Lima Barreto é bom remédio para nossa enxaqueca republicana e democrática, diz Lilia Schwarcz

Andrevruas [CC BY-SA 3.0], via Wikimedia Commons

Se estivesse vivo, o escritor Lima Barreto (1881-1922) talvez fizesse piada com o 7 x 1 da Alemanha sobre o Brasil ou destilando sarcasmo ao comentar a crise política nacional. Sua picardia, a qualidade de sua prosa, suas críticas aos estrangeirismos e à qualidade do funcionalismo público e sua literatura de temática racial não poderiam estar mais atuais, defende a historiadora Lilia Moritz Schwarcz.

Lima Barreto em foto de sua ficha em hospital psiquiátrico, em 1914

Por Néli Pereira Do BBC

Autora de uma recém-lançada biografia do autor, Lima Barreto – Triste Visionário, publicada pela Companhia das Letras, ela navega pela história do personagem para desaguar em um tratado sobre uma “certa história do Brasil”.

Vítima de um grave alcoolismo, que o levou a duas internações manicomiais, Lima Barreto teve sua obra silenciada por muito tempo, já que conseguiu desagradar a toda elite cultural e econômica nacional no início do século passado.

Revisitado política e literariamente, ele é o tema da Flip (Feira Literária de Paraty) deste ano, que acontece entre esta quarta-feira e o domingo. “Essa é a Flip da crise. Tinha que ser o Lima Barreto para ser uma edição mais marginal, que vai ser menor, não vai ter tenda, tem que ser na Igreja, enfim. Parece que o Lima desestabiliza até na Flip, quando chega a vez dele é diferente”, disse Schwarcz à BBC Brasil.

Veja a seguir os principais trechos da conversa com a historiadora.

Schwarcz vê conexões entre seu livro anterior, ‘Brasil: Uma Biografia’, e obra sobre Lima Barreto

BBC Brasil – A biografia do Lima Barreto sucede seu livro Brasil: Uma Biografia. As duas obras têm algo em comum?

Lilia Schwarcz – Sim. O Lima Barreto teve uma biografia fundamental, do Francisco de Assis Barbosa, de 1951. Mas eu queria outro Lima – que era vítima sim, mas que tinha protagonismo. E eu queria inquerir o tema racial e a questão de gênero – essas são questões da nossa geração, e não podia cobrar isso do Francisco de Assis. Minha geração é que tem convivido com as questões dos direitos civis, das diferenças.

Eu lia Lima Barreto havia muito tempo, já identificava isso e é uma história do Brasil, é uma certa história do Brasil. Quando eu fiz o Brasil: Uma Biografia, muito influenciada pela minha pesquisa, a gente dizia que um dos pilares da história do Brasil é a questão racial, que ainda é uma grande invisibilidade hoje no Brasil.

Para você ter uma ideia, quando eu lancei Brasil: Uma Biografia, não poucos jornalistas me falavam “poxa vida, nunca tinha pensado na história do Brasil sobre esse ângulo”. E foi o último país a abolir a escravidão, recebemos 45% dos africanos que foram forçados a sair do seu território, então é um espanto. Eu quero contar a história do Brasil a partir da janela do Lima Barreto.

Página do jornal ‘A Noite’, de 1915, anunciando início de publicação de textos de Lima Barreto

BBC Brasil – Além de ser atual pela questão do gênero, de raça, há na obra dele uma decepção com os políticos, presente atualmente também. Como aborda isso?

Schwarcz – Eu começo o livro com uma citação que diz que “O Brasil é uma grande comilança – comem os políticos, os jornalistas, comem os juristas”. Você lê aquilo e a sensação que te dá é um dèjá vu. Ela cobre a corrupção da República, cobre o mau uso da res pública a partir de interesses privados. E faz uma crítica feroz aos políticos, chega a dizer “à República do Brasil falta dignidade”.

