Lázaro Ramos: ‘Os não negros precisam entender o lugar de escuta’

FONTEPor Amauri Terto, do HuffPost Brasil
Foto: João Cotta

Aos 38 anos, Lázaro Ramos é referência para jovens artistas negros de todo o Brasil.

O ator baiano conseguiu nas últimas décadas se destacar de forma quase simultânea no cinema, no teatro e na TV, seja ela aberta ou paga. Atualmente, o público pode acompanhá-lo em em Mister Brau, série que protagoniza e assina o roteiro na TV Globo, e em Espelhos, programa de entrevistas que comanda há 12 anos no canal Brasil.

Autointitulado “exceção que confirma a regra”, o ator se tornou também – juntamente com a esposa Taís Araújo – uma voz popular na militância pela igualdade racial no País. Dessa condição nasce seu novo trabalho, o livro Na Minha Pele.

Publicado pela editora Objetiva, do Grupo Companhia das Letras, a obra traz reflexões sobre questões de raça no Brasil e histórias pessoais do artista.

O meu foco desde o início era falar sobre assuntos que considero relevantes em relação a preconceito, racismo e formação de identidade. E queria fazer isso sendo acolhedor. Acolhedor em todos os sentidos”, conta em entrevista ao HuffPost Brasil. “Eu não queria falar somente com quem pensa como eu. Essa foi uma luta diária, de cada vírgula, de cada palavra que usava, cada tema que abordava”, completa.

Na entrevista, Lázaro Ramos conta por que o livro demorou uma década para ser finalizado, recorda a influência de Caetano na formação da própria identidade, discorre sobre os prejuízos provocados pelo racismo e reflete sobre como a população não negra pode colaborar na luta por um País com equidade racial.

“Geralmente um não negro percebe a sua branquitude quando um negro, através da sua dor, provoca algum incômodo nele. Só aí a pessoa levanta e percebe. Eu acho que isso deveria ser um trabalho diário e natural. A questão da discriminação não deve ser um problema apenas dos negros“, afirma.

Leia a entrevista na íntegra:

HuffPost Brasil – Na Minha Pele demorou dez anos para ser concluído. O que o motivou a escrever o livro e o que te impediu de lançá-lo antes?

Lázaro Ramos – Existia uma inquietação ligada às questões raciais e às questões de identidade e eu queria que as pessoas entendessem tudo aquilo que eu estava sentindo. Ao mesmo tempo, eu encontrava em essas questões em outras pessoas, inclusive, de gerações variadas. Só que eu não sabia que voz esse livro teria. Comecei a escrever algo muito distanciado de mim mesmo, seguindo uma voz que não era a minha. No começo, por exemplo, eu peguei dados do Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada] e comecei a analisar como se eu fosse um estatístico. Aquela não era a minha voz, não tinha a minha identidade que mistura tudo: militância pela igualdade racial com o fato de eu ser um homem negro, nordestino, pai de família e uma pessoa que se comunica no dia a dia com humor e, ao mesmo tempo, com contundência e emoção. Este período de dez anos foi um processo de aceitação de quem eu sou e de entender que isso também é uma forma de comunicação. O meu foco desde o início era falar sobre assuntos que considero relevantes em relação a preconceito, racismo e formação de identidade. E queria fazer isso sendo acolhedor. Acolhedor em todos os sentidos. Queria ser acolhedor com o jovem negro que está com dúvidas sobre a sua maneira de lidar com esses assuntos e, ao mesmo tempo, com pessoas que não têm preocupação com essas questões, porque acho isso importante para as mudanças que a gente deseja. Eu não queria falar somente com quem pensa como eu. Essa foi uma luta diária, de cada vírgula, de cada palavra que usava, cada tema que abordava.

Quando você se percebeu um militante da causa negra com essa responsabilidade de se posicionar na luta pela igualdade racial?

