Lembrando Lélia Gonzalez, por Luiza Bairros

FONTEPor Luiza Bairos
Foto: Elza Fiúza/Agência Brasil

∗ Militante do movimento negro e do movimento de mulheres, mestre em sociologia, atual secretária da Secretaria de Promoção da Igualdade (Sepromi), órgão do governo do estado da Bahia.

Havia uma aldeia. Um dia chegou a essa aldeia uma amazona de torço estampado de esperança, montada num cavalo negro como nossa ancestralidade.

E ela, como um antigo “griot”, contava e contava histórias.

Histórias das mulheres guerreiras, histórias dos Núbios, de civilizações egípcias cor da noite que construíram a base da humanidade. Contava história de Nani, no centro da América defendendo seu povo.

O que ela queria, todo tempo, era passar para o povo da aldeia o entendimento daquilo que eles viam a seu redor. O tempo todo ela contava a perspicácia dos caminhos que outras tribos percorreram. Ela transmitia CONHECIMENTO.

A idéia de liberdade passada por essa amazona, de torço estampado de esperança, montada em seu cavalo negro como nossa ancestralidade era tanta, que várias outras aldeias, tribos, estados pararam para ouvi-la.

E absorviam cada idéia contada por ela.

Um dia, quando a aldeia acordou, percebeu que ela havia partido.

Todos ficaram perplexos, confusos… Como? Quem nos contaria outras histórias, quem?
A aldeia caiu em desânimo, tamanha era a falta que fazia a amazona de torço estampado de esperança, montada em seu cavalo negro como nossa ancestralidade.

De repente, as pessoas se entreolharam e compreenderam que ela precisava continuar o seu caminho e que caberia a cada um transformar a semente deixada em substância. Caberia a cada aldeia, cada tribo, cada estado que bebeu de suas idéias, difundi-las. Grande era essa tarefa, pois caberia a todos eles, a todos Nós, tornar os homens e mulheres conscientes de sua negritude.

Valeu, Lélia Gonzalez!

(Texto de Néia Daniel – Rio de Janeiro, julho de 1994)

Conheci Lélia Gonzalez quando entrei para o Movimento Negro Unificado/MNU em 1979. Ela era membro da Comissão Executiva Nacional, e a todos surpreendia pelo comportamento ousado, a risada de corpo inteiro, o linguajar popular, bem ao modo do falar carioca, salpicado de expressões acadêmicas, que até permitia que nós, os militantes mais novos, entendêssemos o que é epistemologia! Na época não havia ninguém com a capacidade dela de pulverizar os argumentos racistas nos debates de que participávamos, de defender a legitimidade e a necessidade do movimento negro quando todos os setores auto-intitulados progressistas nos acusavam de divisionistas da luta popular. Quando a maioria das militantes do MNU ainda não tinha uma elaboração mais aprofundada sobre a mulher negra, era Lélia que servia como nossa porta voz contra o sexismo que ameaçava subordinar a participação de mulheres no interior do MNU, e o racismo que impedia nossa inserção plena no movimento de mulheres. Mas através de muitas e longas conversas e dos textos dela, aprendemos como incorporar um certo modo de ser feminista às nossas vidas e à nossa militância, articulamos nossos próprios interesses e criamos condições para valorizar a ação política das mulheres negras.

Lélia exerceu um papel fundamental na criação e ampliação do movimento negro contemporâneo. Mas, em termos pessoais, do que ela mais se orgulhava era de ter catalisado os anseios de uma parcela da juventude negra de Salvador, Bahia, no final dos anos 70. A partir de um ciclo de palestras que ela realizou na cidade em maio de 1978 – Noventa anos de abolição: uma reflexão crítica – várias pessoas que já discutiam a questão do racismo formaram o Grupo Nêgo, núcleo a partir do qual surgiria o MNU – Bahia. Este fato revela o que, para mim, foi o traço mais característico de Lélia: a capacidade ímpar de nos instigar com a exuberância de sua fala e nos inspirar com a luminosidade própria de sua personalidade.

A contribuição de Lélia e de outros militantes negros para nossa história recente ainda não foi devidamente avaliada e reconhecida. Este artigo é apenas um passo no sentido de provocar outras iniciativas, de maior fôlego, que busquem entender melhor o que os últimos vinte e cinco anos representaram em termos da construção de uma alternativa negra de pensar a sociedade brasileira. Por outro lado, também é parte de uma tarefa que me atribuí enquanto amiga e companheira de militância que fui de Lélia. Assim, mais do que analisar criticamente suas idéias, procurei escrever de maneira a permitir que ela falasse através do texto, numa pequena amostra – espero que não muito fragmentada – dos temas que motivaram sua intervenção em diferentes momentos.

O presente artigo foi originalmente escrito para o primeiro número da Revista do CENUN-Ba – Coletivo Estadual de Negros(as) Universitários(as). Não por acaso, mas porque entendo que os leitores da revista possam vir a desempenhar um papel importante no registro da história daqueles que possibilitaram, entre tantas outras coisas, o nosso entendimento de que a Universidade, apesar e por causa de suas mazelas, é um espaço que nos cabe ocupar com atitude. O texto poético que abre este artigo nos chama a transformar a semente deixada em substância. Não se furtem a este apelo.

