Daqui a poucos dias, o brasileiro Marcelo Nascimento Leandro vai à luta. Palma de Mallorca, oitava cidade mais populosa da Espanha, tem o Real Club Deportivo de Mallorca na elite do futebol do país. Mas o objetivo dele não é esse.
O jogador reconhece que despertar interesse de um clube da primeira divisão seria esperar demais. Prefere focar nas várias equipes amadoras da região. Alguma delas pode ser o caminho para ele recomeçar aos 32 anos.
Marcelo passa por processo de transição de gênero. Como atacante da equipe feminina do Corinthians, vislumbrava chance de convocação para a Copa do Mundo de 2019, na França. Mas a depressão por não se aceitar como era fez com que largasse tudo e buscasse, como define, ser feliz.
Seu objetivo agora é encontrar time para atuar no futebol masculino. Algo que pode se transformar em um marco no esporte.
“Eu acredito que possa ser uma referência. Mas coloco algumas vírgulas no meio. No futebol, há a questão da idade. Cada vez mais as equipes investem em atletas mais novos. Não que isso tenha a ver com a qualidade do futebol. Acredito que preciso de uns seis meses para adaptação física [para jogar como profissional]”, avalia o brasileiro.
Marcelo já sentiu na pele as dúvidas que dirigentes, agremiações e federações têm sobre o que fazer com um atleta transgênero. No ano passado, durante a pandemia, treinou no Democrata de Sete Lagoas, em Minas Gerais.
“Ninguém sabia como proceder, se eu podia jogar, se podia treinar. Nem mesmo a CBF sabia como lidar com a situação”, completa.
A mudança para a Espanha não foi por causa do esporte, nem por ser mais fácil achar clube. Marcelo se casou no início de 2021 com Gigliane, sua namorada há três anos. Por causa do trabalho, ela se mudou para Palma de Mallorca. O marido decidiu ir ao seu encontro.
“É começar tudo de novo. Treinar, jogar torneios amadores e ver onde isso vai me levar. O corpo precisa dessa adaptação. Futebol sempre foi minha vida e ainda gosto muito”, explica.
Antes da transição, ele não tinha dúvidas no futebol. Era destaque do Corinthians, foi campeão do Brasileiro feminino, teve convocações para a seleção. Mas fora de campo, o que mais sentia era incerteza e infelicidade. Relembra que aquele corpo de mulher não era o seu. Sentia-se desconfortável, estava sempre triste. Teve crise de depressão em 2018, com recaída em 2019. Decidiu que não dava mais.
Já havia lido sobre a transição, as injeções hormonais a cada 15 dias. Abriu mão da modalidade para se encontrar. Seu pai foi jogador de futebol em equipes mineiras. Poderia ter alcançado mais não fossem os problemas com álcool. Mas isso faz parte de uma história que Marcelo deixou para trás.
“Eu estava em um momento muito bom da carreira. Decidi parar porque ansiava pela transição. E não havia atleta trans. Não tinha um exemplo para seguir [no futebol]. Por isso que disse que posso ser referência. Deixei o futebol de lado e me dediquei à transição. Hoje o futebol é um sonho. Um recomeço”, constata.
Para se sustentar financeiramente fora dos gramados, trabalhou como motorista de aplicativo. Voltou para a cidade mineira de Sete Lagoas, onde nasceu. O lugar do qual saiu aos 14 anos para ser profissional do futebol.
“Até hoje há muitos questionamentos. Muita gente pergunta se era o momento de parar. Amigos perguntam se estou bem com a decisão que tomei. Estou. Eu não queria esperar, por mais saudades que tenha do futebol. É mais complicado para quem conhecia a Marcela antes. O cérebro dá uma travada. Quando conheço pessoas novas, elas nem acreditam.”
Com seus pais e outros familiares está tudo bem agora, mesmo que no início não tenha sido.
Contente também com a qualidade de vida em Palma de Mallorca, Marcelo reconhece, com seu sotaque mineiro carregado, que a decisão era difícil no momento em que foi tomada. Quantos futebolistas têm uma chance real de disputar uma Copa do Mundo, seja homem ou mulher? Uma porcentagem pequena.
Abrir mão disso dá noção da infelicidade que Marcelo sentia.
“Eu poderia ter ido e jogado um Mundial. Mas eu almejava a transição desde o momento em que descobri sua existência e sabia que uma coisa [a transição] excluiria a outra [a Copa]. Eu estava muito bem. Poderia ter sido chamado”, confessa.
Além do desejo da segunda chance no futebol, Marcelo desperta outras questões: como se sairia no universo do futebol masculino? Até onde conseguiria chegar?
A resposta para essas perguntas só chegará se alguém lhe abrir uma porta no futebol espanhol. Uma entrada que pode significar muito não apenas para ele, mas para outros atletas que sentem a mesma ansiedade que o afligiu, independentemente do gênero.
“Eu treinei a minha vida inteira. Joguei bola desde criança. Por mais que mude do feminino para o masculino, o futebol tem uma lógica. O campo é o mesmo, as regras são as mesmas, as táticas são muito parecidas. O que pega é a questão física. Isso é o que precisamos descobrir. É o desafio.”