Eu não tenho a menor responsabilidade. Estou falando que sou um militante porque estou conversando com você, somente para achar um termo formal sobre o que é a minha prática diária. Digo que sou militante só para te dar uma descrição. Mas a minha militância vem desde criança, uma criança negra em um bairro de classe média baixa. Essa militância surgiu da maneira como eu era tratado na escola e também do fato de eu ter integrado um grupo de teatro como o Bando de Teatro do Olodum. Ser militante nunca foi uma coisa formal. Esse termo eu uso aqui só para a nossa conversa, mas isso faz parte do meu dia a dia. Faz parte das pessoas com quem convivo, das dores que sinto, das alegrias que compartilho com alguns por conta de algumas vitórias. Isso [a militância] está mais em um fluxo de vida do que em alguma entidade ou organização. A minha militância está talvez em perceber quem eu sou, o lugar de onde eu venho e o contexto ao qual eu faço parte. Claro que eu tenho simpatia para com movimentos, apóio e dou palavras de incentivo. Estou presente em eventos e atividades, mas a percepção do meu ser é o que faz a minha militância, inclusive sabendo das minhas dores e também de quando eu sou algoz, de quando repito padrões de conservadorismo, padrões discriminatórios ou padrões de não-escuta. O movimento feminista tem me ensinado muito sobre isso: perceber a minha militância também nos momentos em que posso ser mais útil com o ouvido. Escutar o outro. As mulheres têm feito eu pensar muito sobre isso.

Não me considero otimista, nem pessimista e nem realista. Me considero uma pessoa do trabalho. Eu acredito muito na ação. Eu não sei o que vai acontecer, mas acredito que faço parte das transformações e trabalho todos os dias.

Numa recente entrevista em vídeo ao Nexo, você elenca alguns artistas que serviram como “voz de alento” na sua juventude. Entre esses nomes, Caetano Veloso é citado com muito carinho. Qual é a influência dele sobre a sua trajetória?

Difícil selecionar apenas o Caetano e falar só sobre ele porque as influências são muito diferenciadas. Mas Caetano – e você está falando aqui com um artista também – tem um poder que é muito subjetivo sobre mim. A cada música que eu ouço dele, a maneira dele se portar no mundo, a maneira que eu vejo ele dar entrevistas, os vídeos antigos dele que assisto… Vejo ali uma luta pela sua identidade, pelo seu direito de ser e de falar o que pensa e de sentir o que sente. Isso é uma construção identitária muito forte. Eu sempre vi isso no Caetano, inclusive muitas vezes discordando dele, mas percebendo uma luta dele pelo direito de ser. E, poeticamente falando, as letras de Caetano representaram muitas vezes coisas que eu estava sentindo. Desde canções como Terra e Haiti, que têm discurso político mais direto, até letras que falam sobre a saudade de um lugar ou de um tempo, como Trem das Cores. Curiosamente, a minha terra, a Ilha de Paty, fica do ladinho de Santo Amaro, que é a terra de Caetano. Todas as vezes que Caetano cantava sobre a terra dele, pra mim ele estava cantando sobre a minha terra também. Estava cantando sobre a Ilha do Paty que tem culturas muito parecidas. E cantando sobre esta ilha de uma maneira muito orgulhosa. Através da música dele, eu também aprendi a ter orgulho da minha origem , da minha família, tudo isso de uma maneira poética.

Você é um artista negro que se define como uma “exceção que confirma a regra”. Como lida com o fato de ser referência de sucesso para uma geração de artistas negros que lidam diariamente com limites impostos pelo racismo?

Isso em algum momento já foi um conflito, mas hoje é mais um motor. E te digo que, muitas vezes, um motor criativo. É o que me faz pensar em como vou dar uma entrevista, como vou conduzir a direção de uma peça. É um exercício de comprar uma linguagem pra suprir essa demanda. Qual projeto eu vou escolher? Que assuntos eu vou abordar em Mister Brau [série da Rede Globo em que atua e escreve o roteiro desde 2015]? Hoje em dia serve mais como motor. Em alguns momentos me dá uma tristeza porque eu vejo que alguns sonhos são ceifados e a pessoa não vai atingir o seu objetivo final. Mas hoje em dia o que mais acontece é eu considerar essa situação como um motor de vida. Quando ela acontece, eu trabalho ela com a minha grande parceira de vida, meus amigos e minha família. Tento buscar forças para seguir com meu trabalho, que é um trabalho de comunicador. E existe um campo amplo pra isso, pra a gente criar novas narrativas, derrubar preconceitos, mostrar novos olhares. E eu sei que é um lugar de privilégio, lúdico e poderoso. Um lugar de onde eu posso mandar vários alertas. Fico muito feliz de conseguir fazer isso na TV aberta com Mister Brau​​​​​​​, na TV fechada com o programa Espelho e as várias entrevistas que a gente tem a oportunidade de realizar e, ao mesmo tempo, no teatro com a peça O Topo da Montanha [comédia dramática da americana Katori Hall que remete aos últimos momentos de vida do ícone do ativismo negro, o reverendo Martin Luther King].

A questão da discriminação não deve ser um problema apenas dos negros. Essa é uma questão que faz parte da construção de país, da construção das nossas humanidades, da potencialização das nossas relações políticas e culturais.

