Juízes não seguem o STF e barram cotistas em concursos de universidades com três vagas ou menos

Na Bahia, a médica Lorena Figueiredo teve posse barrada por liminar

A candidata cotista Lorena Pinheiro foi barrada por liminar de ocupar uma vaga de docente na UFBA — Foto: Caique Silva

Instituída há dez anos, a lei que reservou a negros 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos ainda enfrenta obstáculos para ser aplicada em seleções para professores de universidades e institutos federais com três cargos ou menos. Instituições têm seguido a orientação do Supremo Tribunal Federal (STF) e, mesmo nestes casos, mantido a reserva de vagas. Mas decisões judiciais na Bahia impediram a posse de cotistas. E em outros estados, como Minas, também houve questionamentos da orientação.

O problema chamou a atenção de entidades do movimento negro quando, no fim de agosto, a juíza Arali Maciel Duarte, da 1ª Vara Federal Cível da Bahia, concedeu uma liminar para que Carolina Cincura Barreto ocupasse uma vaga no lugar da médica Lorena Figueiredo, de 39 anos, na Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Lorena concorreu como cotista e ficou em quarto lugar no concurso para professor Adjunto do Departamento de Cirurgia Experimental e Especialidades Cirúrgicas, na área de otorrinolaringologia. Carolina ficou em primeiro na classificação geral.

O edital previa, no entanto, que para concursos de apenas uma vaga, como neste caso, o critério de cota seria o primeiro para definir a escolha. Mas a juíza alegou que a regra é uma “afronta ao direito de quem se submeteu à ampla concorrência e obteve notas mais altas”.

Desde 2018, a UFBA reserva 20% das vagas para cotistas negros em todos os seus concursos, como prevê a lei, considerando a totalidade de cargos do edital, sem aplicar qualquer fracionamento sobre especialidades. Anteriormente, este percentual era aplicado somente nas áreas com três ou mais vagas. Contudo, no caso dos concursos para professor do magistério superior das universidades federais, como as vagas por cada área do conhecimento são, em geral, inferiores a três, a aplicação da cota não era possível.

A orientação obedece o entendimento do Supremo Tribunal Federal na Ação de Declaração de Constitucionalidade (ADC) 41 para impedir que instituições fracionem seus processos seletivos e, consequentemente, a oferta de vagas em concursos com menos de duas vagas, contornando a premissa de inclusão da política de ação afirmativa.

Lorena recorreu da decisão e a UFBA informou que as providências de recurso estão em andamento. Carolina não retornou o contato do GLOBO.

— A afirmação (da juíza) desconsidera as ações afirmativas e todo seu propósito de reparação histórica. Meu sonho de estar na universidade pública e no SUS foi interrompido. Contribuir para a formação de novos médicos com novas posturas de atendimento também. Nunca foi pelo salário. É um projeto de vida — lamenta Lorena.

‘Precedente para violar’

A orientação do STF também não foi suficiente para reverter a decisão que impediu o farmacêutico Felipe Hugo Fernandes, de 35 anos, de se tornar professor da UFBA em um concurso em 2021. Aprovada em primeiro lugar, Quiara Lovatti Alves conseguiu uma liminar para ocupar a única vaga na área de farmacologia. Felipe recorreu na ação, que tramita em segunda instância na Justiça da Bahia. Procurada, a advogada de Quiara não respondeu até a publicação desta reportagem.

— Passei um ano sem fazer concurso porque fiquei sem esperança, essa situação abre precedentes para violar a lei — reclama o professor, que posteriormente foi aprovado na Universidade Federal do Vale do São Francisco, em Pernambuco.

Para o advogado de Fernandes, Igor Mascarenhas, a decisão beneficiando Quiara mostrou falta de conhecimento da realidade social por parte da Justiça.

— Situações como essas representam uma visão reducionista das cotas — critica Mascarenhas.

A repercussão dos casos na Bahia gerou a mobilização de organizações como o Movimento Negro Unificado da Bahia, a Frente Nacional de Negros e Negras e a Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia. Um documento assinado por 109 professores negros da UFBA ressalta que “este incidente não deve ser considerado como um problema isolado”.

Em nota, a UFBA informou que a mudança nos editais tem ajudado na busca pela equidade no corpo docente. Atualmente, de seus mais de 2 mil professores, cerca de 51,9% se autodeclaram brancos e 40,4% negros. Em 2014, ano da implantação da lei de cotas, havia na instituição 62,7% de docentes brancos; enquanto 33,5% eram negros.

A instrução do STF levou as universidades federais de Uberlândia, Sergipe e de Alagoas a também aplicarem a reserva sobre o total de vagas nos seus concursos. Na instituição alagoana, desde a mudança, em 2019, ocorreram três concursos para docentes, com aprovação de 15 pessoas negras via cotas.

De acordo com a pesquisadora Vanessa Cristina Palma, professora Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, a mudança nos concursos e a orientação do STF são importantes porque o perfil dos servidores ainda é majoritariamente branco, mesmo uma década após a implementação da Lei das Cotas.

Em uma pesquisa de Palma sobre a efetividade da ação afirmativa nos concursos para professores federais, em todos os editais lançados entre 2014 e 2017 por 63 instituições, apenas 3% dos 20% das vagas reservadas realmente foram destinadas aos candidatos negros. Um dos motivos da baixa representatividade era o fracionamento de vagas oferecidas.

— Em muitos casos, não fica clara a reserva específica para cotistas, como definido na legislação — afirma a pesquisadora.

Vanessa acrescenta que, passado-se alguns anos, o cenário ainda não progrediu:

— Nos dias atuais houve um pequeno aumento no número de vagas reservadas para cotistas em universidades. Mas ainda estamos longe de atingir a porcentagem prevista na lei. Isso acontece também porque os cotistas não têm acesso a uma estrutura de permanência de pretos e pardos nos cargos.

Dados do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos e da Escola Nacional da Administração Pública apontam, com base nos concursos desde 2015, que cerca de 14 mil pessoas deixaram de ser beneficiadas pelas cotas por má aplicação da lei. Nesse cenário, apenas a partir de 2039 os servidores pretos e pardos somariam 50% do total.

Manteve a vaga

O enfermeiro Glênio Alves de Freitas conseguiu manter sua aprovação no concurso para professor da Universidade Federal de Uberlândia, apesar do pedido de liminar de um candidato que tentou invalidar a nomeação. Em janeiro de 2023, Glênio se tornou o primeiro docente negro e cotista da instituição mineira.

— Quando eu fui citado no processo, o juiz já tinha negado a liminar. O juiz reconheceu a autonomia administrativa da universidade e a importância da diversidade na academia — lembra.

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