Trabalhando por aí…

Lélia de Almeida Gonzalez, para quem “negro tem que ter nome e sobrenome, senão os brancos arranjam um apelido…ao gosto deles”, nasceu em 1º de fevereiro de 1935, filha de uma família operária de Minas Gerais, penúltima de dezoito irmãos. Entre séria e brincalhona, bem ao seu estilo, afirmava que só passou a admitir ser mineira depois que o MNU foi criado em Belo Horizonte. Aí, sim, dava orgulho ser de Minas. Do pai negro

ferroviário pouco falava, mas não se cansava de repetir que da mãe índia, empregada doméstica, aprendeu as primeiras lições sobre a necessidade de ser independente. Um irmão jogador de futebol trouxe a família para o Rio de Janeiro, em 1942, e aí começa a trajetória da mineira que sempre se identificava como carioca e torcedora incondicional do Flamengo, o time do irmão que tanto admirava. De “babá de filinho de madame”, passou a estudante aplicada de história e de filosofia, professora da rede pública, mestre em comunicação e em antropologia, professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e doutoranda em antropologia política na Universidade de São Paulo.

Lélia contava que, inicialmente, para superar as barreiras impostas pelo racismo, preferiu negar sua condição racial, afastando-se da comunidade negra em termos ideológicos. Ela diz: “houve por exemplo uma fase na minha vida em que fiquei profundamente espiritualista. Era uma forma de rejeitar o meu próprio corpo. Essa questão do branqueamento bateu forte em mim e eu sei que bate muito forte em muitos negros também. Há também o problema de que na escola a gente aprende aquelas baboseiras sobre os índios e os negros, na própria universidade o problema do negro não é tratado nos seus devidos termos. Esse processo … só parou quando eu casei.” 1 A forte reação contrária da família branca do marido e, mais tarde, o suicídio dele levaram-na a uma total reavaliação. A psicanálise e o candomblé reconciliaram Lélia com sua condição de mulher negra, permitindo que ela imprimisse um novo rumo à sua vida e às suas análises acerca da cultura brasileira. nota:

1 Entrevista O Pasquim, n° 871, 20 a 26/3/1986, pp. 8-10.

A partir de 1974, despertada para o conteúdo político da questão racial, Lélia passou a participar das discussões que então reuniam ativistas negros no Rio de Janeiro. Procuravam analisar a histórica subordinação dos negros no Brasil, avaliar os efeitos da ditadura militar sobre a organização dos negros, bem como estudar sobre a situação e a luta dos negros em outros países. Estas inquietações afloravam ao mesmo tempo em que os negros do sul do Brasil promoviam uma agitação político-cultural baseada na soul music, como que numa preparação intensiva para o movimento aberto de combate ao racismo que eclodiria mais tarde. Os militantes cariocas, então, tinham dois encontros por semana “para preparar dois tipos de texto: um, com o noticiário a respeito de atos de discriminação e, outro, relativo ao período pré-colonial na África. Aos sábados, reunião geral … No domingo tava todo mundo na Noite do Shaft no Renascença. A cada reunião o grupo crescia.” 2

2 Gonzalez, Lélia. “O movimento negro na última década.” In: GONZALEZ, Lélia e HASENBALG, Carlos. Lugar de negro. Rio de Janeiro, Marco Zero, 1982, p.34.

A partir deste ponto toda a atuação de Lélia será marcada pela certeza de que o combate ao racismo é a sua tarefa principal. Para ela, a chave para entender a questão racial no Brasil está na compreensão das matrizes da cultura brasileira, onde a vertente negra exerce influência quase que total. Além disto, enfatizava, talvez em conseqüência de sua experiência pessoal, que o branqueamento é um dos obstáculos maiores a serem vencidos, se quisermos, enquanto negros, efetivamente mudar a cara do país. Na sua opinião, a ideologia do branqueamento é a forma ideológica mais eficaz do racismo na América Latina, porque “reproduz e perpetua a crença de que as classificações e os valores da cultura ocidental branca são os únicos verdadeiros e universais. Uma vez estabelecido, o mito da superioridade branca comprova sua eficácia pelos efeitos de estilhaçamento, de fragmentação da identidade étnica por ele produzidos; o desejo de embranquecer (de‘limpar o sangue’, como se diz no Brasil), é internalizado com a negação da própria raça, da própria cultura.” 3 Contudo, o estímulo ao branqueamento não pode concretizar-se totalmente por causa da ação de organizações negras, como o Ilê Aiyê da Bahia, “pioneiras no sentido de demonstrarem que cultura é política com ´P´ maiúsculo, na medida em que da maneira mais didática e prazerosa, fazem com que nossa etnia tome consciência do seu papel de sujeito de sua própria história e de sua importância na construção não só deste país, como na de muitos outros das Américas.” 4

3 Gonzalez, Lélia. “Por um feminismo afrolatinoamericano”, mimeo. 1988, p.7.
4 Folheto de Campanha Eleitoral - PDT/RJ - 1986.

Entre 1976 e 1978 Lélia ministrou cursos de Cultura Negra no Brasil na Escola de Artes Visuais, no Parque Lage, um importante espaço cultural do Rio de Janeiro naquele período. Além disto, a entusiástica adesão, em 1976, ao Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo exemplifica sua busca constante para eliminar a equivocada oposição entre cultura e fazer político que tanto marcou, e ainda marca, as discussões no movimento negro. O enredo da Quilombo em 78, falando dos noventa anos da abolição, foi escrito por Antônio Candeia Filho baseado no trabalho de Lélia e de nomes já reconhecidos nos estudos sobre o negro. Surpresa com a menção a seus escritos, disse a Candeia “que ainda não tinha um trabalho digno de ser mencionado ao lado daqueles “cobras” … Ele retrucou, dizendo que sabia muito bem do trabalho que eu vinha realizando ‘“por aí” e que isso era tão importante quanto os livros dos “cobras”. 5 Foi assim que Lélia, ao perceber o alcance de seu trabalho dentro da comunidade negra, começou a refletir sobre sua responsabilidade como militante.

