Lei de cotas e seus avanços

FONTEPor Natália Carneiro
Ilustração: Romulo Arruda

Ao longo dos anos a necessidade de se pensar em ações afirmativas para a promoção de acesso às universidades se fortificou entre os movimentos negros e, como consequência, em 2003, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) passou a reservar 50% de suas vagas para candidatos da rede pública e 40% para pretos e pardos. A implementação das cotas na UERJ provocou indignação e oposição por  parte da sociedade e da mídia tradicional.

Em 26 de abril de 2012, o partido Democratas (DEM) entrou com pedido de liminar, que visava a declaração de inconstitucionalidade das cotas por critério racial adotadas pela UnB. O partido alegava que “as desigualdades entre brancos e negros não têm origem na cor e, mais, que a opção pela escravidão destes ocorreu em razão dos lucros auferidos com o tráfico negreiro e não por qualquer outro motivo de cunho racial” e que naquele momento, “se institucionalizou na UnB um verdadeiro tribunal racial”.  A ação movida pelo DEM motivou a necessidade de se debater o tema no Supremo Tribunal Federal (STF).

Esse breve contexto histórico é utilizado para entender como chegamos em agosto de 2012, com a aprovação da lei 12.711, conhecida como Lei de Cotas, que contribuiu para o ingresso de estudantes oriundos de escolas públicas, de baixa renda, pretos, pardos e indígenas em universidades federais e em cursos de ensino técnico.

Doutora em História pela Unicamp (Universidade de Campinas), mestre na mesma área pela UnB (Universidade de Brasília) e bacharel em Jornalismo pelo UniCEUB (Centro Universitário de Brasília), Ana Flávia Magalhães Pinto foi a primeira docente negra do Departamento de História da UnB. Nesta entrevista, ela que, além de professora, atua como coordenadora da Regional Centro-Oeste do Grupo de Trabalho de Emancipações e Pós-Abolição, da Associação Nacional de História, e integra a Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros (RHN), fala sobre as mudanças dos perfis dos estudantes nas universidades, com a política de cotas, e sobre como o mito da democracia racial foi desmascarado, após a implementação da lei. 

A pesquisadora Ana Flávia Magalhães Pinto no Instituto Central de Ciências (ICC), da Universidade de Brasília (Foto: Arquivo Pessoal)

Quem são os estudantes beneficiados pela política de cotas? Como eles agregam em sala de aula?

Boa parte desses estudantes corresponde a pessoas que no início dos anos 2000 teriam muita dificuldade para ver a universidade – em especial, a universidade pública – entre suas expectativas de vida e uma possibilidade real. Quando observo o cotidiano da Universidade de Brasília (UnB), há algumas cenas que ilustram essa mudança. Antes das ações afirmativas, o volume de estudantes nas paradas de ônibus do campus correspondia a um terço do que vemos hoje. Basicamente, a maioria dos estudantes morava no Plano Piloto e/ou tinha carro. Lembro da satisfação que tive no meu primeiro semestre como professora na UnB, em 2018. Numa turma de 80 alunos, no período noturno, em que havia muitos estudantes negros com diferentes tons de pele, perguntei: Quem aqui vem de cidade satélite? 70% da turma levantou a mão.

Essas são as pessoas que têm demandado pela ampliação da oferta de transporte público para a universidade e que têm formado filas longas e muito organizadas em vários momentos do dia. Muitas trabalham durante o dia ou em turnos alternativos. Há uma ampliação dos perfis dos estudantes da UnB. Eu gostaria de dizer que a maioria desses estudantes se sente confiante para demandar renovações mais profundas no cotidiano da universidade, mas isso é uma característica de apenas uma parcela. Seja como for, isso já tem sido importante para a incorporação de experiências que antes eram, quando muito, tratadas na chave do exotismo.

São várias gerações de alunos cotistas. Enquanto orientadora de vários desses alunos, como você avalia essas diferenças geracionais? O perfil do aluno ingressante no início da política de cotas é o mesmo do aluno que entra hoje na universidade?

