Legados de um Beato evangélico: por Magali Cunha

FONTEPor Magali Cunha, do Conic
(Foto: Fábio Vicentini/ Arquivo A Gazeta)

O cristianismo brasileiro perdeu, na semana passada, o pastor e teólogo da Igreja Presbiteriana Joaquim Beato, aos 91 anos. Ele declarava: “A minha formação básica é a Bíblia, mas numa visão de que o pensamento bíblico não é um pensamento nascido nas alturas dos céus, mas nas lutas de cada dia”.

Foi nessas bases que Beato se tornou mestre em Antropologia e doutor em Sociologia. Deixou marcas como cristão defensor da igualdade racial, da superação da intolerância e do diálogo ecumênico. Sua voz e suas ações ecoaram durante a ditadura militar. Rompendo os arraiais religiosos, foi professor universitário, senador suplente de oposição e secretário estadual e municipal no Espírito Santo.

Numa grata coincidência, eu havia citado o Beato nesta coluna, no mês passado. Listei, simbolicamente, alguns nomes de negros, pastores, pastoras e outras lideranças, que representam evangélicos que atuam pela unidade, pela justiça e pela paz. Beato foi o primeiro da lista. Ele dizia que um dos momentos mais importantes dos seus 65 anos de pastoreio foi participar da célebre Conferência do Nordeste como palestrante. É aqui que me detenho.

Aquela foi a mais importante reunião até hoje realizada por lideranças evangélicas no Brasil. Ocorrida em 1962, no Recife, foi promovida pela Confederação Evangélica do Brasil, associação das igrejas evangélicas históricas, fundada em 1934. Com o tema “Cristo e o processo revolucionário brasileiro”, o evento é considerado o ponto culminante de 20 anos de esforços educativos advindos das ações de diálogo e unidade entre os evangélicos. O local da conferência foi escolhido como símbolo de aproximação com o Brasil da exploração, da miséria, no mundo capitalista, e também da esperança, da alternativa política.

Foi destaque o fato de uma reunião de evangélicos ter também conferencistas não religiosos como Celso Furtado (na época superintendente da Sudene) e pessoas renomadas como Paul Singer e Juarez Rubens Brandão Lopes. Foi o último grande evento da confederação, fechada poucos anos depois por conta da repressão da ditadura militar que atingiu as igrejas.

Joaquim Beato falou no Recife sobre “Os profetas em épocas de transformações políticas e sociais”. O secretário da reunião, o presbiteriano Waldo Cesar, relatou: “Os sociólogos presentes acompanham com interesse a descrição da sociedade israelita. Houve certa exclamação no auditório — menos pelo fato em si do que pela semelhança de situações — quando o preletor disse que ‘os proprietários ricos e os capitalistas novos-ricos conseguiam anular o direito de resgate das hipotecas e devoravam homens e terras, mantendo o agricultor na terra como colono ou vendendo-o com sua família com escravo’ (Profeta Amós). A contemporaneidade dos profetas parecia um desafio à nossa fé estática e acomodada”.

Como precisamos de “Joaquins Beatos” entre os evangélicos hoje! Como carecemos de profetas verdadeiros! Já escrevi que há, sim, evangélicos que trilham caminhos muito semelhantes a esse, porém não estão “na crista da onda” ou “mitando” nas mídias. Atualmente, discursos e práticas como os do Beato são interpretados, em boa parte dos espaços religiosos, como sem sucesso, “fora da visão” (de Deus) ou até mesmo equivocadamente desqualificados como “comunistas” ou “bolivarianos” (!!).

O final daquela palestra de Joaquim Beato permanece ecoando: “Os profetas só tinham compromisso com o Deus que os chamara e enviara, [cujo] propósito era (como ainda o é!) criar comunidade em que sua justiça encontrasse perfeito cumprimento. Que diriam os profetas em nosso tempo? Que fariam os profetas em nosso tempo? Qual o propósito de Deus para como o povo brasileiro? Que testemunho daremos diante da nossa presente ordem social?”

Magali Cunha é Profa. Dra. na Universidade Metodista de São Paulo

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