Julho das Pretas

FONTEO Globo, por Flávia Oliveira
Flávia Oliveira (Foto: Marta Azevedo/ Arquivo O Globo)

Um mês depois de a multidão indignada arrancar do pedestal — e lançar num rio de Bristol, no Reino Unido — a estátua do comerciante de escravizados Edward Colston, uma mulher negra foi içada a monumento na mesma praça, no mesmo ponto, como alvorecer de uma necessária era antirracista. O escultor britânico Marc Quinn, famoso pelas obras provocativas, eternizou — por um dia, posto que o poder público removeu a ousadia — em resina e aço o gesto da jovem Jen Reid: braço direito erguido, punho cerrado. Nos Estados Unidos, a onda de manifestações em reação ao assassinato por asfixia do americano George Floyd, homem negro, por um policial branco também resultou num reconhecimento simbólico ao ativismo feminino numa capa da revista “Rolling Stone”. O artista visual Kadir Nelson batizou de “American Uprising” (revolta americana em tradução livre) a obra com uma moça e um menino negros à frente dos manifestantes, numa releitura declarada de “A liberdade guiando o povo”, tela de Eugène Delacroix que representa o espírito da Revolução Francesa.

A mais vigorosa safra de protestos nos EUA em meio século teve como motivo a violência homicida que abate, sobretudo, homens negros, mas nasceu da indignação de três mulheres. Inconformada com o assassinato a tiros de Trayvon Martin, aos 17 anos, em 2013, a escritora Alicia Garza postou em redes sociais o desabafo de que deu nome ao movimento por trás dos atos: black lives matter. A artista Patrisse Khan-Cullors transformou a frase em hashtag e compartilhou. Opal Tometi, também escritora, procurou as demais. O trio pôs de pé o movimento que inspira ativistas mundo afora e no Brasil viralizou pela tradução #vidasnegrasimportam. Alicia, Patrisse e Opal preferem apresentar o Black Lives Matter como movimento sem organização hierárquica. Tratam-no como intervenção político-ideológica de afirmação da humanidade de pessoas negras. Mas o protagonismo delas é tão óbvio quanto reconhecido.

No Brasil, os protestos dos americanos jogaram luz em mobilizações recorrentes, mas nunca tão visibilizadas, do movimento negro contra a violência policial e o racismo estrutural, que confina pretos e pardos às piores condições de moradia, acesso a serviços, trabalho e rendimento — agora agravadas pela pandemia da Covid-19. Para ficar num par de exemplos, no centenário da Lei Áurea, em 1988, negros tomaram a Avenida Presidente Vargas, no Centro do Rio, na Marcha Contra a Farsa da Abolição. Mulheres negras marcham país afora, desde 2015, pelo bem viver.

Aqui, o junho da chamada Primavera Americana, que pôs o combate à violência racial no centro do debate político, foi dos homens e dos jovens negros. O ponto de partida foi a série de mortes decorrentes de operações policiais em favelas do Rio de Janeiro, que ignoraram a fase mais intensa do isolamento social imposto pela crise sanitária provocada pelo novo coronavírus. Foi preciso uma liminar do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), restringir as intervenções ao estritamente necessário para estancar a sangria, que chegou a interromper ações humanitárias de distribuição de cestas básicas e kits de higiene em comunidades do Complexo do Alemão, na Cidade de Deus e no Morro da Providência. Agora, é São Paulo que debate a brutalidade dos agentes do Estado, após flagrantes de agressões a jovens e até a uma mulher negra, a comerciante de 51 anos, que teve o pescoço pisado por um policial, numa mimetização macabra do assassinado de Floyd, cinco dias antes.

Se junho foi dos homens, o julho há de ser das mulheres pretas. É neste mês, dia 25, que se comemora o Dia da Mulher Negra Latino-Americana — no Brasil, dedicado à memória de Tereza de Benguela, líder do Quilombo do Quariterê, em área que hoje pertence ao Estado do Mato Grosso. Publicações de circulação nacional estampam em capas e reportagens negras de projeção em suas áreas de atuação. Mas as organizações de mulheres querem debater agendas e propostas, reconhecer a capacidade e o protagonismo de ativistas, empreendedoras sociais e líderes políticas que acabaram secundarizadas — pelo confinamento forçado, pela precarização da rotina, pelas assimetrias de gênero nas atribuições domésticas e familiares — no momento mais visível do movimento negro em muito tempo, como desabafa Lucia Xavier, fundadora da ONG Criola:

“A visibilidade das negras no Brasil é quase sempre como vítimas, que de fato são, da violência do Estado. Podemos citar as domésticas, que neste momento, por causa da pandemia, estão sofrendo todo tipo de violação de direitos. Mas queremos atacar a invisibilidade relacionada ao racismo patriarcal, que nos esvazia, sobretudo, na ação política. É preciso mostrar que mulheres negras protagonizam, há muito tempo, iniciativas de ajuda comunitária, defesa de direitos e até de cuidado com os doentes, tanto em casa quanto nas unidades hospitalares”.

Que seja cá, como lá.

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