5 “O movimento negro na última década” p.46. Nota: Antonio Candeia Filho era um ex-policial, afastado das funções após tornar-se paralítico em conseqüência de um tiro que o atingiu quando em serviço. Tornou-se liderança fundamental no movimento de resgate das tradições negras das Escolas de Samba cariocas e contra o crescente domínio destas por setores estranhos à experiência negra no Brasil.

A intensificação dos contatos entre ativistas negros de vários estados, principalmente de São Paulo e do Rio de Janeiro, culminou na fundação do Movimento Negro Unificado/MNU em 18 de junho de 1978, e no ato público que em 7 de julho do mesmo ano lançou a entidade nacionalmente, assim inaugurando uma fase decisiva nas lutas recentes do negro no Brasil. Lélia participou ativamente deste processo, e no ato público aparece como representante da Quilombo por delegação de Antônio Candeia, que tanto respeitava. Para ela, o advento do MNU “consistiu no mais importante salto qualitativo nas lutas da comunidade negra brasileira, na década de setenta”, pois ao tirar o negro brasileiro da invisibilidade forçou outras entidades, principalmente as que se auto-definem como culturais, “a se posicionarem de maneira mais incisiva; justamente porque o MNU conquistou espaços políticos que exigiram esse avanço por parte delas.” 6.

6 idem, p.64.

Em análises posteriores, já tendo se desligado do MNU, Lélia lamentava a perda do impulso inicial do movimento devido à falta de um instrumento de trabalho, um programa de ação mínimo, que não se viabilizou não apenas por dificuldades políticas impostas pela sociedade racista, mas, talvez principalmente, por questões éticas. Desta perspectiva, ela aponta para a necessidade de uma ação política que se realize através do resgate da solidariedade no movimento negro. Isto implicaria numa avaliação séria das relações políticas destrutivas que se desenvolveram em conseqüência de um tipo de ativismo que em muitos momentos fez o jogo do “feitor”. Isto teria contribuído para o alijamento de “determinados quadros que poderiam estar à frente pela sua experiência, pelo que prendeu durante anos de luta, poderíamos estar todos juntos, pensando, implementando. A gente percebe que existem algumas exigências éticas, para dentro do movimento, e que o Movimento Negro ainda não tomou consciência delas … É essa solidariedade que vai permitir que você não se envolva com as formas de cooptação que vêm de fora.” 7

7 Entrevista MNU Jornal, n° 19, maio/junho/julho de 1991, pp. 8-9.

Tempo de Partidos

As cautelas de Lélia em relação à cooptação não fizeram dela uma militante avessa à participação em setores políticos fora do movimento negro. Pelo contrário, ela temia que sucumbíssemos às tentativas do sistema de nos guetizar. Entre os membros da Comissão Executiva Nacional do MNU, ela foi uma das primeiras a candidatar-se a um cargo eletivo, concorrendo a deputada federal pelo Partido dos Trabalhadores/PT no Rio de Janeiro, em 1982. Talvez tenha sido este o momento em que o MNU começou a pavimentar o caminho para o gradual afastamento de Lélia da entidade. Na época, a necessidade de garantir o caráter suprapartidário da entidade fez com que se tirasse uma posição no sentido de que candidatos não poderiam permanecer em cargos de direção. Uma exigência que hoje soa absurda, fazia perfeito sentido numa época em que a cultura política predominante levava os partidos a “aparelharem” os movimentos sociais, assim sufocando os interesses prioritários do movimento em favor das chamadas questões gerais colocadas pelos partidos.

Mas a visão de Lélia com relação aos setores de esquerda nunca deixou dúvidas. Segundo ela, estes também são instrumentos da articulação entre o mito da democracia racial e a ideologia do branqueamento, criados pelo liberalismo paternalista que a esquerda diz combater. Isto produz manifestações que vão desde a demonstração inequívoca de que “não gostam de ‘preto’ até a atitude ‘democrática’ que nega a questão racial, diluindo-a mecanicamente na luta de classes.” 8 Além disto, a participação negra em todos os setores era por ela entendida como uma necessidade para conter a dominação dos grupos sociais minoritários, geralmente representados pelo macho-adulto-branco. Veja-se, por exemplo, “o quadro da classe política: é a mesma coisa desde que o Brasil é Brasil. É o cara, daqui a pouco é filho o dele, daqui a pouco é o neto dele, o poder rola nas mesmas mãos e nós ficamos de fora, nós que somos o povo – o movimento negro cultural está cansado de mostrar que nós somos o povo, já provou isso tranqüilamente pra todo mundo.” 9

8”O movimento negro na última década”, p.54.
9 Entrevista MNU Jornal, n° 19, maio/junho/julho de 1991, p.8.

Os que participaram da primeira campanha eleitoral de Lélia falam do entusiasmo que tomava conta de seu comitê, da procura de formas novas de levar a plataforma política ao povo negro, às mulheres e aos homossexuais. Ousando na maneira de praticar a política em tempo de eleições, as caminhadas de campanha eleitoral eram pontilhadas por flores amarelas em homenagem a Oxum e, não raro, ao invés de falar em comícios, Lélia cantava sambas por achar que os compositores negros melhor interpretam os sentimentos e as expectativas do crioléu, como ela costumava dizer. Também foi membro da Executiva Nacional do PT, mas pouco se sabe a respeito de sua atuação nesta instância. Sem dúvida, uma consulta aos relatórios de reuniões, assim como entrevistas com petistas daquela época revelariam muito da forma aberta como questionou a resistência das lideranças do partido (menos brancas do que se imaginam) em reconhecer o acerto das análises do movimento negro sobre os mecanismos de exploração e opressão que operam na sociedade brasileira.10

