do que pegar um casaco e um guarda-chuva: agora, máscaras, frascos de álcool gel e escudos faciais integram o uniforme de milhares de trabalhadores no Brasil.

Profissionais da área da saúde intensificaram os cuidados. Mas a categoria nos faz pensar em médicos e enfermeiros. Entretanto, são muitos os trabalhadores sem formação técnica ou diploma que integram esse time. Colaboradores dos setores de limpeza, lavanderia, copa, cozinha e central de materiais também estão na batalha contra o novo coronavírus. Apesar de correrem tanto risco quanto os médicos, raramente são lembrados em homenagens.

Com rotinas de limpeza e desinfecção ampliadas e carga horária ainda mais pesada, os funcionários contam com ações preventivas do próprio hospital para continuar trabalhando com segurança. Segundo um estudo realizado pela TM Jobs, consultoria em negócios de saúde, desde o primeiro caso de Covid-19 os hospitais brasileiros passaram a usar mais produtos de limpeza e a fazer desinfecção constante dos ambientes após o atendimento de pacientes contaminados.

O estudo mostra, também, que 89% dos entrevistados vacinaram todos os funcionários contra H1N1 e apenas 11% não realizaram campanha de imunização. A ação é de extrema importância, segundo o médico infectologista e diretor clínico do Hospital Igesp, de São Paulo, Marcos Antônio Cyrillo. “Os funcionários precisam estar com suas vacinas em dia e devem receber treinamento específico para as tarefas que os coloquem em contato com pacientes que necessitem de isolamento”, explica.

Trabalhar desprotegido e preocupado

O estudo da TM Jobs aponta que ainda faltam equipamentos de proteção individual para os chamados profissionais de suporte. Dentre os EPIs exigidos pela Organização Mundial de Saúde (máscara tipo N95 e PFF2, óculos ou escudo facial em acrílico, luvas, gorro e capote impermeável), apenas o álcool em gel a 70% é unanimidade entre as 3 mil instituições que participaram da pesquisa.

Outro dado preocupante revelado no estudo é que 32% dos hospitais não estão realizando exames de detecção do novo coronavírus nos colaboradores que apresentam sintomas da doença, mesmo que o Ministério da Saúde tenha recomendado dar prioridade a esses profissionais.

O bem-estar psicossocial também preocupa. Somente 32% dos hospitais que responderam à pesquisa oferecem algum programa de apoio psicológico aos funcionários. Segundo Marcelo Freijó, médico psiquiatra e professor da Escola Paulista de Medicina, o impacto psicológico é pesado, por causa do estresse e do medo constante. “São colegas ficando doentes, pacientes em estado grave ou vindo a óbito — mesmo recebendo o tratamento —, é a sobrecarga nas funções. Isso sem contar os profissionais que acabam se distanciando da família, com medo de contaminá-los”, explica.

Todo esse estresse pode se transformar em insônia, ansiedade e aumento de uma série de quadros de doenças psiquiátricas associadas à depressão, pânico e estresse pós-traumático.
Marcelo Feijó, médico psiquiatra

Para auxiliar os colaboradores do Hospital São Paulo, Feijó encabeçou uma iniciativa. Cerca de 40 profissionais da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) oferecem atendimento psicológico gratuito, à distância, a qualquer funcionário do hospital. “Fizemos questão de incluir todos os profissionais, da saúde ao suporte, com diferentes níveis técnicos e escolaridades. São pessoas que estão em situação muito tensa, em um ambiente bastante hostil, que precisam de acolhimento.”

A seguir, TAB ouviu três profissionais que lidam diariamente com a Covid-19, em setores de limpeza e apoio.

