Linchamento

Cumplicidade e assassinato

Por  Marcia Tiburi Do Revista Cult

O linchamento é um tipo de violência em cuja base estão tensões sociais profundas que, embora possam explicá-lo, não servem de desculpa. Alguma “desculpa”, no entanto, está sempre no cerne do linchamento. Ela é relativa à ação conjunta na qual todos agem em torno de um curioso acordo acerca da verdade que rege o motivo do linchamento.

O ato de linchar é um tipo de violência hedionda. Em primeiro lugar, por sua desproporção. Crime praticado por um grupo contra alguém indefeso, ele põe em jogo o procedimento do “todos contra um”. Em segundo lugar, por sua fatalidade. Escapar de um linchamento só é possível por milagre. No meio do coletivo, não surge quem ouse defender a vítima. Ninguém vai contra a maioria. A ação não admite dúvida nem reflexão. Por isso, quem pode fica quieto.

Mas como se forma o grupo do linchamento? O que leva alguém a participar do ato? Três elementos combinam-se entre si permitindo a ação. O primeiro e mais fundamental é a anulação da subjetividade: quem participa de um linchamento não é capaz de pensar no que faz; em segundo lugar, a ausência de compaixão, a capacidade humana de se colocar no lugar do outro, de imaginar a dor do outro; e, por fim, o desejo de fazer parte da massa. Um estranho “ter lugar” pode chamar qualquer um a destruir alguém “junto” aos outros.

Experimentamos isso nas audiências televisivas de reality shows em que o potencial exterminador está em jogo – como nos mostrou Silvia Viana em seu livro Rituais de sacrifício(Boitempo, 2013).

“Todo preconceituoso é covarde. O ofendido precisa compreender isso”, Mario Sergio Cortella

A cumplicidade no linchamento

É preciso colocar a questão do tipo de “comunidade” que lincha. O que alguém está fazendo no ato de linchar é, para ele, mais do que certo. Mas ele, ao mesmo tempo, se ampara no gesto do outro. Há uma covardia de fundo no ato do linchamento que ninguém pode deixar de ver. Que o conjunto esteja fazendo algo, o mesmo que cada um, representa prova suficiente da justificativa do ato para quem dele participa. Perguntar se sua ideia e seu gesto poderiam ser diferentes é impossível para o dono da razão. Não há desconfiança no processo, só há verdade. A consequência é que cada um se sente autorizado a matar. Mas nunca sozinho, sempre com ajuda de alguém.

A “malta” espontânea é formada por individualidades cheias de ódio que encontram no coletivo seu lugar: o lugar onde cada um deixa surgir o impulso paranoico que pode haver dentro de si. Aquele que se gestou numa experiência infeliz com o outro. É ele que age covardemente na ação do linchamento sempre contando com um álibi. A comunidade que mata ergue-se sobre a cumplicidade na covardia. A hipótese do agente cruel coletivo é de que o “linchado” é algum tipo de criminoso hediondo. Mas como quem comete o crime do linchamento pode se sentir superior ao criminoso hediondo? Logo, na lógica do assassinato, o outro tem que morrer. Por que o linchador poderia punir o outro criminoso com as próprias mãos? O linchador pratica contra a vítima a culpa da qual ele mesmo é o portador. Culpa da qual ele pensa livrar-se no ato de espancar até a morte. O processo é de inversão. O linchador expurga o próprio ódio jogando-o para cima de um desconhecido indefeso. O criminoso é o outro, então ele é imediatamente punido. O outro que o paranoico odeia é que deve expiar o seu crime.

Fabiane Maria de Jesus, dona de casa, foi morta num linchamento no Guarujá em 2014. André Luiz Ribeiro, professor, escapou por pouco quando corria no Rio de Janeiro e foi confundido com um assaltante. Já sabemos da banalidade da vida e da morte em nossa cultura. Mas o que autoriza uns e outros ao assassinato? O aval. É a mesma lógica da corrupção generalizada. Porque “o outro faz, eu também estou autorizado a fazer”. Matar covardemente e sem pensar é um ato cada vez mais fácil.

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