10 Agradeço a Edson Cardoso pela lembrança deste aspecto da militância de Lélia enquanto parte da Executiva do PT.

A riqueza desta experiência, entretanto, não foi suficiente para fazer com que Lélia permanecesse no PT, que só mais tarde veio a ser forçado a criar ainda precários mecanismos de participação negra em sua estrutura. Em 1986, por sugestão de Abdias do Nascimento, tem uma conversa com Leonel Brizola, figura mais destacada do Partido Democrático Trabalhista/PDT, e entusiasma-se com o fato do PDT colocar a questão racial entre as prioridades do partido – junto com questões da mulher, da criança e do trabalhador. Lélia percebeu, então, que Brizola, apesar das práticas equivocadas, era uma das poucas lideranças de expressão nacional que entendia o peso da questão racial no país. Até por isto, pensava, ele não poderia ser deixado jogando solto, sem nenhum tipo de controle dos movimentos sociais autônomos que seu estilo de fazer política abomina. Por fim, o forte respaldo popular do PDT no Rio de Janeiro da época levou-a a uma nova filiação partidária e a uma outra candidatura, desta vez como deputada estadual.

Analisando algumas peças de campanha dos dois momentos, o que chama a atenção é que a mudança de partido não provocou mudanças na plataforma de Lélia como candidata, numa demonstração inequívoca de que seu programa político originava-se no compromisso com as lutas do movimento negro que ela ajudou a construir, tendo pouco a ver com as contramarchas da questão racial no interior dos partidos.11 Os quatro anos que separam as duas campanhas não apagaram a necessidade de levantar bandeiras em defesa dos direitos e contra o racismo, o sexismo e a homofobia que atingem negros, mulheres e homossexuais, tendo como pano de fundo a questão do reconhecimento e valorização das diferenças culturais.

11 Sua filiação ao PDT não a impediu de respaldar a organização dos negros em outros partidos, como atestam os artigos que escreveu para o jornal Raça & Classe, órgão da Comissão do Negro do PT Distrito Federal.

Amefricanidade

Até a metade dos anos 80, Lélia talvez tenha sido a militante negra que mais participou de seminários e congressos também fora do Brasil, sempre levando um discurso forte, provocativo e emocionado sobre a política racial brasileira, contribuindo para revelar a democracia racial como mito. Nos Estados Unidos e em vários países da África, da América Central, do Caribe e da Europa estivemos presentes através dela. E com ela aprendemos outros modos de pensar a diáspora africana, sintetizada em sua proposta da categoria amefricanidade para definir a experiência comum dos negros nas Américas.

Baseando sua própria reflexão em, entre outros, um texto de M.D. Magno (“Améfrica Ladina: introdução a uma abertura”, Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, 1981), Lélia negava a latinidade das Américas considerando, por um lado, a preponderância de seus elementos ameríndios e africanos; e por outro lado a formação histórica da Espanha e de Portugal, que só pode ser entendida tomando-se como ponto de partida a longa dominação da península ibérica pelos mouros.12 Neste último aspecto estaria a chave para entender porque, nas sociedades americanas, constituiu-se uma rígida hierarquia social definida a partir do pertencimento étnico. Assim, o racismo na Améfrica Ladina para além de fatores histórico-culturais, também revelaria, em termos psicanalíticos, uma neurose cultural que busca por todos os meios suprimir “aqueles que do ponto de vista étnico são os testemunhos vivos” da ladinoamefricanidade denegada.13

12 Lembro aos leitores que o termo América Latina teria sido cunhado por Napoleão no início do século XIX como forma de resgatar as origens latinas comuns à França, Portugal e Espanha, assim justificando suas pretensões imperiais na Europa e o conseqüente direito da França sobre os territórios ocupados por Portugal e Espanha nas Américas.
13 Gonzalez, Lélia. “Nanny.” Humanidades, Brasília, (17): 23-25, 1988.

Amefricanidade é então conceituada como “um processo histórico de intensa dinâmica cultural (resistência, acomodação, reinterpretação, criação de novas formas) referenciada em modelos africanos e que remete à construção de uma identidade étnica. [O valor metodológico desta categoria] está no fato de resgatar uma unidade específica, historicamente forjada no interior de diferentes sociedades que se formaram numa determinada parte do mundo.” 14 Uma unidade que, sem apagar as matrizes africanas, resgata a experiência fora da África como central.

14  Idem, p. 23.

No pensamento de Lélia, o núcleo da amefricanidade é constituído pela cultura negra que, informando toda a cultura brasileira, se expressa “na cotidianidade de nossos falares, gestos, movimentos e modos de ser que atuam de tal maneira que deles nem temos consciência. É isso que caracteriza a cultura viva de um povo.” Entretanto, a cultura negra “não é apenas o samba, o pagode, ou o funk. Mas ela também é o rock, o reggae, o jazz. Ela não é apenas a Umbanda ou o Candomblé, mas é também o transe das igrejas carismáticas, católicas e protestantes. Ela não é apenas o ´nós vai´ e o ´nós come´. Mas a musicalidade e as pontuações discursivas que nos diferenciam dos falares portugueses e africanos.”15

15 Discurso de posse de Hilton Cobra como Diretor do Centro Cultural José Bonifácio, Rio de Janeiro, escrito por Lélia em maio de 1993.