Alessandra Contel, auxiliar de lavanderia da Santa Casa de Araçatuba, SP Imagem: Arquivo pessoal/ Arte: Oda Moura

 

Alessandra Contel 47 anos Auxiliar de lavanderia da Santa Casa de Araçatuba (SP)

Ficamos sabendo sobre o vírus pelos meios de comunicação e, desde então, começamos a nos preparar para a chegada da pandemia no interior. Quando confirmaram o primeiro caso na cidade, não teve jeito: o medo veio. A lavanderia coleta as roupas sujas nos setores, separa, faz a pesagem (porque as máquinas de lavagem só aguentam até determinado peso) e coloca nas máquinas para lavar. Depois que as roupas saem limpas, elas são secas, passadas, dobradas, separadas e entregues aos setores. Os coletores da área suja correm risco por terem contato direto com peças infectadas, e quem entrega as roupas nos setores, também. Estamos expostos o tempo todo e, por isso, meus cuidados dobraram. Já entro no hospital de máscara, pego o álcool e limpo toda a mesa onde vou trabalhar. Se for entregar roupa na central de materiais, tomo cuidado com maçaneta, com caderno (onde anoto o que estou entregando) e passo álcool em gel logo em seguida no antebraço, nas mãos e na minha caneta. Essa prática é feita o tempo todo: se vou tomar café, ao banheiro etc. Meus cuidados, porém, não reduzem meu medo, porque fazem parte de um coletivo. Estou vivendo à base de remédios por causa da ansiedade porque, mesmo se você se proteger, você pode ser infectado por um vizinho, então é um dia após o outro pedindo toda a proteção para Deus. Sei que, mesmo fazendo minha parte, corro o risco de me contaminar. Mas também sei que os pacientes do hospital precisam de nós.

Marlinda Oliveira, 49 anos, assistente de Serviços Gerais do Hospital Áurea Maia de Figueiredo de São Miguel, RN Imagem: Arquivo pessoal/ Arte: Oda Moura

Marlinda Oliveira 49 anos Assistente de serviços gerais do hospital Áurea Maia de Figueiredo, em São Miguel (RN)

A rotina de trabalho continua a mesma, porém com o dobro de serviço e cuidados redobrados. Quando aparecem casos de suspeita de Covid-19 ou de outras doenças contagiosas, precisamos higienizar todo o local onde o paciente em análise estava. Eu e outros profissionais de limpeza realizamos a higienização total do ambiente, que vai desde a cama até as paredes. Me preparo para trabalhar tomando o maior cuidado possível e, na limpeza, uso não só os equipamentos que foram fornecidos pelo hospital, mas também equipamentos em que eu mesma investi — como máscaras extras (para poder trocar com mais frequência) e o face shield —, para me sentir mais protegida. Estou muito aflita. Todos os dias em que saio de casa para enfrentar o vírus, volto sem saber se fui contaminada ou não. O que mais me deixa angustiada é saber que, no município onde moro, mesmo sendo pequeno, já existem 17 casos confirmados e, mesmo assim, as pessoas não têm a preocupação com a prevenção e os cuidados coletivos. Elas podem contrair o vírus, serem assintomáticas e irem ao hospital tratar de qualquer outro problema de saúde. Isso acabaria nos contaminando de forma indireta. Dá medo.

Maria Aparecida Garcia 62 anos Técnica de enfermagem do Hospital de Jaú (SP)

Trabalho na Central de Materiais há 12 anos e, sem dúvida nenhuma, me senti insegura e com medo após os primeiros casos de Covid-19 no Brasil. No meu setor, nós sempre tivemos uma rotina de cuidados específicos, já que os materiais sempre foram contaminados. Esses materiais descem de todos os setores e nós fazemos a higienização, a desinfecção e a esterilização. Então, sempre trabalhamos em um lugar contaminado, com EPI apropriado. Porém, nesse período de pandemia, que está sendo atípico para todo mundo, redobramos os cuidados. Sempre usamos óculos, luvas, jaleco, bota e luva grossa, mas agora eles nos forneceram aquele escudo (face shield) para evitar qualquer contaminação. A insegurança é constante, então trabalhamos focados para que a gente não se contamine e não leve nenhuma contaminação para casa depois do serviço. Mesmo quando não estamos no expurgo [área de limpeza e desinfecção dos materiais e roupas utilizados na assistência ao paciente] usamos máscara e uniforme o tempo todo, seguindo todos os protocolos. Além disso, evitamos circular fora do nosso ambiente de trabalho. Saímos de lá e vamos para casa, tomando todo o cuidado de não levar a infecção. Não é fácil, mas temos que estar lá, alguém tem que fazer o serviço. Não estamos diretamente com os pacientes, mas estamos com as coisas contaminadas, então, dá medo. Seguimos pensando em quando tudo vai acabar.

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