Jurema Werneck: ‘Boa parte da população negra não tem acesso a saneamento e água. Comprar álcool em gel, nem pensar’

Foto: Acervo Geledés/ Alma Preta

No Dia Internacional contra a Discriminação Racial, CELINA conversou com Jurema Werneck, diretora da Anistia Internacional no Brasil e uma das principais vozes do movimento de mulheres negras no Brasil

Por Leda Antunes, do O Globo

Foto: Acervo Geledés/ Alma Preta

Diretora da Anistia Internacional no Brasil desde 2017, Jurema Werneck conta que é ativista desde a infância. Ela lembra vagamente de participar de uma eleição para o grêmio estudantil da escola onde estudava no Rio de Janeiro, aos 8 anos. Também lembra da primeira experiência em que vivenciou a discriminação racial, ainda mais jovem, aos 6 anos, quando um menino branco se recusou a segurar sua mão durante a quadrilha da festa junina.

Apesar de ter sido criada em uma família em que o debate e a crítica social eram presentes, mesmo em tempos de ditadura, Werneck passou a atuar de forma mais organizada na luta anti-racista após se formar na faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense (UFF), em 1986. A partir dali, se dedicou à pesquisa sobre saúde da população negra. Sua atuação nas favelas do Rio coincidiu com as discussões sobre a criação do Sistema Único de Saúde, o SUS. Para Jurema, o sistema ainda não consegue atender de forma igualitária a população negra e isso se reflete até nas recomendações de combate ao coronavírus.

— Boa parte da população negra não tem acesso a saneamento básico e a água potável. Comprar álcool em gel, nem pensar — explica a médica que, em 1992, criou a ONG Criola, uma organização de mulheres negras no Rio de Janeiro. Nos anos 2000, Werneck fez mestrado em Engenharia de Produção e doutorado em Comunicação e Cultura na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

— Os lugares onde eu fiz mestrado e doutorado foram onde encontrei portas abertas para uma mulher negra fazer pesquisa de interesse das mulheres negras — explica a ativista. — Estudei os impactos do racismo patriarcal e heteronormativo sobre as mulheres negras para entender de que forma a gente luta para superá-lo. Se a gente olha o mundo sob a ótica das mulheres negras, consegue enxergar o país e todos os desafios em relação a todos os grupos populacionais que vivem aqui.

Werneck não se declara feminista, mas uma ativista dos direitos das mulheres. Ela afirma que, muito antes do feminismo ser inventado, mulheres negras já lutavam por seus direitos. Por isso, ela diz se identificar na figura da ialodê, que nasce no povo iorubá e permanece viva nas tradições afro-brasileiras.

— Ialodê é o título que se dá a representante das mulheres na esfera pública, aquela pessoa que fala em nome das mulheres, uma ativista política. Para mim, isso sempre fez muito sentido, pois esse é um termo, uma experiência e uma prática que vem de séculos, foi preservada na travessia do tráfico transatlântico, sobreviveu a violência da escravidão e continua operando no século 21.

Para Werneck, as mulheres negras são cada vez mais ouvidas, pois conseguiram alçar suas vozes a outros patamares, mas isso também significa que estão sob ataque. “A morte de Marielle não foi uma coincidência”, disse a médica, que hoje está à frente de uma das entidades mais ativas na luta por respostas para o assassinato da vereadora, que completou dois anos neste mês. Confira a entrevista completa:

A senhora diz que é ativista desde os oito anos de idade. Pode contar o que a levou a esse caminho tão cedo?
Acho que foi o ambiente. Eu fui criança na década de 60. Apesar de ser um ambiente em que tinha toda aquela repressão da ditadura militar, em casa eu tinha uma família muito crítica e havia o debate. Olhávamos para as coisas tentando entender o que estava acontecendo. Meus pais eram críticos e tinham uma participação intensa na vida da escola. Nessa época, eu participei de uma eleição na escola, concorri com uma chapa ao grêmio estudantil. Me lembro vagamente disso, não sei exatamente o que me levou a participar da eleição. Eu desenhava na época, então fiz os cartazes, e também era a oradora da chapa. Nós fomos eleitas. O pensamento crítico e ação coletiva sempre foram estimulados em casa.