Entre os pilares da amefricanidade, Lélia destacava algumas figuras fundadoras que, enquanto parte de nossa ancestralidade mítica, estão referenciadas em propostas alternativas de organização social: os quilombos no caso do Brasil e, em outras partes das Américas, organizações similares designadas como cimarrones, cumbes, palenques e maroon societies. Tais experiências são patrimônio dos negros em toda a diáspora africana. Por isto, os escritos e a fala de Lélia constantemente referem-se a Zumbi dos Palmares não como mera alusão a um passado longínquo, mas como atualização histórica e simbólica das demandas do povo negro hoje. A imortalização de Zumbi, através da instituição do 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra, foi portanto “um ato político de afirmação da história do povo negro, justamente naquilo em que ele demonstrou sua capacidade de organização e de proposta de uma sociedade alternativa.”16 A incorporação dessa data pela sociedade como um todo pôde ocorrer porque “a morte de Zumbi transfigura-se no ato que, por excelência, aponta para a vida. Ao morrer, Zumbi continuou vivo, permanecendo na consciência de seu povo e também na dos opressores desse povo.” 17

16”O movimento negro na última década”, p.57. É importante lembrar que o 20 de novembro foi proposto, no início dos anos 70, pelo Grupo Palmares, de Porto Alegre, RS. Em novembro de 1978, reunido em Assembléia Nacional em Salvador, BA, o MNU estabeleceu a data como Dia Nacional da Consciência Negra.
17Folha de São Paulo, Folhetim, 22 de novembro de 1981, p.4.

Ao lado de Zumbi, Lélia também ressaltava a figura de Nanny. Heroína do povo jamaicano, ela é reverenciada por comunidades rurais no leste da Jamaica que poderiam ser caracterizadas como remanescentes de antigos quilombos/maroon societies. Nas várias narrativas que Nanny protagoniza, fala-se de sua intimidade com o mundo dos espíritos, indicando que “enquanto mediadora entre vivos e mortos, ela simboliza a continuidade das sociedades maroon no espaço e no tempo.” Por outro lado, as lendas também registram “sua liderança militar que se impõe na questão da paz com os ingleses”,18 assim referenciando sua representação como mãe e guerreira nas lutas contra a opressão e a escravidão e restabelecendo o lugar da mulher no ato fundador de nacionalidades amefricanas.

18 “Nanny”, pp. 24-25.

O lixo vai falar…

As contribuições de Lélia de maior impacto foram as que buscaram articular racismo e sexismo. O texto que considero emblemático do seu pensamento – Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira – foi apresentado, em outubro de 1980, no IV Encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais/ANPOCS. No texto, pelo menos dois aspectos chamam a atenção. O primeiro aparece logo no início quando Lélia, ao declarar sua própria posição dentro daquele Encontro, traça um eloqüente quadro do lugar a partir do qual interpretamos os fenômenos sociais. Sua declaração fundamenta-se na relação entre a Psicanálise e a Lógica, onde a primeira se alimentaria daquilo que a segunda elimina. Analogamente, “na medida em nós negros estamos na lata de lixo da sociedade brasileira, pois assim o determina a lógica da dominação …o risco que assumimos aqui é o do ato de falar com todas as implicações. Exatamente porque temos sido falados, infantilizados … que neste trabalho assumimos nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa.”19

19 Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira. in Silva, Luiz Antonio et alii. Movimentos sociais urbanos, minorias étnicas e outros estudos. Brasília, ANPOCS, 1983, p. 225. (Ciências Sociais Hoje, 2).

Daí o segundo aspecto a destacar no texto: a adoção de um suporte epistemológico que tem na psicanálise sua principal fonte. O uso de categorias propostas por Freud e Lacan, que como veremos também aparecem em trabalhos posteriores, resulta da tentativa de desvendar o que fica sem explicação no racismo à brasileira, se nos restringimos a operar com categorias analíticas da sociologia e da antropologia. Me parece que isto representa uma saída teórica no sentido de apreender melhor os aspectos simbólicos do racismo, o qual “se constitui como a sintomática que caracteriza a neurose cultural brasileira”, e do sexismo que se manifesta a partir de três noções que, referidas à mesma origem, são invocadas para definir a mulher negra a depender do contexto em que somos percebidas: mulata, doméstica e mãe preta. 20

20 idem, p.224.

A origem comum destas três noções será buscada na etimologia do termo mucama21 e em textos históricos que dão conta do uso sexual a que as escravas domésticas eram submetidas. Coerente com a postura analítica declarada no início do texto – o de trabalhar com o que é eliminado, recalcado pela consciência – Lélia nota o deslocamento do significado original da palavra africana mucama, onde a dimensão da prestação de serviços sexuais parece ter sido esquecida, para designar apenas a escrava que presta serviços domésticos. Entretanto, a ocultação de uma das funções da mucama não se realiza por completo, pois ela “continua aí com sua malemolência perturbadora. E o momento privilegiado em que sua presença se torna manifesta é justamente o da exaltação mítica da mulata no entre parênteses do carnaval.”22

21 A palavra mucama foi assim dicionarizada por Aurélio B. de Holanda: (Do quimbundo mu’kama `amásia escrava`) S. f. Bras. A escrava negra moça e de estimação que era escolhida para auxiliar nos serviços caseiros ou acompanhar pessoas da família e que, por vezes, era ama-de-leite. idem, p.229. Também de acordo com o Dicionário Banto do Brasil, organizado por Nei Lopes (Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1995), mukama significa concubina; escrava que era amante do seu senhor.
22 idem p.230

Deste modo, a doméstica seria “a mucama permitida, a da prestação de bens e serviços, ou seja o burro de carga que carrega sua família e a dos outros nas costas. Daí, ela ser o lado oposto da exaltação; porque está no cotidiano. E é nesse cotidiano que podemos constatar que somos vistas como domésticas. …Melhor exemplo disso são as mulheres negras da classe média …Os porteiros dos edifícios obrigam-nas a entrar pela porta de serviço, obedecendo a instruções dos síndicos brancos (os mesmos que as `comem com os olhos` no carnaval ou nos ôba-ôba da vida).23

23 idem. p.230.

