Leci Brandão relembra dia em que foi barrada em portaria por ser negra e discute racismo hoje: ‘Estamos sendo vistos, mas precisamos ser ouvidos’

FONTEO Globo, por William Helal Filho
Leci Brandão Crédito: Marcos Hermes/Divulgacao

Leci Brandão foi ao prédio de número 112 da Rua Doutor Otávio Kelly, na Tijuca, Zona Norte do Rio, apenas para deixar a mãe, que ficou de visitar uma amiga na tarde daquela segunda-feira, 18 de agosto de 1980. Chegando lá, a cantora decidiu acompanhar Dona Lecy até o elevador. Mas, para surpresa de mãe e filha, ambas foram barradas pelo porteiro, que indicou para elas a entrada de serviço. Sem entender bem o que estava acontecendo, a artista perguntou ao funcionário por que ele estava as impedindo. Nunca mais se esqueceu da resposta: “Vocês são duas negras, não sei se são empregadas”. Como conta a própria Leci ao Blog do Acervo, naquele momento, “o tempo fechou”.

– Sou uma pessoa educada, mas a indignação foi tanta que eu parti pra cima do porteiro. Até quebrei os óculos dele – relembra a cantora, que hoje também é deputada estadual (PCdoB-SP), em segundo mandato. – Atualmente, quando acontece algo assim, tem sempre alguém filmando, mas naquela época não tinha celular. Fui prestar queixa e, no caminho, liguei para um amigo que trabalhava no GLOBO. Quando cheguei na 19ª DP (Tijuca), a imprensa já estava toda lá.

O caso foi destaque em jornais e telejornais. Em 1980, Leci já era uma cantora respeitada. Ela foi a primeira mulher a entrar na ala dos compositores da escola de samba Mangueira, em 1972. Sua canção “Ombro amigo” integrou a trilha sonora da novela “Espelho mágico”, da Rede Globo, em 1977. Meses antes do episódio na Rua Doutor Otávio Kelly, ela havia lançado o disco “Essa tal criatura” e era finalista do Festival MPB, também da Globo, cantando a música de mesmo nome. Na delegacia da Tijuca, todos os policiais a conheciam.

De acordo com a reportagem do GLOBO no dia seguinte ao caso, o porteiro foi autuado por “constrangimento ilegal”. A Lei Afonso Arinos, única regra para coibir o racismo naquela época, não pôde ser aplicada porque se referia apenas a estabelecimentos comerciais acusados de preconceito (a lei 7.716, que classificou o racismo como crime inafiançável, só foi promulgada em 1989). O funcionário alegou que estava cumprindo ordens do síndico, que, em depoimento, negou ter orientado a barrar pessoas com base na cor. O responsável pelo condomínio confirmou, no entanto, que empregadas domésticas eram proibidas de usar o elevador social, algo que hoje também é considerado crime de discriminação. Segundo a cantora, quando desceu para apartar a briga na portaria, o síndico chegou a dizer que: “Se ele soubesse que a senhora era a Leci Brandão, não teria barrado”.

– Eu disse a ele que Meu nome é Leci Brandão da Silva! E que não estava me queixando só porque era cantora. Ninguém pode ser barrado na portaria social por causa da cor. Isso é racismo – conta a artista nascida em Madureira e criada em Vila Isabel, hoje aos 75 anos. – Alguns dias depois, na final do Festival MPB, quando cantei o verso “Clama! Só é linda a verdade nua e sem preconceito”, fechei o punho para enfatizar “preconceito”. O Maracanãzinho veio abaixo.

Leci sempre fez da arte uma ferramenta social, algo explícito em canções como “Marias” (1977), “Zé do Caroço” (1979), “Negro Zumbi” (1995) ou na sua regravação do samba da Mangueira “Casa Grande e Senzala” (1976), baseado no clássico de Gilberto Freyre. Hoje, ela tem certeza de que já teve portas de gravadoras fechadas porque os empresários achavam que ela era contestadora demais. Mas isso não a fez parar. Na primeira década do novo século, Leci foi conselheira da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e membro do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, a convite do então presidente, Luiz Inácio Lula da Silva. Em 2010, foi eleita deputada. Era a segunda mulher negra da história da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp).

– Sou otimista em relação a lutas sociais. Nas minhas letras, sempre quis encontrar uma solução para os problemas – diz ela.

– Aqui em São Paulo, a juventude negra é assassinada sistematicamente. Há um genocídio da população negra acontecendo no Brasil – afirma Leci Brandão, que vê com bons olhos o debate atual, mas diz que é preciso avançar: – Nosso país é racista. Hoje, as cenas são filmadas e divulgadas nas redes socias, o racista não tem como negar. E a imprensa está discutindo de forma aberta, o que é fundamental. Podemos dizer que estamos sendo vistos, mas ainda não estamos sendo ouvidos. O povo negro é maioria e precisa ser ouvido.

Para a cantora, a população negra precisa fazer valer seu tamanho e colocar pessoas negras no poder. Só assim, diz ela, haverá mais políticas públicas contra atos racistas no Brasil e ampliar ações afirmativas, eliminando desigualdades. Hoje, enquanto o país tem 56% da sua população formados por pretos e pardos, apenas 17,8% dos parlamentares no Congresso Nacional são negros.

– Não podemos continuar servindo de escada para outras pessoas. Temos que colocar negros em posições de poder. Há muitos candidatos negros. É nossa chance. Há políticos brancos que defendem nossas bandeiras, mas precisamos de mais representatividade. É o poder que muda as coisas – afirma a deputada estadual. – Claro que há pessoas negras que não nos representam, como esse sujeito chamado Sérgio Camargo, que preside a Fundação Palmares mas não defende as lutas do movimento negro por igualdade. Políticos negros têm que ter compromisso com as nossas causas.

Na visão de Leci, há muito para mudar.

– A história do Brasi não mostra nossos heróis, você só vê estátuas dos nossos perseguidores. Nossas religiões são perseguidas, nossos jovens são mortos. A população negra precisa ser tratada com respeito.

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