Teve consciência da discriminação racial muito cedo? Lembra de quando se deu conta disso?
Eu não sei se foi a primeira vez, mas lembro que, aos 6 anos, em uma festa junina, quando a gente ensaiava quadrilha para dançar na escola, a professora formou os pares e o meu par era um menino branco, o Zé Carlos. Ele se recusou a segurar a minha mão. Colocou um prego, uma tachinha na mão, para que quando eu encostasse na mão dele, ele me ferisse. Esse é o episódio mais antigo de que eu me lembro.

Quando que lutar contra isso virou parte do seu cotidiano, de uma maneira mais clara e organizada?
No final da faculdade de Medicina. Era um ambiente super inóspito, não tinha esses espaços de discussão, mas eu era do movimento estudantil. Só que para a faculdade de Medicina, chegavam mais informações sobre a luta das mulheres do que da luta das pessoas negras. Naquela época, enquanto eu era estudante, eu tinha contato à distância, por correspondência, com o grupo André Rebouças, que existia na universidade. Eu lembro que soube da existência do grupo e escrevi uma carta dizendo que, por conta da necessidade de estar imersa na Medicina, eu não conseguia ir nas reuniões. Então o presidente desse grupo, o Sebastião Soares, passou a me escrever cartas sobre o que era discutido.

Você tinha mais colegas negros na faculdade de medicina?
Em seis anos que eu estive lá, fomos quatro, em diferentes turmas. Na minha turma, era só eu e, depois, houve outra estudante que veio transferida de uma faculdade privada.

A senhora já entrou na faculdade pensando em se dedicar à saúde da população negra? Ou isso foi surgindo ao longo do curso?
Isso foi se impondo pela vivência do ativismo e pela vivência profissional. O que aconteceu foi que o movimento negro, sabendo que eu era da área da saúde, me demandou a produção de conteúdo sobre isso. Quando eu terminei a faculdade, em 1986, fui trabalhar em favelas no Rio de Janeiro. A partir dali, passei a estudar por conta própria algumas coisas que aconteciam com as mulheres negras. Aí eu escrevi um projeto de atuação em prevenção e apresentei para várias organizações do Rio de Janeiro. Uma organização negra me convidou para realizar aquele projeto no final dos anos 80. Ele era dedicado a contrapor um fenômeno que acontecia, e que era muito visível nas favelas onde eu trabalhava, que era a esterilização em massa de mulheres negras. Isso era feito com base em informações falsas, com indução e violação de direitos. Escrevi esse projeto para levar informação para as mulheres negras e para as organizações e fazer advocacy junto às autoridades. Esse projeto deflagrou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, outra na Assembleia Legislativa e uma no Congresso Nacional.

A senhora estava trabalhando nisso no momento em que o SUS estava sendo concebido, mas chegou a afirmar, em uma outra entrevista, que o SUS nunca chegou de verdade para a população negra. Como que isso se revela?
Eu era estudante de Medicina quando o debate sobre o SUS estava se desenvolvendo. Estudei em Niterói e algumas propostas foram testadas lá. Estive perto dessa discussão. Mas a tradução do que eu digo está nos números. Em todos os indicadores de saúde, se você analisa os dados separadamente segundo a cor das pessoas, as taxas da população negra são muito piores. As taxas da população indígena também não são boas. Isso quer dizer alguma coisa. O sistema, que é para ser universal, integral e implantado e desenvolvido com equidade, atendendo a todo mundo de acordo com a sua necessidade, não está sendo capaz de melhorar ou garantir a saúde da população negra e nem reduzir as suas taxas de mortalidade. A população negra morre mais cedo, e não estou falando de violência ou acidentes, estou falando de causas tratáveis, como hipertensão, diabetes, mortalidade infantil. Isso é um exemplo de que o SUS ainda está devendo muito.

A gente está vendo nesse período de coronavírus como as propostas são desiguais. A recomendação de cuidado com água, sabão e álcool em gel não atinge todo mundo igualmente. Boa parte da população negra não tem acesso a saneamento básico e água potável. Comprar álcool em gel, nem pensar. O próprio isolamento social, quando grande parte da população negra se não trabalha não ganha, é autônoma, é diarista, camelô. Se não trabalha não ganha, se não ganha não come, não mora, e fica a mercê do transporte urbano das áreas periféricas, que é lotado, irregular, precário.

