Jaqueline Goes: A ciência precisa da população ao seu lado

Uma das responsáveis por coordenar o primeiro sequenciamento no genoma do coronavírus no Brasil, a pesquisadora conversa com a cantora Fernanda Abreu no programa Prêmio Trip Transformadores

FONTERevista Trip
Jaqueline Goes de Jesus na bancada do laboratório: faz vigilância genómica dos novos vírus no Brasil (Foto: ALMIR R. FERREIRA/SCAPI IMT)

Coordenando uma equipe formada majoritariamente por mulheres, a biomédica Jaqueline Goes de Jesus ganhou visibilidade nacional ao realizar no campo da ciência um feito fundamental. No ano passado, ela sequenciou o genoma do coronavírus apenas 48 horas depois da detecção do primeiro caso da doença no Brasil. No resto do mundo, esse mapeamento levou, em média, 15 dias. A cientista homenageada pelo Trip Transformadores 20/21, que esteve envolvida em diversas outras iniciativas que marcam evoluções importantes no enfrentamento de epidemias na saúde brasileira, agora está em Londres concluindo mais uma etapa de sua formação e pesquisando os novos desdobramentos da pandemia.

No programa Prêmio Trip Transformadores, a pesquisadora conversou com a cantora Fernanda Abreu sobre a importância da comunicação entre cientistas e população – e de que modo essa união pode ser poderosa contra iniciativas negacionistas que atrasam o fim da pandemia. “Nós, cientistas, talvez nunca tentamos realmente trazer uma linguagem mais fácil, compreensível, palatável”, diz. “Estamos entendendo o quanto é importante termos a população ao nosso lado e, para isso, a gente precisa saber explicar bem o que a gente tem descoberto.” Nesse papo, elas pensam juntas sobre os gargalos que as mulheres encontram para garantir um lugar ao sol no mundo acadêmico. O programa vai ao ar todo sábado, às 22h, na TV Cultura. Assista a um trecho do papo ou leia a entrevista a seguir. 

Fernanda Abreu. Eu estou muito curiosa para saber o que você foi fazer em Londres. A gente sabe que você chegou há pouco tempo, e queria que você começasse contando um pouco para a gente o que te levou a deixar o Brasil nesse momento agudo da pandemia da Covid-19, especialmente agora que as fronteiras estão fechando.

Jaqueline Goes. Minha vinda para Londres é, na realidade, um desdobramento do meu pós-doutorado na Universidade de São Paulo (USP). A gente já tinha essa perspectiva de vir para Londres para trabalhar em conjunto com o pessoal do Imperial College – que é especialista nessa parte de modelagem matemática, em predição de dados relacionados a epidemias. Agora, mais do que nunca, precisamos realmente abrir essa expertise, que é algo que nós, no Brasil, ainda não temos tanta experiência. A ideia de vir para Londres é justamente utilizar os dados que já foram gerados durante o sequenciamento genético no Brasil, para que eu possa aprender a fazer as modelagens aqui com o pessoal do Imperial College e possa voltar e aplicar essa técnica, também, nos outros projetos que a gente desenvolve. 

O Brasil, pelo menos para mim, representa uma potência criativa muito grande. Queria saber na sua visão, como cientista, que faz trabalhos importantes dentro e fora do Brasil, se tem alguma coisa na nossa originalidade, no nosso jeito de ser, que você acha que possa refletir na forma de fazer ciência assim como reflete na nossa forma de fazer cultura. Sem dúvidas. Costumo dizer que nós estamos acostumados, no Brasil, a trabalhar dentro de condições que não são as condições ideais. Então, a gente acaba usando aquele famoso jeitinho brasileiro para tentar suportar as dificuldades e produzir conhecimento, produzir resultados dentro da ciência. Obviamente, não podemos romantizar essas dificuldades que acontecem dentro do nosso caminho, mas elas nos preparam para conseguir desenvolver melhor o nosso trabalho quando as condições são extremamente favoráveis, como é o caso fora do Brasil. Muito do que acontece é que nós já estamos acostumados a trabalhar numa rotina pesada dentro do Brasil, uma escala de trabalho que muitas vezes ultrapassa oito horas diárias, e quando a gente vem para fora – onde toda a estrutura está disponível e, mais do que isso, a disponibilidade dos reagentes, a disponibilidade de recursos, tudo fica mais fácil – acabamos, realmente, produzindo mais. 

