Isto são os EUA

FONTEFolha de São Paulo, por Thiago Amparo
Thiago Amparo (Foto: Marcus Leoni/CLAUDIA)

Os Estados Unidos da América creem tanto em sua imagem como a maior democracia liberal do mundo que esquecem que essa imagem, vista por eles próprios como excepcional no panteão internacional, é, de fato, uma autoimagem. Quando nos olhamos muito no espelho, esquecemos a diferença entre o que é reflexo, edificado sobre o arenoso solo das nossas aspirações, e o que é realidade, construída com os escombros das nossas próprias contradições.

Não há nada de excepcional do ponto de vista moral num país onde presidentes pressupõem que o poder de executar civis por drones faz parte do seu trabalho diário presidencial (em sua recente biografia, ao descrever de forma franca e brutal o ofício de ordenar a morte por drone, Obama revela que o horror é bipartidário). Não há nada de excepcional, ou mesmo democrático, no fato de os EUA terem auxiliado na consolidação de ditaturas ao redor do mundo, seja pela morte de milhares pelo Exército da Indonésia na década de 60, seja nas ditaduras latino-americanas.

Sem reconciliar-se com as contradições que fazem os EUA o país que são hoje, nem justiça, nem democracia perdurarão. Sem precedentes, a invasão do Capitólio, gravíssima para a democracia como prática e como ideia, expõe feridas históricas da democracia dos EUA, que não começaram com Trump, tampouco morrerão como o fim de seu mandato. Parafraseando o colunista do New York Times Jamelle Boule, Trump não é nem um desvio, nem um ponto final na democracia dos EUA, é uma hipérbole numa história velha.

A questão de facções antirrepublicanas é tão antiga quanto os próprios EUA. James Madison, um dos pais fundadores dos EUA, escreveu em 1787 no Federalista No. 10 –uma série de ensaios pró-ratificação da Constituição dos EUA– que há duas formas de controlar facções: ou eliminar as suas causas (destruindo a liberdade ou suprimindo o dissenso, ambas indesejáveis), ou controlar seus efeitos. Para a segunda tarefa é que se tem uma república representativa, cujo cerne –o Capitólio– foi atacado na última semana.

O alvo não foi à toa. Ao atacar o Capitólio, ataca-se a ideia de que todas as vozes e votos contam. Quer-se destroçar a ideia de que os outros, os não-brancos em especial, importem. O que vimos na invasão ao Capitólio foi uma amálgama de movimentos de extrema direita antissistema, cujo caldeirão de símbolos e ideias combina ressentimento branco e masculino com linguagem revolucionária e teorias da conspiração.

Como qualquer movimento, sua existência depende de uma construção de subjetividades compartilhadas entre seus integrantes, ou seja, uma noção de “nós versus eles”. Neste caso, a subjetividade autoritária marcada, em todo ou em parte, por um ódio às mulheres manifestado num tribalismo masculino (termo usado por Rosana Pinheiro Machado), tão caricato quanto as vestimentas dos invasores; por um supremacismo branco visto na arrogância do enfrentamento à polícia legislativa ao mesmo tempo em que instrumentaliza a ideia de “lei e ordem” de forma seletiva; e por um ethos anti “tudo que está aí”, facilmente perceptível na linguagem neurótica contra mídia e elite política.

This is America [isto são EUA], como canta o rapper Childish Gambino. Para entender a invasão do Capitólio para além do evento em si, é necessário entender que essa subjetividade de ultradireita é forjada na própria história dos EUA, e não alheia a ela. O país tem um histórico de violência racista, seja os corpos negros em árvores por linchamentos, seja uma rede de grupos de ódio –como Klu Klux Klan ou Proud Boys– cujo poder real e simbólico permanecem até hoje, em graus diferentes (vide o último filme Infiltrado na Klan, de Spike Lee).

Kaufmann, no livro Whiteshift (2018), lembra que, diante da mudança demográfica dos EUA para uma futura maioria não-branca, indivíduos acostumados a equiparar nação americana a pessoas brancas como eles e elas, de repente se veem às voltas com um ultranacionalismo ressentido e tradicionalista para reivindicar o antigo lugar de status como nativos, enquanto negros são pisoteados e povos indígenas saqueados.

Wendy Brown no livro “In the Ruins of Neoliberalism” (2019) adiciona a isto o nilismo neoliberal: indivíduos brancos empobrecidos, num contexto historicamente racista e que privilegia o sucesso individual, se veem às voltas com o fatalismo, onde apenas a conspiração antissistema e antidemocrática os salvará.

A invasão no Capitólio foi estruturalmente racista não somente por revelar a disparidade no tratamento entre protestos liderados por brancos e outros liderados por não-brancos, mas por ativar indivíduos e movimentos brancos profundamente ressentidos com a perda de status –material ou não– e que, diante disso, reforçam discursos supremacistas. É estarrecedor que movimentos autoproclamados a favor da ordem tenham pouco se importado com a morte do policial Brian D. Sicknick em decorrência da invasão.

Sem entender como nacionalismo, misoginia, individualismo neoliberal e racismo se conectam, não dá para entender nem a hipocrisia da história democrática dos EUA, nem a invasão ao Capitólio. Logo após sua vitória histórica, o primeiro senador negro da Georgia, Reverendo Warnock, citando Martin Luther King disse: “A escuridão não pode expulsar a escuridão: apenas a luz pode fazer isso. O ódio não pode expulsar o ódio: só o amor pode fazer isso. Que cada um de nós tente ser uma luz para ver nosso país fora deste momento sombrio”.

Não é na autoimagem dos EUA como democracia excepcional que veremos um futuro mais democrático para aquele país ou para o nosso, mas sim na luta de quem busca, desde os primórdios da nação americana, fazer dessas sociedades uma democracia de fato. Reverendo Warnock cresceu dentro da grande tradição democrática da teologia negra e movimentos de direitos civis.

Democracia nos EUA é uma promessa quebrada. Como toda promessa quebrada, restaurá-la requer escutar quem esta promessa abandonou e não quem quer queimá-la junto com o Capitólio.

Thiago Amparo
Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.
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