Juízes iniciantes fazem curso para aprender que ‘ainda existe racismo no Brasil’

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Desde agosto do ano passado, 328 juízes em início de carreira se capacitaram na disciplina Políticas Raciais. A inclusão da matéria ao currículo, apesar de vista como positiva, veio atrasada, dizem especialistas.

por Ana Flávia Oliveira no Último Segundo

Para o Guilherme Calmon, conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão que recomendou a inclusão da disciplina na grade, a medida está tentando reverter um atraso secular no judiciário.

Racismo no Brasil

“A impressão que temos é que nada foi feito antes por força da própria sociedade que ainda tem atitudes preconceituosas. O judiciário é um reflexo desta sociedade. É uma falha ter passado tanto tempo [sem nenhuma medida], mas melhor que tenha vindo tarde do que nunca ter vindo”, diz Calmon.

O curso é ministrado desde agosto do ano passado nas 32 escolas judiciais ou de magistratura espalhadas por todos os Estados. Segundo Rai Veiga, secretária-executiva da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), responsável por ministrar o curso de formação obrigatório a todos os magistrados inciantes, o objetivo da matéria é “descontruir o mito da democracia racial”. Ela diz que, muitas vezes, os juízes chegam às salas de aulas com as ideias pré-concebidas de que o racismo não existe no Brasil.

“Vivemos numa sociedade racista que camufla e minimiza esse preconceito. Na sala de aulas, são apresentados dados, evidências, estatísticas e estudos de caso para que eles [magistrados] cheguem à conclusão de que realmente existe o racismo”, diz.

“O curso leva o magistrado a refletir sobre o assunto e percebem que é uma questão social. Muitos não têm essa noção, ou por ingenuidade ao encarar a questão ou por falta de vivência do problema”, completa Rai.

A disciplina tem quatro horas de duração, o equivalente a 10% de horas da grade curricular obrigatória do novo magistrado. O curso total de 40 horas inclui ainda matérias como Judiciário e a Sociedade, Direito Eleitoral, Juiz e as Relações Interpessoais e Interinstitucionais, Mediação e Conciliação, Vara da Infância e Juventude e Sistema Carcerário.

A Enfam considera a carga horária destinada à discussão sobre Políticas Raciais ainda insuficiente, mas diz que está revisando o conteúdo para que essa questão ganhe um modulo único com 40 horas de carga horária, diz Rai.  “Esse é o início, mas a ideia é que a gente tente recuperar o tempo perdido. Temos que pensar em ampliar a temática. A escola, contudo, precisa ter uma estrutura mais arrojada para atender os juízes que já estão atuando. Estamos pensando em alternativas para atendê-los, como aulas a distância e eventos”, disse.

Ela concorda que a formação especifica nessa área veio tarde, mas pondera que a própria formação do magistrado é recente no País. “A temática racial já vinha sendo discutida em sala desde 2013 em forma de palestras. O curso, a partir da recomendação do CNJ, é recente e tardio, mas a própria escola é nova e só foi criada apenas em 2004. Nós não tínhamos uma cultura de formação e aperfeiçoamento contínuo”.

Calmon, do CNJ, também diz que o curso para ser eficaz deve ser replicado a todo o corpo de 16 mil magistrado dos País. Otimista, ele diz que os mais experiêntes devem ter acesso à matéria nos próximos três anos.

Aplicação

Dos 328 magistrados que já cursaram Políticas Raciais, a maioria (107) atua na Justiça Estadual de São Paulo, 60 trabalham em Pernambuco, 48 no Espírito Santo, 42 em Goiás, 26 no Mato Grosso e 34 no Rio de Janeiro. Além deles, sete juízes estão alocados no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), dois do TJ do Piauí, um do TJ do Acre e um do TJ de Mato Grosso do Sul, segundo o CNJ

Para o juiz do Tribunal de Justiça de Goiás, Diego Costa Pinto Dantas, que participou da formação em setembro do ano passado, o curso serve para que o magistrado consiga relacionar a questão social do acusado com o crime cometido.

“Principalmente na área criminal, há uma relação direta entre as ausências de políticas raciais e socioeconômicas com a prática do crime. Muitas vezes o autor é excluído da sociedade. Então, na minha atuação, sempre que possível, tento levar isso em consideração e dosar a pena tendo essas questões em mente”, afirma.

Ele diz que esse curso também serve para aplicação de penas quando a vítima é um negro, como em processos de injuria racial e racismo.

Ex-delegado, Dantas diz que o curso deveria ser estendido para outros profissionais de atuação judiciária, como policiais civis, promotores e advogados.

Vitória tardia

Para entidades de militância negra, a medida é comemorada como uma vitória tardia. “Óbvio que veio tarde, mas isso não é o mais relevante. O importante é ter vindo”, diz Edson França, presidente da União de Negros Pela Igualdade (Unegro).

“É um movimento virtuoso, uma tentativa de mitigar os efeitos do racismo. Não podemos considerar que tudo está como era antes. Tem sinais positivos em todas as esferas: União, Legislativo e também no Judiciário. Embora o País tenha sido criado na base da escravidão, não tenha oferecido nenhuma contrapartida quando libertou os escravos e até hoje não reconhece o racismo, essa é uma questão histórica, que a gente não vai solucionar de ontem para hoje”, diz França.

“Há um tratamento desigual. O negro é visto como a imagem do suspeito padrão. Incluir Políticas Raciais no curso de formação básica do Judiciário ajuda a sensibilizar, fazer uma autocrítica que vai de encontro ao combate do racismo institucional”, diz França.

O frade franciscano Frei David, diretor-executivo da Educafro, diz que essa formação já era um pedido antigo do movimento negro. “Para nós, sempre foi impossível um juiz se formar sem conhecer a realidade rica e politênica brasileira”.

Rede de combate a mortalidade negra

O curso de Políticas raciais aplicado a juízes iniciantes é uma das várias etapas do Protocolo de Atuação para a Redução de Barreiras de Acesso à Justiça para a Juventude Negra. O documento representa compromisso de várias instituições, como CNJ, Ministério da Justiça, Governo Federal, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), entre outras, de combate ao racismo, e consequentemente, a diminuição da violência contra negros.

Segundo o Mapa da Violência 2014, o número de jovens negros assassinados anualmente no País saltou de 17.499 em 2002 para 23.160 em 2012, um aumento de 32,4%. No mesmo período, o número relativo aos jovens brancos caiu 32,3%, de 10.072 para 6.823 casos.

“O curso de políticas raciais é uma das ações de prevenção. A formação de juízes é fundamental, mas isso tem que chegar nas polícias, nos meios de comunicação, na sociedade. Nós estamos criando uma rede de atuação contra essa violência. São pedaços que precisam se juntar e ainda temos muito o que avançar”, afirmou Lindivaldo Junior, gerente de projetos da secretaria de políticas de ações afirmativas da Seppir.

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