Imagina se você estivesse aí fora? Porque você e sua equipe sequenciaram o coronavírus em apenas 48 horas aqui no Brasil, enquanto o resto do mundo estava levando 15 dias para fazer a mesma coisa. Queria que você falasse um pouco para que serve esse sequenciamento e qual foi o peso dessa resposta rápida que vocês tiveram lá no início da pandemia. A técnica que nós utilizamos no Brasil foi aprendida aqui com a equipe da Inglaterra. Então, nós fomos treinados lá em 2016, num projeto anterior do sequenciamento genético do vírus Zika. Com todo esse treinamento que a gente foi aprimorando ao longo de quatro anos, tivemos a possibilidade de fazer em 48 horas, como você bem falou. Esse sequenciamento genético nas primeiras 48 horas foi fundamental, primeiro, para que a gente pudesse colocar o Brasil no foco das discussões em relação à pandemia. A gente não teve o retorno das autoridades governamentais em relação ao nosso resultado, infelizmente. Não tivemos medidas sendo tomadas com a mesma celeridade com a qual nós tivemos os resultados, e isso impactou diretamente no desdobramento da pandemia no Brasil. Mas ter feito isso nos colocou em posição de igualdade em relação a muitos outros países. A Inglaterra já estava fazendo isso e foi justamente com os nossos parceiros que tivemos a possibilidade de realizar esse sequenciamento tão rápido – e ele traz informações fundamentais para que a gente possa entender qual é a variante, qual é a cepa, qual é a linhagem do vírus que está circulando ou que foi introduzida no território brasileiro e, a partir daí, rastrear toda aquela cadeia de transmissão que era muito natural que acontecesse no Brasil. Foi um passo importante, apesar da gente não ter tido tanto crédito enquanto cientistas. Mas em outra situação, uma outra pandemia ou epidemia futura, se a gente utilizar os resultados de sequenciamento para a tomada de decisões em relação a políticas públicas, sem dúvidas vamos conseguir controlar melhor qualquer tipo de epidemia ou pandemia.

Como é que você vê a sua atuação nesse momento crítico da pandemia? Enquanto cientista que trabalha especificamente com sequenciamento genético, que é a técnica que possibilita identificar essas novas variantes, a gente vê que o nosso trabalho é fundamental. Não estou no Brasil, mas eu cheguei na Inglaterra tem pouquíssimas semanas e, até a semana em que eu estava prestes a vir para cá, nós estávamos dentro do laboratório, justamente, gerando mais conhecimento para identificação dessas novas variantes. A importância da ciência nesse momento é identificar novas variantes que possam emergir de forma rápida, como a gente tem observado. A cada dia, recebemos informação de uma nova variante que foi encontrada, seja no Brasil, seja fora do Brasil. Nossa atuação é para tentar trazer essas informações, mais uma vez, o mais rápido possível para que sejam tomadas as medidas necessárias em relação a fechamentos de cidades ou mesmo a preconização do isolamento, como tem acontecido no mundo como um todo. 

A ciência virou o centro do debate público. E aí, a gente vê dois sentimentos conflitantes em relação a ela. De um lado, tem a valorização dos pesquisadores, que estão fazendo um trabalho fundamental para entender melhor o vírus, os tratamentos, estudar as vacinas. Do outro, tem o negacionismo, um descrédito da palavra dos cientistas. O que você acha que alimenta a descrença dessa parcela da população? Como você acha que a gente pode reverter esse pensamento negacionista que só leva a gente para o caos, o colapso do sistema de saúde e uma situação mais difícil do que a gente está? Acho que existem alguns fatores que levam a esse movimento negacionista mais exacerbado nesse momento. O primeiro deles é que o movimento negacionista não é recente, não é algo de agora, do ano passado, por conta da pandemia. Ele já existe há um tempo, principalmente com o movimento antivacina – e a gente observa, inclusive, esse movimento em outros países, baseado em conhecimentos que as pessoas, normalmente, acabam entendendo ou interpretando de forma incorreta. Isso gera toda uma desconfiança em relação ao conhecimento que a gente vem produzindo ao longo de bastante tempo. O segundo fator é que nós, cientistas, nos afastamos de certa forma da população ou talvez, eu diria, nunca chegamos tão próximos da população para informar, para conversar e tentar realmente trazer a luz de uma linguagem mais fácil, compreensível, palatável. Acho que a gente está entendendo o quanto é importante, enquanto cientistas, termos a população ao nosso lado e, para isso, a gente precisa saber explicar bem para essa população o que a gente tem descoberto. Outro fator é que, nesse momento, a gente vive um movimento político no Brasil que por si já é negacionista – porque a ciência vai de encontro a todas as ideias desse movimento político e ele, talvez até para se defender e para sobreviver, acaba criando esse movimento das fake news com toda a necessidade de propagar esse descrédito da ciência. No momento em que você instala uma dúvida em relação a um conhecimento que está sendo abordado por um cientista ou por um especialista na área, você dá poder para a população começar de fato a questionar e se posicionar. Então, se você tem no governo um movimento político que apoia o outro lado, o anticiência, você se sente confortável para, também, seguir aquele movimento, porque existe uma liderança fazendo esse tipo de movimento. É esse conjunto.