Então ele cobra um Brasil mais inclusivo, mais justo, mais igualitário – problemas que estamos vivendo até hoje. São temas que ele viveu no pós-abolição e que vivemos ainda nessa mesma República falhada que padece com os problemas de corrupção, mas não só disso: de racismo, homofobia. São questões que estão na pauta de Lima Barreto, e que estão na nossa agenda.

BBC Brasil – E ele faz isso com um humor ácido…

Schwarcz – A gente tem esse jeito tão brasileiro de rir da desgraça. Me lembro do 7 x 1 contra a Alemanha, que assim que o jogo terminou comecei a receber mensagens tirando sarro disso, e o Lima tem um pouco disso – muito crítico, muito mordaz, mas ao mesmo tempo muito bem humorado.

As histórias dele sobre o funcionalismo público são de matar de dar risada – ele diz que “você mede a qualidade de um bom funcionário público pela quantidade de vezes que ele abre as gavetas, ou que ele aponta o lápis”. E ele tá lá, é funcionário público.

É uma blague que tem a ver com esse modernismo carioca, que durante muito tempo ficou fora da agenda, fora do compasso dos modernismos, e que era um modernismo boêmio e bem humorado.

Era crítico de idealizações do país, era uma literatura crítica, de contestação. E ele faz uma crítica aos estrangeirismos. E teve uma recepção desastrosa na época, como você pode imaginar.

João Henriques e Amália Augusta, pais de Lima Barreto, em imagens que estão na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindli

BBC Brasil – Desastrosa porque era crítica às elites ou porque já era racialmente engajada?

Schwarcz – Quando eu digo que o Lima Barreto merece mais do que (ser) a vítima, é porque ele tinha um projeto literário, de inserção. E fazer uma literatura negra, afrodescendente, era grave nessa época. Porque era um tema entre muitas aspas, as pessoas achavam desagradável, era melhor não falar disso.

E a gente sabe que naquela época, quem fazia sucesso, virava branco. Tanto nas fotos como na cor. Temos cor social.

No próprio manicômio, ele foi internado como branco e depois, como pardo. Essa é a régua da cor no Brasil. Eu tentei provar no livro que ele trazia esse tema, ele descreve a cor dos personagens de uma forma minuciosa, ele próprio se chamava de azeitona escura.

Para você ter um autor que diz que negro é a cor mais cortante no Brasil – não tem ingenuidade nisso. Ninguém queria falar desse tema.

BBC Brasil – Lima ajudou a impulsionar uma literatura afrodescendente?

Schwarcz – Ele morreu em 1922, aos 41 anos e com a obra muito silenciada. Depois da Nigéria, o Brasil é o maior país de população negra e africana e somente agora começam a aparecer expoentes da literatura negra, afrodescendente.

E eu não chamo de literatura negra quem nasceu negro, não é uma questão de origem, é uma opção – no Lima Barreto é um projeto literário.

Caricatura de Lima Barreto em página do jornal ‘A Cigarra’, em 1919

E agora sim, para esse tipo de literatura, o Lima Barreto é sempre lembrado e vai continuar a ser lembrado. E ele nunca esteve tão atual.

BBC Brasil – E pode ser inspirador para esse momento de apatia?

Schwarcz – Lima Barreto é um bom autor para a gente pensar as nossas falácias da democracia e da República. Ele vivia acusando as nossas instituições – a gente anda dizendo que as nossas instituições estão fortes, eu não vejo como. É só um ritual vazio que anda forte, e não as instituições.

E ele falava mal do presidente, do deputado, ele é crítico dos discursos vazios. Ele é um bom remédio para nos curar da nossa enxaqueca republicana e democrática. É um autor que provoca, que não estabiliza.

Exatamente, depois das manifestações, dos panelaços, a gente entrou em um período de apatia. E o período pede de nós – como diria o poeta – vigilância. E não apatia. E o Lima Barreto era muito vigilante, e incômodo na sua vigilância. Ele é bom para nós neste momento.

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