Quanto à mãe preta, esta não seria nem a mulher submissa e dedicada como os brancos a representam, e tampouco “a traidora da raça como querem alguns negros muito apressados em seu julgamento.” 24 Ela seria apenas a mãe, responsável pelo cuidado e socialização das crianças, já que a mulher branca nada mais é do que a “outra”, pois não exerce a função materna. É preciso considerar que a “mãe preta também desenvolveu as suas formas de resistência …cuja importância foi fundamental na formação dos valores e das crenças do nosso povo. Conscientemente ou não, ela passou para o brasileiro branco as categorias das culturas negro-africanas de que era representante. Foi por aí que ela africanizou o português falado no Brasil (transformando-o em `pretuguês´) e, consequentemente, a cultura brasileira.”25

24 idem p.235
25 Folha de São Paulo, Folhetim, Domingo 22 de novembro de 1981, p.4.


Criando caso

Autodefinindo-se como feminista, Lélia participou de várias organizações de mulheres sem nunca se furtar à crítica ao feminismo, enquanto teoria e prática. 26 Ainda que reconhecendo a existência de feministas comprometidas com a questão racial – a quem chamava de irmãs – Lélia via o feminismo como um movimento de mulheres brancas, onde ela era a criadora de caso. Isto porque no “interior do movimento havia um discurso estabelecido com relação às mulheres negras, um estereótipo: As mulheres negras são agressivas, são criadoras de caso, não dá pra gente dialogar com elas, etc.”27 Para ela, a dificuldade das feministas em reconhecer a diversidade interna ao movimento, aspecto particularmente problemático na América Latina onde a maioria ameríndia e amefricana tende a ser excluída, advinha de um processo de recalque da dimensão racial, que só começou a esvair-se lentamente a partir de 1985 com a Conferência da Década da Mulher em Nairobi.

26 Além de deflagrar a discussão sobre a mulher negra no interior do MNU, Lélia fundou o NZINGA-Coletivo de Mulheres Negras do Rio de Janeiro, em 1983, juntamente com Elizabete, Mira Corrêa, Jurema Batista e Rosália Lemos, entre outras, esteve entre as primeiras conselheiras do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher/CNDM. Também participou do Taller de Mujeres de las Americas e do Mujeres por un Desarollo Alternativo/MUDAR, duas organizações de mulheres do terceiro mundo vistas por Lélia como exemplos de um novo olhar feminista, porque aberto à participação de mulheres étnica e culturalmente diferentes. Participou de Conferências Internacionais da Mulher em 1975 no México e em 1985 em Nairobi.
27 Entrevista MNU Jornal, n° 19, maio/junho/julho de 1991, p. 9.

Assim, refletindo sobre as contradições internas do feminismo latino-americano, por um lado Lélia reconhece a contribuição que a teoria e a prática feministas tiveram em nível internacional, e seu papel propulsor na discussão do homossexualismo, a partir do debate sobre sexualidade em geral. Por outro lado, alertava que a ausência da dimensão racial indicava, no mínimo, uma falta de reciprocidade, considerando que, nos Estados Unidos por exemplo, os movimentos homossexual e feminista foram grandemente impulsionados pela luta política dos negros por direitos civis. Desta perspectiva, sexismo e racismo seriam variações de um mesmo tema mais geral que tem nas diferenças biológicas (reais ou imaginadas) o ponto de partida para o estabelecimento de ideologias de dominação. O “esquecimento” da questão racial pode ser interpretado como um caso de racismo por omissão, que se origina de perspectivas eurocêntricas e neocolonialistas da realidade latino-americana. É importante notar que esta crítica se insere na perspectiva de Lélia sobre amefricanidade, onde o racismo que subordina índias e negras decorre de uma visão falaciosa de latinidade que legitima a inferiorização dos setores sociais cuja cultura e história não têm a Europa como referência. O conceito de latinidade é, portanto, uma forma de eurocentrismo que ao descartar, ou pelo menos subestimar, as dimensões índia e negra na construção das Américas, compromete a radicalidade do feminismo latino-americano.

A explicação dos mecanismos que determinam o feminismo eurocêntrico vai ser buscada em importantes, embora pouco analisados, aspectos psíquicos presentes na relação entre colonizador e colonizado. A partir da contribuição de Lacan aos estudos psicanalíticos, Lélia articula as categorias de infans e sujeito-suposto-saber para melhor entender o tema da alienação. A primeira categoria “designa aquele que não é sujeito do próprio discurso, na medida em que é falado pelos outros,” enquanto a segunda “diz respeito às identificações imaginárias com determinadas figuras, às quais se atribui um saber que elas não possuem.” Assim, se por um lado “nós, mulheres e não-brancos temos sido falados, definidos e classificados por um sistema ideológico que nos infantiliza”, por outro lado as feministas, ao esquecerem a dimensão racial da luta anti-sexismo, acabam por atribuir superioridade ao colonizador, assim reproduzindo o eurocentrismo cujos efeitos neocolonialistas “são formas alienadas de uma teoria e de uma prática que se afirmam como libertárias.” 28

28 “Por um feminismo...” pp. 4-5..

As questões discutidas acima devem ser enfrentadas como meio de superar os obstáculos que elas interpõem à organização das mulheres do continente. Com base numa proposta de Virgínia Vargas, Lélia afirma que o movimento de mulheres tem sido analisado a partir de três vertentes: a popular, a político-partidária e a feminista. É na primeira que se concentram as amefricanas e as ameríndias que incorporam a suas lutas questões relativas à sobrevivência familiar e outras reivindicações específicas, vinculadas a uma significativa presença no mercado de trabalho informal. Mas a vertente popular tende a apagar a dimensão racial mesmo face a evidências de que a condição de pobreza é redefinida pelo pertencimento racial.29

29 Veja-se como exemplo os estudos sobre famílias brancas e negras com o mesmo rendimento: na família negra tende a haver um maior número de pessoas trabalhando para receber o mesmo que uma família branca que tenha menor número de pessoas na força de trabalho. Gonzalez, 1988, op. cit. “Por um feminismo...”, p.13.