Nos últimos anos, a discussão sobre questão racial se tornou muito presente nas redes sociais. Os jovens têm tomado consciência de sua negritude com a ajuda de youtubers e novos artistas. Como as pessoas que não são negras podem participar dessa discussão?

Eu acho que o primeiro passo é se perceber. Geralmente, quando se fala em questão racial e quando tem um não negro que não quer escutar sobre esse assunto, ele fala também de alguma dor que teve: “ah, mas eu também passo por isso”, “eu também sofri isso em determinado momento”, negando o assunto e negando o ouvido. Acredito que a escuta é um lugar muito importante dos não negros para entender os outros lugares. Não que ele precise anular a sua dor. As dores estão aí e elas precisam ser trabalhadas. Mas o não negro precisa entrar em contato também com a escuta. Geralmente um não negro percebe a sua branquitude quando um negro, através da sua dor ou seu incômodo, provoca algum incômodo nele. Só aí a pessoa levanta e percebe. Eu acho que isso deveria ser um trabalho diário e natural. A questão da discriminação não deve ser um problema apenas dos negros. Essa é uma questão que faz parte da construção de país, da construção das nossas humanidades, da potencialização das nossas relações políticas e culturais. Pensar na questão racial é pensar em potência, em energia criativa, em energia tecnológica, em potência cultural. A gente fala sobre essas questões apenas pela ótica da demanda social e da reparação e não fala sobre o quanto isso também pode ser potência. Só que fazer isso passa por vários lugares como, por exemplo, a empatia. Gerar empatia é um grande desafio. Mas uma coisa positiva destes tempos é que várias vozes apareceram e começaram a dar seu depoimento de mundo e falar de suas vivências. As redes sociais são lugares fartos disso. As universidades têm sido campo de grande pesquisa nesse sentido e tem trazido novas narrativas. [Tem ocorrido] o reconhecimento de outros saberes, que não eram entendidos como saberes. Desde religiões de matriz africana até de pensadores que estavam aí e que não eram absorvidos na formalidade. O que eu acredito que falta agora é ouvido para escutar essas novas vozes. Essa é a nossa grande luta: encontrar ouvido. E o não negro precisa fazer parte disso também. Precisa entender o que a branquitude significa e como ele pode fazer parte dessa luta, dessa construção de um novo país.

Este ano, a Flip apresenta número recorde de escritoras mulheres e negros em sua programação. Qual é a sua perspectiva sobre esta edição do evento?

Acho importantíssimo e acredito que este será um ano emocionante. Poderia ter acontecido antes, inclusive, porque os talentos e as narrativas já estavam aí. No ano passado, eu fui na Flipinha e acabei vendo algumas mesas. Uma delas foi com a Ana Maria Gonçalves, Conceição Evaristo e Roberta Estrela D’Alva. E foi uma mesa linda e emocionante, de conteúdo inestimável, que estava numa mostra não oficial. Que bom que agora ela está oficial agora, que bom que isso está acontecendo. Que bom que vamos poder pensar Lima Barreto e escutar essas grandes vozes que estão aí e que não tinham visibilidade. Acho que é um caminho sem volta, inclusive. E estou muito feliz de poder fazer parte desses momentos e estar lá também com o meu livro que é apenas mais uma voz dentro desse cenário múltiplo que já temos.

Lazaro Ramos during 2003 Sundance Film Festival – “Madame Sata” Film Stills. (Photo by Sundance/WireImage)

Você é uma pessoa otimista em relação à questão racial no Brasil?

Não me considero otimista, nem pessimista e nem realista. Me considero uma pessoa do trabalho. Eu acredito muito na ação. Eu não sei o que vai acontecer, mas acredito que faço parte das transformações e trabalho todos os dias. Eu não sei se tem algum termo para isso, mas acho que deveria ser algo como “acionalista”, que definiria uma pessoa que está trabalhando. Eu não sei o que é que vai dar, mas sei que faço parte do problema e da solução. Eu digo isso porque sinto a sensação de que o otimismo às vezes me paralisa, o pessimismo me deixa com um diálogo de pouca escuta – porque acredito que tudo vai dar errado, a princípio – e o realismo me deixa entristecido. Eu começo a ver coisas que vão me entristecendo e me paralisando de alguma maneira. Quando falo sobre ação e valorizo ela nessa resposta a você, faço isso como uma maneira de me estimular e dizer que todo mundo faz parte deste movimento e que todos somos capazes de provocar transformação.

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