A senhora tem um texto em que fala que a atenção à saúde da população negra se organiza fora desse sistema, de forma mais autônoma. As mulheres negras são fundamentais neste processo de cuidado? E quem cuida delas?
O SUS ainda é importante para a população negra. Toda a assistência médica que a população negra tem é no SUS, não tem em outro lugar, apesar de toda a precariedade, tratamento desigual ou as dificuldades que existem. Uma parte da atenção à saúde é feita pelo SUS. A outra parte vem da tradição e da cultura negra, dentro das próprias religiões de matriz africana. Se a gente tirar o aspecto da divindade da religião, e olhar para as práticas, são práticas de saúde mental e corporal. E é isso que tem trazido a gente até aqui, antes do SUS e mesmo depois do SUS.

O cuidado, a prevenção e promoção de saúde acontecem também nas técnicas tradicionais africanas e afro-brasileiras que são desenvolvidas dentro dos terreiros, e as mulheres são fundamentais nisso. As comunidades religiosas onde essas práticas acontecem ao longo de muito tempo foram lideradas pelas mulheres. A presença de homens nas posições de liderança é uma espécie de ‘modernização’, da década de 20 para cá, mas elas seguem tendo papel fundamental nas religiões.

Elas também são a principal interface da população negra com o sistema de saúde. É ela que vai lá lutar por tratamento para qualquer outro membro da família ou da comunidade. Ela sempre acompanha porque é a cuidadora. É a principal interlocutora com o sistema, mas é recebida por esse sistema com racismo e discriminação. Mas ela continua, persiste. O sistema não superou o racismo nessa relação com as mulheres negras.

Além disso, o cuidado cotidiano, a alimentação, as alternativas possíveis de lazer e até de tentativas de proteção contra violência, está tudo locado na mulher negra. Muitas delas são chefes de famílias sozinhas, não compartilham esse papel com companheiros ou companheiras, então têm que dar conta de tudo. Aí você pergunta: quem cuida delas? São outras mulheres negras, somente. Não temos outras mulheres, que não as negras, poucos homens ajudando a cuidar, não tem sistema de saúde, não tem outras políticas públicas. Quem cuida dela é ela, e outras mulheres negras.

Jurema Werneck ao lado da família da vereadora Marielle Franco: (da esquerda para direita) Anielle Franco, Luyara Santos, Marinete da Silva e Antônio da Silva Neto Foto: Patricia Espinoza / Agência O Globo

Pensando para além da saúde, a senhora consegue enumerar o que avançou e as principais falhas das políticas públicas de enfrentamento ao racismo no Brasil?
Nós estamos vivendo um momento em que todas as políticas públicas de promoção da igualdade, da justiça e dos direitos humanos estão sendo desmontadas, seja no nível federal, estadual ou municipal. Não podemos falar de avanços. Isso se aplica no sentido negativo, no avanço significando ataque. Mas é importante dizer que ao longo do século XX e nas primeiras décadas do século XXI, as mulheres negras estiveram profundamente ativas e atuantes. Essa movimentação produziu e acelerou fenômenos que não retrocedem. As mulheres negras constituíram uma voz importante na definição dos seus próprios destinos, contra todas as forças racistas, patriarcais e heteronormativas. Esse é o principal avanço.

A luta, que na nossa experiência aqui no Brasil, começou no tráfico transatlântico, foi alargando nossos horizontes. Ainda tem muito mais para a gente lutar. Não está bom ainda, e a gente vive ataques intensos nesse momento. Mas eu convivi com a minha bisavó, que viveu 101 anos. O grau de violência racista que ela teve que enfrentar do Estado e da sociedade não se compara com a violência que eu vivo agora. Ainda é violência e não estou tentando escalonar violência. A minha avó teve que enfrentar muito mais desafios do que eu enfrento, mas eu ainda enfrento, mesmo tendo condições melhores do que a maioria das mulheres negras do Brasil e ocupando posições que a maioria não consegue ocupar, porque existem muitas barreiras. Vale ressaltar que eu só ocupo essas posições graças ao trabalho das mulheres negras que me empurraram para frente, abriram espaço e derrubaram barreiras.