Nas duas outras vertentes – político-partidária e feminista – a presença de amefricanas e ameríndias é minoritária . Além disto, é preciso considerar que a luta destas mulheres só aparece em sua especificidade como conseqüência da existência de movimentos étnicos. Estas constatações levam Lélia a concluir que nossa inserção no movimento de mulheres deve ser caracterizada como uma quarta vertente, pois nossa “tomada de consciência da opressão ocorre, antes de tudo, pelo racial.” No caso das mulheres negras, ainda que reconhecendo que os homens se utilizam de práticas sexistas e tentam nos excluir das esferas de decisão, não podemos esquecer que é no movimento negro que, “apesar dos pesares, a nossa rebeldia e o nosso espírito crítico se dão num clima de maior familiaridade histórica e cultural.” 30 E esta experiência histórica, marcada pela escravidão, indica como no interior da comunidade como um todo forjaram-se “formas político-culturais de resistência que hoje nos permitem continuar uma luta plurissecular de libertação.” 31

30 idem, p.14
31 idem, p.12. 

Assim, ao mesmo tempo em que vibrou com a realização do I Encontro Nacional de Mulheres Negras – realizado em Valença, Rio de Janeiro, de 2 a 4 de dezembro de 1988 – Lélia também criticou duramente a proeminência, no Encontro, de posturas que considerava identificadas com um tipo de feminismo ocidental-branco, incapaz de definir a questão do sexismo para além da visão estreita do macho opressor versus a fêmea oprimida. Segundo ela, tal postura, equivocadamente chamada de radical, tende, por um lado, a fechar as possibilidades para o debate político, assumindo implicitamente que política é coisa de homem e explicitamente confundindo a questão política com opções partidárias. Por outro lado, também revela um distanciamento da realidade vivida pela mulher negra ao negar ”toda uma história feita de resistências e de lutas, em que essa mulher tem sido protagonista graças à dinâmica de uma memória cultural ancestral (que nada tem a ver com o eurocentrismo desse tipo de feminismo).” Assim, o compromisso das mulheres negras com a transformação social era visto por Lélia como prioritário, pois como “amefricanas, sabemos bem o quanto trazemos em nós a marca da exploração econômica e da subordinação racial e sexual. Por isso mesmo trazemos conosco a marca da libertação de todos e de todas.” 32

32 Gonzalez, Lélia. “A importância da organização da mulher negra no processo de transformação social.” Raça e Classe. (5): 2, nov./dez. 1988. Assim como Alice Walker, a escritora afro-americana, Lélia também era favorável à adoção de novas categorias para definir o movimento de mulheres negras. Ao invés de feminismo, propunha o uso do termo mulheridade (womanism).


Concluindo

O período entre 1974 e 1988 parece ter sido um dos mais intensos na trajetória de Lélia, totalmente marcado pela sua atuação no movimento negro que ajudara a criar. Uma vida militante curta para alguém com tão larga contribuição. Mas mesmo quando distante da linha de frente, e mais voltada para suas atividades como professora, continuava sendo uma referência para muitos militantes, especialmente as mulheres. Nos recebia em sua casa para uma cerveja, muitas risadas, longas avaliações de conjuntura e alguns merecidos puxões de orelha. Em 1991, antenada com as mudanças que se buscava fazer no MNU, Lélia aceitou reintegrar-se à entidade, tendo contribuído com artigos para o jornal e participado do I Encontro de Mulheres do MNU, onde debateu a questão das mulheres negras a partir de uma leitura em que buscava resgatar a espiritualidade dos negros (não a religiosidade, como fez questão de frisar) como elemento principal na diferenciação entre nossa luta política e a de outros setores.

As posturas políticas e teóricas assumidas por Lélia freqüentemente provocavam polêmicas; também atraíam as pesadas críticas a que negros intelectuais estão desproporcionalmente submetidos, especialmente no caso de mulheres donas de suas próprias idéias e de suas próprias vidas. Assumindo perspectivas que entendem ser mais coerentes com a experiência de seu povo, os negros intelectuais geralmente são vistos com desconfiança por buscar desconstruir os cânones do pensamento acadêmico que reforçam mais do que desafiam o racismo insidioso. Talvez, por isto, Lélia, há anos professora de Cultura Brasileira na Pontifícia Universidade Católica/PUC do Rio de Janeiro, tenha custado tanto a se tornar Chefe do Departamento de Sociologia e Política. Após algumas tentativas frustradas, apesar do apoio que tinha entre os estudantes, só foi eleita em maio de 1994 para o único cargo que a vi desejar durante nosso período de convivência.33

33 Quando da criação do Ministério da Cultura, em meados dos anos 80, Lélia chegou a figurar como uma das ministeriáveis, por indicação de Ruth Escobar. Mas o único cargo de confiança de maior visibilidade que exerceu, foi o de Diretora do Planetário do Rio de Janeiro.

Para além dos embates no interior da academia, os negros intelectuais defrontam-se com o intermitente questionamento da militância que tende a opor o fazer teórico ao prático. Isto ocorreu, e ainda ocorre, embora em menor grau, por pelo menos duas razões. Em primeiro lugar porque nem sempre se percebeu o potencial da universidade como espaço para a atuação dos negros. Em segundo lugar, pela falta de entendimento quanto ao fato, para que Gramsci já alertara, de que todo grupo social produz seus próprios intelectuais. Estes, em contrapartida, ajudam a construir a identidade do grupo e aprofundam a consciência deste em relação ao papel que tem a cumprir nos planos econômico, social e político.