Quando as cotas na graduação foram implementadas, eu estava no mestrado. Como professora, atuo há pouco tempo – aqui na UnB estou desde 2018. Mas tenho acompanhado gerações de cotistas desde o início. A princípio, os estudantes negros cotistas tinham uma timidez assustadora de se assumirem como cotistas. Nas atividades de boas-vindas que o EnegreSer – Coletivo Negro no DF e Entorno promoviaM na UnB entre 2003 e 2007, a participação era muito pequena. Isso se refletia na organização de estudantes negros. Muita luta em defesa também de políticas de permanência foi necessária para que as condições para que uma maior afirmação desses estudantes ocorresse. Isso incluiu a implementação da disciplina Pensamento Negro Contemporâneo, ofertada para todos os estudantes, cotistas e não cotistas, por meio da qual as problematizações sobre o racismo passaram a figurar como parte do cotidiano acadêmico, ainda que não incorporada por todos os professores. Paralelamente a isso, com o aumento da presença negra – que só não foi maior, porque tem havido episódios de fraude -, esse perfil foi se alterando. Os estudantes parecem se sentir mais seguros para se afirmar como cotistas sempre que essa questão se apresenta. Os estudantes negros cotistas hoje chegam num espaço em que as políticas de ação afirmativa se consolidaram e há quem se envolva até mesmo na defesa de um melhor funcionamento, envolvendo-se até na denúncia de casos de fraude, como observamos recentemente. Não temos nada com a força do que foi o EnegreSer, mas a presença negra é muito mais facilmente sentida em articulações em diferentes formatos de estudantes negros.

Na sua opinião, a visão dos não cotistas sobre os cotistas têm mudado? O preconceito tem diminuído ou não?

Os dados estatísticos já demonstraram que a baixa expectativa de não cotistas e de parte da sociedade brasileira sobre cotistas não se justifica. No entanto, não tenho elementos para dizer que houve uma mudança de opiniões por parte dessas mesmas pessoas. O que temos visto é a ampliação do desejo de pessoas negras em acessar direitos, bens e serviços. Isso tem a ver com a compreensão de que a fixação no lugar de vulnerabilidade não é a única possibilidade. O desmonte do mito da democracia racial, por força da ação persistente do Movimento Negro, fez com que as condições de reação à violência racial entre discentes tenham melhorado bastante, muito pela compreensão a respeito de como é possível não se silenciar.

“O desmonte do mito da democracia racial, por força da ação persistente do Movimento Negro, fez com que as condições de reação à violência racial entre discentes tenham melhorado bastante, muito pela compreensão a respeito de como é possível não se silenciar.”

Pensando na história recente, qual legado da lei para a nossa sociedade? Qual balanço é possível fazer?

As cotas alteraram a expectativa da população brasileira sobre a educação. Na minha geração, as pessoas ainda diziam que teriam “terminado os estudos” quando conseguiam concluir o ensino médio. Isso mudou. Hoje as pessoas incorporaram, de fato, o ensino superior como um elemento concreto, não mais como uma abstração distante. 

É possível perder tudo o que foi conquistado nesses dez anos?

Tudo é difícil, mas boa parte, sim. Neste momento, estamos enfrentando sistemáticas tentativas de desmonte da própria universidade pública. As elites brasileiras são capazes de investir na precarização crônica da universidade como estratégia para restringir o acesso democrático da população brasileira a ela. Isso certamente pode levar a um novo afastamento expressivo de estudantes negros e negras. As condições para permanecer na universidade podem se tornar incompatíveis para segmentos da população em situação de pobreza agravada. O que tem acontecido durante a pandemia é um exemplo disso. Diante da falta de políticas públicas amplas, com gestão ampla e articulada pelo Ministério da Educação, não fosse o empenho da própria comunidade acadêmica, a evasão de estudantes universitários negros e pobres teria sido muito maior.

Como deve ser, na sua visão, a mobilização dos estudantes e dos movimentos sociais para manter a lei de pé?