Como surgiu a oportunidade de liderar o trabalho da Anistia Internacional aqui no Brasil?
A luta das mulheres negras fez com que mais organizações enxergassem a profundidade do seu racismo e exclusão. Em 2015, as mulheres negras fizeram marcha nacional, que levou mais de 50 mil mulheres a Brasília. Isso levou o debate mais longe na sociedade, impondo um desafio às organizações a darem uma resposta. Quando o diretor anterior da Anistia estava saindo, ele fez uma chamada para diferentes pessoas. Eu fui uma delas, concorri à vaga e fui selecionada. Ainda são raras as organizações internacionais no Brasil que têm pessoas negras na liderança.

Para a senhora, isso faz ser ainda mais relevante o fato de a Anistia hoje ser uma das principais entidades a cobrar respostas sobre o assassinato de Marielle Franco?
A Anistia cobraria de qualquer forma, porque é uma situação gravíssima um assassinato de uma defensora de direitos humanos, nesse país que é o segundo que mais mata defensoras e defensores dos direitos humanos. Marielle Franco também tinha esse nível de representação. Era uma mulher negra, de favela, bisexual, que teve que superar muitas barreiras. Ela era a cara das mulheres negras. Era uma defensora dos direitos humanos, uma parlamentar no exercício do mandato, relatora da comissão que acompanhava a intervenção federal do Rio. Ou seja, a Anistia Internacional deveria, de qualquer forma, tomar uma atitude. O fato de ter uma mulher negra a frente ajuda a gente a entender melhor esse contexto em que o assassinato aconteceu e questionar as razões imediatas, mas não perder de vista as razões profundas por trás desse assassinato, onde o racismo heteronormativo patriarcal tem um papel também.

A senhora se identifica como feminista? Como feminista negra? Se relaciona com esses movimentos de alguma forma?
Na minha geração, ou você era feminista ou era ativista do movimento de mulheres. O feminismo negro, como visão, teoria e prática, surgiu depois. Eu nunca me defini como feminista, mas como uma ativista do movimento de mulheres. Na minha juventude, a maioria das ativistas negras não se definiam como feministas. Eram muito poucas e era uma experiência da classe média, das mulheres negras que tiveram contato com o movimento feminista, e não era o meu caso.

Eu já tinha contato com a luta das mulheres negras, já sabia que as mulheres negras lutavam antes da invenção do feminismo. A medida que fui aprofundando meus estudos sobre a trajetória das mulheres negras, eu fui capaz de encontrar registros de que nós já tínhamos experiências de luta e termos para defini-la há séculos.

Então eu me identifico como ativista do movimento de mulheres negras e com a figura da ialodê. Esse é um termo que vem de alguns séculos antes de Cristo e que está preservado no Brasil até hoje, dentro da tradição afro-brasileira. É um título que se dá à representante das mulheres na esfera pública, aquela pessoa que fala em nome das mulheres, uma ativista política. Para mim isso sempre fez muito sentido. Esse é um termo, uma experiência e uma prática que vem de séculos, foi preservada na travessia do tráfico transatlântico, sobreviveu à violência da escravidão e continua operando no século XXI. Esse título existe na comunidade e me identifico muito mais com essa tradição do que com o feminismo negro. Mas acho que o feminismo negro se beneficia dessa experiência.

As mulheres negras não se sentem contempladas pelo feminismo?
Acho que, apesar dessa frase de a gente não ser contemplada pelo movimento, aí criar o nosso, ser muito repetida, ela não traduz exatamente o fenômeno. O que existe é uma vasta e longa experiência de luta. Necessariamente a gente vai falar em nosso próprio nome, pois a gente vem fazendo isso há séculos. É claro que existem desafios dentro do feminismo, por ele não ser explicitamente e comprometidamente anti-racista. Isso faz com que o termo negro associado ao feminismo seja necessário para definir que ou o feminismo é anti-racista ou não é. Isso é um manifesto que as mulheres negras fazem ao se definirem como feministas negras. Mas não é porque elas não se sentem contempladas pelas brancas. O que acontece é que nós já falamos em nosso próprio nome desde sempre. E se a teoria feminista hegemônica e liberal não dá conta, é preciso outras teorias que expliquem isso.

A senhora acredita que hoje existe um reconhecimento maior da escuta das demandas das mulheres negras? Mas pessoas estão ouvindo essas mulheres?
Mais gente sabe, mais gente ouve, porque nós alçamos nossas vozes a outros patamares. Mas isso significa também que estamos sob ataque. O assassinato de Marielle não é uma coincidência. Mulheres negras são assassinadas. O desafio é que mais gente se junte a nós na luta para alterar a realidade.

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