Letras Insubmissas de Uma Ativista Intelectual Negra

FONTEPor Winnie Bueno, do Medium
Foto: Marcus Steinmayer

Esse texto é uma tentativa de tentar reverenciar Sueli Carneiro de múltiplas formas, é o registro escrito da minha fala proferida no evento Reverenciando Sueli Carneiro promovido pela OAB-SP, organizado por Maria Sylvia Oliveira, presidenta de Geledés .

São muitas as ativistas intelectuais negras que informam meu fazer acadêmico e político, entre elas, e com profundo destaque a dra. Sueli Carneiro, mulher pela qual nutro o mais profundo respeito, admiração, carinho e amor, mas que além disso é minha mentora intelectual desde o momento em que ingressei na universidade e na atuação nos movimentos sociais para além de acompanhar minha mãe nas reuniões do movimento social negro e nos movimentos de mulheres negras. Foi quando eu fui apresentada ao feminismo, no movimento estudantil da Universidade Federal de Pelotas, que Sueli se apresentou como referência acadêmica para mim.

Nesse época, há mais de 15 anos, Sueli já era minha referência político-afetiva pelas coisas que minha mãe compartilhava da ação política de Sueli. Mas a primeira vez que eu parei para ler com cuidado e atenção um texto de Sueli foi quando, incomodada com as lógicas de supressão das resistências e contribuições de mulheres negras à luta política feminista, procurei os escritos de mulheres negras brasileiras sobre feminismo e me deparei com Enegrecer o Feminismo, texto que me acompanha até hoje em todas reflexões que faço sobre epistemologias feministas e ativismo político de mulheres. Sueli, naquele breve texto, inscreveu uma análise coletiva de mulheres negras por direitos, uma contra-narrativa a respeito da genealogia do feminismo e uma enunciação fundamental da agenda política da coletividade de mulheres negras no Brasil. Também fez um prognóstico que iria se concretizar anos mais tarde, não mais poderia se ocultar as contribuições intelectuais de mulheres negras nas lutas por direitos, inscrevia-se ali um outro paradigma para o feminismo negro brasileiro e também para as análises sobre as instituições no Brasil.

As reflexões teóricas de Sueli Carneiro, assim como de outras intelectuais ativistas negras como Matilde Ribeiro, Nilza Iraci, Luiza Bairros, Fátima Oliveira, Nilma Bentes, Jurema Werneck e tantas outras, possibilitaram enunciar a luta por direitos de mulheres negras a partir de um lugar em que os saberes de resistência e a articulação política dessas mulheres está ao centro. Sueli, com seus ensaios em jornais, entrevistas, artigos, na sua complexa tese de Doutorado, em consultorias e , sobretudo, enquanto espada a serviço da justiça social, evidenciou a construção do mito da democracia racial, permitindo a constituição de uma práxis de pesquisa no campo do Direito onde jovens juristas podem refletir os fenômenos jurídicos para a produção de uma crítica do direito que questiona a insuficiência teórica e política para inquerir o sistema de justiça a partir de uma perspectiva feminista, negra e brasileira. Uma perspectiva que, conforme aprendi com Sueli, tensiona a diversificação das concepções e práticas políticas no feminismo e, também, no Direito. Mais ainda, os escritos de Sueli Carneiro possibilitam afirmar as mulheres negras como sujeitas de direito, as quais mobilizam lutas por direito em voz própria mirando a justiça social.

Sueli nos possibilitou citar, nas normas ABNT, nas petições iniciais, nas sustentações orais, que as relações raciais no Brasil estão articuladas em uma dinâmica discursiva na qual os silêncios têm lugar privilegiado. Esse silêncio, identificado no Direito especialmente naquilo que professor José Rodrigo Rodriguez conceitua enquanto figuras da perversão do direito, é o que possibilita que os sistemas de justiça permaneçam mobilizados a partir do racismo enquanto norma, um racismo em termos sócio-júridicos, que não se apresenta de forma nua, mas justamente a partir de zonas de autarquia nas instituições formais e na prática do Direito.