A avaliação da Lei de Cotas (Lei n. 12.711/2012) está prevista para o próximo ano. Isso será feito num cenário muito adverso. A composição do Congresso Nacional, após as eleições de 2018, tem se mostrado desvantajosa para os segmentos sociais não vinculados às elites nacionais. O desmonte de direitos sociais certamente impacta nas condições de pleno exercício de direitos políticos e até mesmo civis. De todo modo, 2022 é ano eleitoral e os atuais parlamentares e seus partidos terão que lidar com a baixa aprovação que o Legislativo tem tido perante a sociedade, conforme demonstrado nas pesquisas de opinião. Isso faz com que estudantes e movimentos sociais precisem potencializar as estratégias de exposição e constrangimento, uma vez que, como já foi diagnosticado, a maioria da população brasileira é favorável às cotas e entende que ela tem sido decisiva para a democratização do ensino superior. É preciso investir na demonstração dos ganhos obtidos até aqui e, ao mesmo tempo, evidenciar que a mudança alcançada ainda está longe de ser a que se esperava para que as políticas de ação afirmativa possam ser suspensas. Acredito que, articulada com ações de rua, as ações de comunicação, as disputas de narrativa nas mídias sociais serão de fundamental importância. Foi, assim, que anos atrás se alcançou um melhor entendimento acerca do funcionamento das ações afirmativas entre amplos setores da sociedade.

Há aperfeiçoamentos da lei que precisam ser feitos, por exemplo, a questão da autodeclaração, que ainda gera polêmica com casos de fraudes?

A autodeclaração, pra mim, não é um problema. Foi por meio desse exercício que o Brasil passou a lidar com sua própria imagem refletida no espelho, não mais na expectativa de se ver branco. O problema, na minha avaliação, são as fraudes, que, por sinal, são cometidas por pessoas brancas que se sentem seguras para defender que todos os espaços e oportunidades podem ser ocupadas por elas. Para enfrentar essa anistia prévia, é importante que existam mecanismos legitimados de controle e impedimento desses crimes. Afora as comissões de verificação da autodeclaração – previsto como um mecanismo de constrangimento aos fraudadores, e não às pessoas negras -, é preciso fortalecer a caracterização e a punição do delito. Desclassificação, multa, expulsão… essas possibilidades de resposta às fraudes têm que ser reforçadas.

É possível acreditar em um futuro com menos desigualdade de oportunidades no Brasil, no qual a lei de cotas não seja mais necessária, conforme prevê a proposta?

É para isso que lutamos. Quando isso vai acontecer? Não dá para saber. Vivemos em sociedade e as mudanças sociais dependem do envolvimento e do compartilhamento de objetivos comuns entre uma ampla variedade de sujeitos. Mas acredito que se trata de uma agenda de justiça social que tem ganhado adesão.

Em paralelo à implementação das cotas, quais outras medidas deveriam ser adotadas para promover a universalização do ensino no Brasil?

Aqui nós não estamos falando apenas do Ensino Superior. A universalização do ensino envolve também a Educação Infantil, o Ensino Fundamental, o Ensino Médio e a Educação Tecnológica. Sendo assim, é fundamental que a gestão da educação aconteça de maneira articulada com as outras dimensões da vida social – saúde, previdência, trabalho, segurança alimentar, economia, participação política entre outros – e que isso se dê pautado no princípio do bem-estar social. É aquele sonho do Brasil para todas, todos e todes. Caso contrário, nem é possível dizer que se esteja trabalhando para a universalização de alguma coisa.

Na sua visão, existe discriminação com profissionais que ingressaram no ensino superior por meio das cotas no mercado de trabalho? Se sim, o que a sociedade pode fazer para combater esses preconceitos?

Posso estar enganada, mas creio que o racismo segue afetando profissionais negros e negras de maneira indistinta, sejam cotistas ou não. O fato de o diploma não dizer que alguém se formou após ter entrado pelas cotas me dá segurança em dizer que, no limite, empregadores racistas no máximo podem se valer da desculpa da desqualificação dos cotistas para se sentir mais confortáveis em fazer o que sempre fizeram. Eu nunca fui cotista, pelo simples fato de não haver políticas de cotas quando precisei, mas isso até hoje não criou nenhuma vantagem para mim em relação a um não cotista. O mesmo eu observo entre estudantes negros cotistas e não cotistas que acompanho.

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