Com toda a população imunizada, você acha que a gente consegue sair dessa pandemia? E se esse dia acontecer, o que você está ansiosa para fazer? Tenho essa ansiedade, sim, de deixar de precisar desses cuidados extremos. Acho que no dia que disser “podemos sair, estamos livres da pandemia”, a primeira coisa que eu vou fazer é começar a abraçar as pessoas. Acho que é capaz até de eu sair abraçando gente que eu não conheço, só pelo simples fato dessa troca de afeto, dessa troca de energia que o abraço proporciona.

No Brasil, as mulheres negras ainda são uma minoria entre as pesquisadoras e as cientistas brasileiras. Como é que essa ausência te afetou? Porque normalmente as pessoas têm referências na história como Newton, Einstein, Darwin, mas não têm na cabeça referências de grandes mulheres cientistas, especialmente negras. Realmente, vim conhecer a profissão de cientista já na graduação. E a minha história dentro da área acadêmica não foi tão fácil, porque naquela época a gente não tinha referências femininas ou negras dentro da ciência. Mais do que isso, naquele momento ainda não existia o movimento de transformação desse ambiente acadêmico. Então, era um ambiente muito elitista, onde eu convivia com pessoas que não faziam parte da minha realidade social. Isso trazia uma certa disparidade, porque a gente tinha perspectivas diferentes em relação ao universo de modo geral, as dificuldades eram diferentes. Quando você começa a ir para fase do doutorado, pós-doutorado ou posições mais sêniores, a gente tem uma redução no número de mulheres. Isso porque a academia não é pensada para as mulheres. Elas enfrentam muito mais dificuldades do que os homens, porque acabam tendo papéis sociais que são cobrados, acabam tendo uma dupla ou tripla jornada. A parte da academia se torna muito pesada para uma mulher, porque ela tem que escolher entre constituir uma família, estabelecer outros papéis sociais e fazer ciência. 

Essa pandemia foi uma reviravolta na vida de todo mundo, mas especialmente para vocês que estão de frente, tanto profissionais de saúde quanto pesquisadores. O que mudou na sua vida pessoal? E o que você quer deixar de recado para as pessoas? Mudou tudo. Eu não esperava ter essa projeção nacional que aconteceu por conta da minha atividade na pesquisa. Isso me colocou num cenário completamente diferente de tudo o que eu já imaginei na vida. Então, acho que a pandemia contribuiu positivamente nesse sentido e, por outro lado, consegui perceber o quanto nós somos dependentes de políticas públicas que sejam consoantes com os conhecimentos científicos, o quanto a gente precisa ter uma concordância em termos de decisões que são tomadas dentro de uma nação quando se trata de um problema que atinge a todos. Então, não parei de trabalhar. Foi realmente um ano muito pesado, porque a carga de trabalho aumentou. São horas a fio dentro do laboratório, porque tudo é muito urgente, a gente precisa trazer respostas muito rápidas – porque vidas dependem dessas respostas. Então foi um ano de me dedicar muito para a minha atividade profissional. Mas fica o recado de que eu dependo da vida do outro e o outro depende da minha vida. Nossas ações impactam diretamente no conjunto do que a gente está vivendo, que é o conjunto da pandemia. Impactam diretamente no aumento de casos, no aumento de óbitos e, mais do que nunca, a gente precisa puxar essa responsabilidade para si e entender que, em coletividade, tanto a gente traz o melhor para o nosso país quanto o pior para a nossa população. O recado é esse: mantenham-se firmes, saibam que qualquer uma das ações que vocês tomarem vai refletir no nosso contexto social, no nosso contexto de pandemia e o melhor nesse momento, realmente, é ficar em casa, se proteger e proteger o outro. 

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