Lei de racismo é aplicada na BA para condenar envangélica por ataques ao candomblé

FONTEVade News, por Eduardo Velozo Fuccia
Foto: Deldebbio

A liberdade de expressão, mesmo a religiosa, ainda que protegida constitucionalmente, não é absoluta de modo a permitir o aviltamento a culto distinto. Com esta decisão, o Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) confirmou a condenação uma evangélica por racismo, na modalidade preconceito religioso. Ela hostilizava adeptos do candomblé gritando “sai satanás” e jogando sal grosso na frente de um terreiro.

Os reiterados ataques de Edneide Santos de Jesus ao credo alheio começaram em agosto de 2014 e atingiram o ápice no ano seguinte, ganhando repercussão nacional. No dia 1º de junho de 2015, a yalorixá Mildredes Dias Ferreira, a Mãe Dede de Iansã, de 90 anos, líder do Terreiro Oyá Denã, morreu de infarto. Familiares e companheiros de candomblé da idosa atribuíram o falecimento ao desgosto dela pelos atos de intolerância religiosa.

Não houve como estabelecer nexo de causalidade entre a conduta de Edneide e a morte de Mãe Dede de Iansã para processá-la por homicídio. Porém, em setembro de 2015, o Ministério Público (MP) denunciou a acusada por infração ao Artigo 20, da Lei 7.716/1989. A regra pune com reclusão, de um a três anos, quem pratica, induz ou incita a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Sal grosso

Edneide é fiel da Igreja Casa de Oração Ministério de Cristo. Esta congregação se estabeleceu na Rua da Mangueira, em Camaçari, município da Região Metropolitana de Salvador, em julho de 2013. Segundo o MP, naquela época, do outro lado da mesma via pública, já funcionava o Terreiro Oyá Denã há 45 anos, sempre sob a direção de Mãe Dede de Iansã – liderança de comunidades tradicionais de matriz africana na Bahia.

Os primeiros atos de intolerância religiosa atribuídos à ré ocorreram durante cultos e vigílias dentro da igreja. Com o uso de microfone e potente equipamento de som, Edneide incitava os fiéis a expulsar o “satanás”, apontando para a direção do terreiro de candomblé. Depois, com o direito a arremessos de sal grosso, os insultos ganharam a rua, passaram a ser praticados em frente ao Oyá Denã e avançaram pelas madrugadas.

Testemunhas detalharam as afrontas, mas a defesa da acusada requereu a sua absolvição. Para o advogado Paulo Alberto Carneiro da Costa Filho, ficou provado que a cliente não praticou o crime. No dia 5 de setembro de 2019, a juíza Bianca Gomes da Silva, da 2ª Vara Criminal de Camaçari, condenou Edneide: “o conjunto probatório é harmônico, não pairando quaisquer dúvidas acerca da materialidade e autoria delitivas”.

Serviço à comunidade

Carneiro da Costa interpôs recurso da apelação ao TJ-BA. Ele pleiteou a extinção da punibilidade da acusada pela prescrição retroativa de pena, devido ao transcurso de quatro anos entre o recebimento da denúncia e a sentença. Na hipótese deste pedido ser rejeitado, o advogado requereu a absolvição por insuficiência de prova. Em decisão unânime, a 2ª Turma da 1ª Câmara Criminal do TJ-BA, negou provimento ao apelo.

O colegiado manteve a condenação de Edneide, bem como a sanção fixada pela magistrada. A juíza sentenciou a ré a um ano de reclusão em regime aberto, mas substituiu esta reprimenda por duas restritivas de direito: comparecimento mensal em juízo para informar as atividades e prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas pelo mesmo prazo da pena privativa de liberdade.

Menosprezo intencional

O desembargador Nilson Soares Castelo Branco, relator de recurso, rejeitou a tese de prescrição. Ele enfatizou que o racismo é crime inafiançável e imprescritível, de acordo com o Artigo 5º, inciso XLII, da Constituição, e os tribunais superiores tratam a matéria de forma pacífica, em conformidade com a Carta Magna. Quanto à alegada insuficiência de prova, ele disse que a materialidade e a autoria do crime ficaram comprovadas.

“A conduta da denunciada representa injustificável menosprezo e preconceito dirigido, intencionadamente, contra toda a coletividade praticante do candomblé, havendo suficiente comprovação de que as expressões utilizadas pela apelante, tais como “sai satanás” (sic), “queima satanás” (sic), implicam na exortação de indiscutível carga negativa quanto à referida religião de matriz africana”, destacou o relator.

Castelo Branco acrescentou que a ré cometeu o racismo diante de várias pessoas, “em contexto vexatório e de forma agressiva”, repetindo que “o pessoal do terreiro não pode ficar ali, que eles, da igreja evangélica, vão vencer” (sic). O seu voto, seguido pelos demais desembargadores, concluiu que o Poder Judiciário deve reprimir tal conduta para o alcance da convivência harmônica dos credos e a proteção da dignidade humana.

O advogado de Edneide informou que tem ciência do acórdão, mas ainda não lhe foi dado acesso aos autos físicos. A partir daí, segundo ele, começará a fluir o prazo para a interposição de eventuais recursos especial e extraordinário ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e Supremo Tribunal Federal (STF). Carneiro da Costa disse que analisará se recorrerá às cortes superiores, porque nelas não se discute mais matéria de mérito.

Titular da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do Estado da Bahia (Sepromi), Fabya Reis enalteceu a decisão do TJ-BA por meio de nota ao Vade News. “Trata-se do cumprimento do papel da Justiça e da materialização de uma medida de valor simbólico e até didático, diante da necessidade de sensibilizarmos a sociedade para o respeito à diversidade”. (leia abaixo a íntegra do comunicado)


Sepromi destaca importância de efetivação da Justiça em casos de intolerância religiosa

A Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do Estado da Bahia (Sepromi) destaca a importância da decisão do Poder Judiciário no entorno do caso que envolve a yalorixá Mildreles Dias Ferreira, mais conhecida como Mãe Dede de Iansã, que liderava o terreiro Oyá Denã, localizado no município de Camaçari.

A decisão reforça a importância da efetivação da Justiça diante dos casos recorrentes de intolerância religiosa e de racismo no país. A secretaria ressalta, ainda, que a Constituição Federal, no artigo 5º, conceitua ser inviolável a liberdade de consciência e de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos e garantindo, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e às suas liturgias.

“Entendo que são fundamentais decisões como esta do Poder Judiciário em processo referente aos crimes de intolerância, sobretudo aqueles que ferem o direito constitucional à liberdade religiosa. Trata-se do cumprimento do papel da Justiça e da materialização de uma medida de valor simbólico e até didático, diante da necessidade de sensibilizarmos a sociedade para o respeito à diversidade. Minha solidariedade à família de Mãe Dede e toda a sua comunidade religiosa que vem arduamente preservando a sua memória”, destaca a titular da Sepromi, Fabya Reis.

A Sepromi ressalta, ainda, a importância da denúncia dos casos de racismo e intolerância religiosa, bem como da atuação do conjunto de lideranças, comunidades e organizações sociais no campo da defesa do diálogo interreligioso. Para denúncias de casos desta natureza o Governo do Estado disponibiliza o Centro de Referência Nelson Mandela, equipamento vinculado à Sepromi, que pode ser acessado pelo telefone (71) 3117-7448 ou pelo e-mailcr.racismo@sepromi.ba.gov.br.

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