Lei do Feminicídio completa cinco anos. Entenda por que ela é necessária

Especialistas explicam funcionamento da lei, sancionada em 9 de março de 2015, e apontam avanços e desafios no enfrentamento à violência contra a mulher no Brasil

Por Raphaela Ramos, do O Globo

A Lei do Feminicídio foi sancionada no dia 9 de março de 2015. Desde então, mais de 4700 casos foram registrados no país. (Foto: Arte de Lari Arantes sobre foto de Ricardo Cassiano)

No dia 9 de março de 2015, a Lei do Feminicídio foi aprovada no Brasil. A partir de então, assassinatos de mulheres envolvendo violência doméstica e questões de gênero passaram a ser qualificados como crimes hediondos, com penas de até 30 anos. A proposta foi elaborada pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Violência contra a Mulher e sancionada pela então presidente Dilma Rousseff.

Mais de 4700 feminicídios foram registrados no país durante os cinco anos desde que a lei entrou em vigor, de acordo com dados do Monitor da Violência, uma parceria entre G1, Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP). Em 2019, uma mulher foi morta por motivação de gênero a cada sete horas, em média.

De acordo com a advogada Daniela Duque-Estrada, a expressão “feminicídio” foi usada pela primeira vez na década de 70. Em 1979 foi aprovada a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, um tratado internacional sobre os direitos humanos das mulheres, ratificado pelo Brasil em 2002. Ela destaca como um primeiro marco legal que busca atender às diretrizes internacionais definidas pelo documento a Lei Maria da Penha, aprovada em 2006. Nove anos depois, o feminicídio foi tipificado.

— O feminicídio envolve dois requisitos: que o homicídio tenha sido praticado por meio de violência doméstica e familiar e que seja impelido pela discriminação ou menosprezo à condição de mulher — ela explica, e ressalta. — Se o crime for cometido em outra relação que não seja essa de poder e submissão contra mulher, ele não é enquadrado como feminicídio.

A advogada, que também é coordenadora da pós-graduação em Direito Penal EaD da Estácio, detalha o funcionamento da lei:

— O feminicídio se transformou em uma qualificadora do homicídio, portanto a pena máxima passou a ser de 30 anos. Temos também a possibilidade de aumento em alguns casos: se esse feminicídio for contra uma mulher que estiver gestante ou que tenha um filho recém nascido e se for praticado na presença de ascendente ou descendente da vítima. A partir de 2018, também foi aprovado um acréscimo de uma cláusula de aumento nos casos em que o crime está em um contexto de descomprimento das medidas protetivas da Lei Maria da Penha.

A advogada Ana Teresa Basílio, Vice-Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), avalia a Lei do Feminicídio como fundamental por este ser um crime com especificidades, e que, portanto, precisa de regras próprias para coibi-lo.

— É um crime muito específico que envolve a condição das mulheres de inferioridade física, e muitas vezes financeira e psicológica diante de uma agressão que ocorre em relação ao seu companheiro, marido ou familiar. É preciso ter uma legislação própria porque é um tipo de crime com peculiaridades, e a mais grave é que ele ocorre no local em que a mulher devia ter mais segurança: dentro da sua própria casa — diz.

Ela destaca também contextos históricos que contribuem para a necessidade da lei como o fato de no Brasil, assim como em outros países, já ter sido considerado que o marido vítima de uma traição teria o direito de assassinar sua esposa. Como exemplo, cita o caso do assassinato da socialite Ângela Diniz, morta a tiros pelo companheiro, o empresário conhecido como Doca Street.

— Isso já esteve em vigor inclusive no país, na época do Brasil Colônia. Tivemos também na década 70 e 90 alguns feminicídios conhecidos, como o caso do Doca Street, em que alguns setores da sociedade achavam razoável o argumento de “legítima defesa da honra”, porque ele teria sido traído. Outro aspecto importante na nossa história é que por muito tempo foi considerado razoável praticar, principalmente contra mulheres escravas, maus-tratos, espancamentos e assassinatos — relata.

Os dados do Monitor da Violência apontam um aumento no número de feminicídios registrados no país a cada ano, chegando a 1314 casos em 2019. Para Daniele Duque-Estrada, é preciso ter cuidado na interpretação dos dados, que podem representar um aumento na categorização desses crimes como feminicídios, o que não significa que eles não aconteciam antes. Apesar do crescimento, existe ainda um problema no reconhecimento de alguns casos como feminicídios, o que poderia tornar os números ainda mais graves.