Num certo sentido, penso que Lélia sofreu pelo pioneirismo, num momento em que parte da militância via os intelectuais, geralmente brancos, acima de tudo como produtores de um conhecimento que alienava nossa trajetória enquanto negros no Brasil. Cabe notar que uso o termo pioneirismo, mas não quero sugerir que Lélia tenha sido a primeira intelectual do movimento negro contemporâneo. Desde o início dos anos 70, outros negros – como o antropólogo Eduardo de Oliveira e Oliveira de São Paulo e a historiadora Maria Beatriz Nascimento do Rio de Janeiro – também desenvolviam contribuições inestimáveis para a consolidação do nosso pensamento e atuação política. Considero, entretanto, que parte da singularidade de Lélia para o conjunto da militância deveu-se à sua participação no MNU, até a metade dos anos 80, uma entidade de caráter nacional que lhe proporcionava contato direto com mulheres e homens negros em vários cantos do país e servia de moldura perfeita para uma retórica mais radical.

Assim como Eduardo e Beatriz, Lélia buscou articular pontos de vista e atitudes não identificados com as idéias prevalecentes entre os que dominam a produção do conhecimento sobre o Brasil e pagou um alto preço por atuar em espaços percebidos como exclusividade dos brancos. Assim, penso, ao modo de Said, que ela incorporou a condição metafórica do intelectual enquanto “exilado”. Tal condição não se refere necessariamente ao imigrante ou ao expatriado; um intelectual pode assim perceber-se por encontrar barreiras para participar dos círculos convencionais e para ter acesso aos meios de influenciar efetivamente o debate público. Contudo, ao mover-se em direção às margens encontra aí uma posição privilegiada para ver o que geralmente não é visto pelos que nunca se aventuraram para além dos limites conceituais aceitos pela maioria.34

34 Edward Said. Representations of the Intellectuals. New York: Pantheon Books, 1994, p.63.

Desde que trocou sua situação de companheira de luta para a de ancestral, no dia 11 de julho de 1994, Lélia tem sido motivo de algumas homenagens. A mais recente delas foi a I Jornada Cultural Lélia Gonzalez, pensada por suas organizadoras como um espaço de diálogo, convivência, reflexão, de lazer e troca entre as mulheres negras intelectuais, artistas, militantes e profissionais de diversas áreas. Deste modo, com o apoio da Fundação Palmares, cerca de 70 mulheres negras de várias partes do país reuniram-se numa oportunidade rara de pensar e exercitar formas de conviver com respeito em meio às diferenças. Presente à Jornada outra figura de mulher que influenciou negras e negros em todo o mundo: Ângela Davis. Para mim, ainda é difícil analisar devidamente os múltiplos significados incorporados àquele momento, mas sei que nossa experiência na diáspora africana e nossa trajetória de movimento negro no Brasil é que tornaram possível a convergência das contribuições de Lélia Gonzalez e de Ângela Davis para o nosso existir enquanto mulheres e homens negros aqui e agora.

Naquele dezembro de 97, em São Luiz do Maranhão, prevaleceu, mais uma vez, a capacidade inspiradora de nossa amazona de torço estampado de esperança, pois tenho certeza que passamos a entender um pouco mais suas preocupações com as questões éticas no interior do movimento negro, e com o papel único, mas não insubstituível, que cada um(a) de nós tem na luta contra o racismo e o sexismo.

Salvador, abril de 1998

PUBLICAÇÕES DE LÉLIA GONZALEZ – Lista parcial

Livros


Festas populares no Brasil. Rio de Janeiro, Índex, 1987.


Ensaios e Artigos

“Mulher negra, essa quilombola.” Folha de São Paulo, Folhetim. Domingo 22 de novembro de 1981.
“A mulher negra na sociedade brasileira.” In: LUZ, Madel, T., org. O lugar da mulher; estudos sobre a condição feminina na sociedade atual. Rio de Janeiro, Graal, 1982. 146p. p.87-106. (Coleção Tendências, 1.)
“O movimento negro na última década.” In: GONZALEZ, Lélia e HASENBALG, Carlos. Lugar de negro. Rio de Janeiro, Marco Zero, 1982. 115p. p.9-66. (Coleção 2 Pontos, 3.)
“Racismo e sexismo na cultura brasileira.” In: SILVA, Luiz Antônio Machado et alii. Movimentos sociais urbanos, minorias étnicas e outros estudos. Brasília, ANPOCS, 1983. 303p. p.223-44. (Ciências Sociais Hoje, 2.)
“La femme noire dans la societé brésilienne.” Recherche: Pédagogie et Culture. Paris, 64: 33-6, oct/déc. 1983.
“The Unified Black Movement: a new stage.” In: FONTAINE, Pierre-Michel, ed. Race, class and power in Brazil. Los Angeles, Center for Afro-American Studies, 1985. 160p. p.120-34. (CCAS Special Publications Series, 7.)
14
“O terror nosso de cada dia.” Raça e Classe. (2): 8, ago./set. 1987.
“A categoria político-cultural de amefricanidade.” Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, (92/93): 69-82, jan./jun. 1988.
“As amefricanas do Brasil e sua militância.” Maioria Falante. (7): 5, maio/jun. 1988.
“Nanny.” Humanidades, Brasília, (17): 23-5, 1988.
“Por um feminismo afrolatinoamericano.” Revista Isis Internacional. (8), out. 1988.
“A importância da organização da mulher negra no processo de transformação social.” Raça e Classe. (5): 2, nov./dez. 1988.
“Uma viagem à Martinica – I.” MNU Jornal. (20): 5, out./nov./dez. 1991.

Entrevistas

O Pasquim. (871): 8-10, 20/3 a 26/3/1986.
MNU Jornal. (19): 8-9, mai/jun/jul. 1991.

-+=
Sair da versão mobile