A mobilizaçao dos escritos de Sueli Carneiro no campo do Direito do Trabalho, por exemplo, foi fundamental para identificar os silêncios racistas que permitiram que por décadas o trabalho doméstico exercido por empregadas domésticas, que nesse país é historicamente composto por uma maioria de trabalhadoras negras, não fosse considerado trabalho. O compromisso intelectual ativista de Sueli denuncia as dinâmicas da divisão sexual-racial do trabalho, impulsionando a agenda política que culminou na Lei Complementar 150 de 2015 que rege o emprego doméstico. São as reflexões de Sueli Carneiro que auxiliam no empoderamento legal de trabalhadoras domésticas, na articulação das mesmas na busca de seus direitos e, sobretudo, na marcação de que o emprego doméstico é feminino e negro não por um processo natural ou inevitável, mas sim pelas dinâmicas de perpetuação da subordinação social e, consequentemente, júridica de mulheres negras. A resistência epistêmica de Sueli Carneiro é, portanto, um exemplo robusto de como podemos romper silêncios.

A potencia intelectual de Sueli Carneiro possibilitou a articulação de críticas contundentes no campo do direito anti-discriminatório, já na década de 90 Sueli apontava os problemas da “tipificação precária do crime de racismo”, denunciando a irrelevância com o que o Poder Judiciário trata o tema. Conforme Machado, Lima e Neris em artigo de 2016:

Sua crítica ao Judiciário também reporta o “interesse em desqualificar o crime de racismo, classificando-o como injúria ou difamação”, o que no seu entender é “uma maneira de escamotear o grau de incidência da discriminação racial no Brasil”. Esse último ponto revela a importância do insulto racista na dinâmica da perpetuação do racismo e explica a criação, em 1997, do crime de injúria racial,10 com pena bem mais elevada do que a injúria simples.

As considerações de Sueli sobre Direito e Democracia no Brasil são fundamentais para qualquer pessoa que leve essa temática com seriedade e responsabilidade. Militante do movimento de mulheres negras, junto à outras organizacões negras, Sueli vem denunciando há mais de três décadas os processos de exclusão aos quais a comunidade negra tem sido submetida. Com notável participação na elaboração de reivindicações que possibilitem a adoção de mecanismos internacionais de enfrentamento ao racismo e ao sexismo, Sueli desenvolve experiências modelo, sobretudo atraves de Gelédes, que possibilitam a ampliação do atendimento à mulheres vítimas de violência, a denúncia do racismo institucional e a formulação e aplicação de práticas que visam superar as consequências dos sistemas de dominação baseados em hierarquias que consideram o negro enquanto “não humano”e, portanto, não sujeito de direitos.

Por fim, gostaria de elencar que se hoje estamos aqui, em uma mesa na OAB-SP, todas mulheres negras, reverenciando Sueli Carneiro, é porque ela lutou, lutou coletivamente, lutou junto aos homens e mulheres negras que possibilitaram que meninas como eu tivessem um mínimo de auto-estima e soubessem que seu lugar no mundo não era este lugar subordinado, marginalizado e sem possibilidades. Se posso hoje, me dirigir aos senhores e senhoras associados da OAB-SP com altivez e responsabilidade, para falar de Direito e da insubmissa escrita e luta de Sueli Carneiro, tomando de empréstimo as categorias político-literárias de Conceição Evaristo, é porque com ela aprendi.

Com Sueli aprendi que o racismo não é inocência ou falta de conhecimento, mas sim, um instrumento de poder. Com Sueli aprendi que não nos basta falar os brancos sobre racismo e educá-los, pois o racismo é uma estratégia sofisticada que a própria branquitude constituiu e que lhes interessa manter. Com Sueli aprendi que a mobilização, a reflexão constante, a solidariedade política é capaz de desvelar mitos sociais, como o mito da democracia racial que Sueli tão profundamente denunciou e desarticulou no contexto brasileiro. Com Sueli aprendi e ainda estou aprendendo, e espero poder aprender por muitos e muito anos, a inquirir o Direito, a questioná-lo, e, sobretudo, a não perder de vista que é a luta coletiva que promove justiça social e dela não podemos abrir mão. Obrigada Sueli, por ter enegrecido o feminismo para mim e por ter inscrito a mudança de paradigma do feminismo brasileiro articulada pelas organizações de mulheres negras, por seguir uma mulher negra em movimento, junto aos movimentos, no alto dos seus 70 anos, por mobilizar saberes de resistência e conhecimentos de oposição frente ao epistemícidio, obrigada por ser essa voz insubmissa, farol das lutas por justiça social, minha mais velha, referência política,intelectual e afetiva para todas nós.

Winnie Bueno, criadora da Winnieteca – Iyaloríxa do Ile Aiye Orisha Yemanja (Pelotas/RS). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pelotas.
Imagem: Marília Dias/Divulgação
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