Ela afirma que, antes de ser uma questão jurídica, o feminicídio é um problema sociológico. Para a advogada, a lei retrata a preocupação do estado em evitar e coibir esse crime, dentro de um contexto que atenda às diretrizes internacionais.

— Sendo esse um fenômeno sociológico, a tipificação da lei demonstra a preocupação do estado em prevenir condutas que abarquem essa espécie de violência e para que haja maior reprobabilidade sobre o agente que a realiza. Ela é necessária, mas sozinha não é capaz de resolver esse problema, porque estamos falando de uma questão cultural — ela explica.

Ana Teresa Basílio também avalia que a criminalização do feminicídio tem um aspecto pedagógico e cultural. Ela é otimista com a diminuição futura no número de mortes, uma vez que a sociedade está prestando atenção e identificando esse fenômeno, um benefício trazido pela lei.

— A lei tem o papel de alteração de uma cultura muito deturpada e da ideia, que infelizmente ainda ficou na cabeça de algumas pessoas, de que seria legítimo, desde que por alguma razão, cometer o assassinato ou maus tratos físicos a uma mulher. Tenho confiança de que a sociedade brasileira e as instituições estão muito atentas para esse fenômeno — ela afirma, e acrescenta que seria importante a presença de políticas públicas de conscientização sobre esse problema nas escolas.

Carolina Ferracini, gerente de Prevenção e Eliminação da Violência contra as Mulheres na ONU Mulheres Brasil, avalia que a lei representou um avanço por trazer a dimensão do problema ao debate público, mas acredita que muito ainda precisa ser feito para solucioná-lo. Ela cita a necessidade de que a legislação garantisse uma reparação para as famílias das vítimas e estruturasse a ideia de direito à memória dessas mulheres.

— É preciso uma atenção profunda ao fato de que não importa que tipo de comportamento elas tenham tido, elas morreram pelo fato de serem mulheres. Qualquer outra justificativa ou apelo é nocivo e também desvia o foco da importância de trabalhar a misoginia e os estereótipos de gênero na nossa sociedade — defende Carolina.

Ferracini define o feminicídio como o resultado da falha de todas as formas de prevenção, por isso justifica ser preciso trabalhar o enfrentamento da violência contra as mulheres transversalmente, por meio de políticas públicas.

— Hoje existe uma tendência a buscar novas legislações e aumentar as penas ligadas a violência doméstica. Mas isso não vai fazer o crime deixar de acontecer, as mulheres vão continuar morrendo. É preciso quebrar o ciclo da violência, oferecendo instrumentos e serviços para que as mulheres tenham formas de empoderamento econômico e tenham a opção de sair dele — afirma.

A doutora em Sociologia do Direito destaca que a Lei Maria da Penha já trabalha a prevenção contra a violência, por meio de medidas protetivas. Além disso, afirma que ela prevê a promoção da igualdade de gênero no currículo escolar, mas isso tem acontecido apenas de forma intermitente. Ela acrescenta, ainda, que a falta de investimentos e de recursos na rede de serviços de enfrentamento da violência contra as mulheres é grave, e tem piorado ao longo dos últimos cinco anos.

Outro aspecto que merece destaque é a prevalência dos feminicídios e da violência contra mulheres negras. De acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 61% das mulheres vítimas de feminicídio no país entre 2017 e 2018 eram negras. Ferracini conta que a Organização das Nações Unidas está trabalhando em um pacote de diretrizes e ferramentas para orientar os serviços essenciais para mulheres em situação de violência que traz uma perspectiva antirracista.

— Esse é um problema muito grave, os dados que temos da última década e que o Fórum Brasileiro de Segurança Pública corroborou indicam que as mulheres negras procuram menos os órgãos públicos para denunciar uma violência sofrida. Isso mostra que existe uma falta de confiança nos serviços e indica a presença de racismo estrutural nesses espaços. Existe uma discriminação às mulheres no sentido de serem perguntadas uma série de absurdos: como se comportou, como se vestiu… E isso é ainda mais prevalente para as mulheres negras.

Casos de agressão contra mulheres podem ser denunciados pelo Ligue 180, a Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência, um serviço gratuito e que preserva o anonimato. A denúncia pode ser feita por qualquer pessoa, não apenas a vítima. A Central também tem o objetivo de orientar mulheres sobre seus direitos e encaminhá-las para outros serviços, se necessário.

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