Itália faz trato com Líbia e freia imigração

Ilha de Lampedusa, que no ano passado recebeu mais de 30 mil africanos, registrou só 192 chegadas desde maio deste ano

Acordo permite a Trípoli capturar imigrantes ilegais no mar que separa os dois países; juristas criticam a ação do governo Berlusconi

 

 

 

O centro de detenção de clandestinos de Lampedusa -a ilha que se tornou símbolo da política anti-imigratória do governo do italiano Silvio Berlusconi- está vazio. Por causa de um acordo fechado por Roma com a Líbia em maio, os milhares de africanos que desembocavam todo mês nesse pedaço de terra de 20 km2 ao sul da Sicília pararam de chegar.
Mas não pararam de vir.

O tratado com Trípoli determina que as forças de Muammar Gaddafi podem patrulhar as águas entre os dois países. Podem também capturar imigrantes clandestinos pegos no mar e levá-los à Líbia, de onde eles, em tese, solicitariam permissão para entrar na Itália.

Ninguém checa suas nacionalidades. Segundo assistentes humanitários, são majoritariamente homens jovens. Muitos são eritreus. Mas também há congoleses, sudaneses e nigerianos. Ninguém pergunta a razão pela qual deixam seus países. Em alguns barcos, chegam mulheres e crianças.

“Na Líbia, eles são jogados em centros e ficam lá sem prazo determinado”, disse à Folha Laura Boldrini, a porta-voz na Itália do Acnur (Alto Comissariado da ONU para Refugiados). E quais as condições desses centros? “Trípoli não tem lei sobre asilo. Não permite a entrada do Acnur. E não assinou as Convenções de Genebra [que protegem as vítimas de conflitos armados].”
Magistrados italianos reunidos no fim de semana passado para debater o problema consideram o acordo -e a recente legislação que criminalizou a imigração irregular- uma violação da Constituição.

“É interessante observar a contradição dessa prática com toda a tradição ocidental. O direito de migrar é um dos primeiros direitos universais do ser humano e está na base da Constituição italiana”, defende Luigi Ferrajoli, professor de filosofia do direito da Universidade de Roma.
Para ele, a “política da expulsão” é “racista e hipócrita” em um país que no último século exportou tantos migrantes.

Segurança

O governo Berlusconi comemora o sucesso. De maio até setembro, apenas 192 pessoas chegaram à ilha -uma queda de 92% em relação ao mesmo período do ano passado. Ao todo, em 2008, desembarcaram 31.247 africanos nas baías de areia clara e água turquesa que atraem turistas das classes média e média baixa italianas.
Muitos dos que não chegam mais morrem à deriva, sem ajuda das embarcações cujos tripulantes temem prestar socorro e ser considerados cúmplices numa atividade ilegal.
Posta na berlinda na semana passada na sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, a embaixadora Laura Mirachian afirmou que a Itália recebeu um fardo maior do que pode levar e que a cooperação com a Líbia era crucial para acabar com a atividade de tráfico humano na região.
A travessia é cobrada e ocorre de maneira precária, às vezes com centenas de migrantes amontoados num bote. “Uma vez pegamos um barco com 350 pessoas a bordo. Nem se você visse acreditaria que conseguiram colocar tudo aquilo”, diz em um português tímido Cesare Dellinoci, da Guarda Costeira local. “Ficaram pelo menos quatro dias no mar.”
Antes do acordo com a Líbia, os quatro barcos da Guarda Costeira mantinham um trabalho frenético de ronda e resgate. Hoje, as horas são de ócio.

Na África

Com sua vegetação de semiárido, suas casas de linhas retas e cores solares e suas ruas mal asfaltadas, Lampedusa fica a apenas 113 km da Tunísia, 180 km da Líbia -e a 220 km da Sicília. “Estamos muito mais na África do que na Europa”, conclui o capitão Antonio Morana.

A viagem de um imigrante pode levar dez horas ou 20 dias. “Depende do piloto e da rota que ele faz. Depende da época do ano. Eles saem em dias que nós, com nossos barcos, não saímos porque o mar está agitado”, completa Dellinoci.

Há um mês no cargo, Morana teve seu “batismo” no fim de agosto, quando resgatou uma embarcação com cinco eritreus que dizem ter perdido 70 companheiros em um périplo estimado em 20 dias.

Indagado sobre a versão dos náufragos de que outras embarcações os ignoraram, o capitão refuga. “O tema é muito delicado para o governo. Preciso de autorização para falar.”
Os italianos com quem a reportagem conversou veem uma população dividida sobre a lei. “A população italiana nos últimos dez anos, sobretudo sob Berlusconi, sofreu lavagem cerebral. O debate sobre esse tema se tornou muito pobre ao focar só em segurança”, lamenta Laura Boldrini, do Acnur.

Mas, na pequena ilha de 6.000 habitantes, o tratado com a Líbia é endossado por questões econômicas. “Com o acordo, melhorou muito. Se pegamos aqui, os devolvemos para lá, de onde saíram”, diz o comerciante Pasquale, gerente de um dos inúmeros pequenos hotéis da ilha.

“Não tem o que fazer aqui. E não tinha como eles não serem vistos. Eles são diferentes. Os turistas fugiam, achavam que estaria cheio de “clandestini” aqui”, completa sua mulher, Steffania. “Quem ia querer vir de Milão para isso?”

Matéria original

-+=
Sair da versão mobile