Literatura negro afetiva para crianças e jovens

FONTEPor Sonia Rosa, enviado ao Portal Geledés
Sonia Rosa (Foto: Enviada ao Portal Geledés)

Para Iris Amâncio

Quando Nito nasceu foi uma alegria só. Todo mundo ficou contente, de tão gracinha que era logo, logo começou a ser chamado de bonito. Bonito pra cá, bonito pra lá. Até ficar apenas Nito. Todo mundo achava lindo! (O Menino Nito, Sonia Rosa)

RESUMO

Este artigo se propõe explicar o conceito Literatura negro afetiva para crianças e jovens, criado no ano de 2019 buscando  nomear e contemplar a  literatura que ofereço aos meus leitores em quase três  décadas de escrita literária. As referências acadêmicas para esses estudos são os autores Cuti e Eliane Debus. Cada um desses pesquisadores, de maneira muito singular, contribui para o refinamento da compreensão do “fazer literário” dos/as autores/as negros/as brasileiros/as na atualidade. Este artigo também tem como objetivo que o conceito em pauta ganhe outras possiblidades, isto é, pretendendo que a Literatura Negro Afetiva para crianças e jovens desloque deste “primeiro pouso”, dentro da minha obra, para alçar outros voos, se tornando, assim, livre para  nomear outras escritas, de outros autores com enredos afins. Os estudos visam ainda a acolher e potencializar o protagonismo negro   com foco na  literatura com temática negra e/ou africana, afetiva e humana, com a intenção  de que essa literatura venha contribuir para  uma convivência inter-racial mais  respeitosa e digna entre os  brasileiros de todas as idades na perspectiva de  uma sociedade não racista. 

Sobre a urgência de enredos encantadoramente enegrecidos

Reforço aqui a necessidade de trazer personagens negras em situação de conforto, respeito e dignidade para este espaço artístico singular, que é o livro voltado para infância e juventude. Este potente objeto de arte pode contribuir para a formação  racial das crianças e jovens  brasileiros. E ainda, esses livros podem atuar como um eficaz letramento racial, contribuindo para uma formação” dentro da diversidade por meio de saberes ligados à racialidade. Os estudos étnico-raciais nos leva a entender, por exemplo, o conceito de branquidade (Schucman, 2012) e seus privilégios, e ainda  nos permite   identificar o racismo  nos livros de literatura, nas convivências, em nosso entorno e em nós mesmos. A consciência racial nos impulsiona a tomar posições antirracista não permitindo que o racismo se propague ao nosso redor e muito menos que  sejamos agentes dessa dinâmica .  

Há uma urgência, para nossa sociedade ainda muito racista, de que textos literários  com protagonismo  negro   sejam compartilhados em verso e em prosa através de livros específicos  com estas características e peculiaridades. Isto é, com humanidade e representatividade positiva; prestígio, destaque, valorização e respeito à dignidade  da pessoa negra. São as histórias contadas e ilustradas em que a beleza e a força identitária de “ser  negro” se faz presente na sua melhor versão: gente bonita, calçada, penteada (penteados afros diversos), sorridente, feliz, com família e histórias para contar. Com vez e  voz, isto é, são narrativas negras escritas em primeira pessoa. Os sentimentos que perpassam nesses enredos maravilhosamente enegrecidos são narrativas afetivas cheias de ternura encontradas em ambiências étnicas ou multiétnicas. Estas representatividades negras na literatura infanto juvenil são oportunidades para uma desconstrução de paradigmas literários hegemônicos, nos quais, infelizmente,   ainda se identifica, algumas vezes, uma ausência de personagens negros em protagonismo, evidenciando a invisibilidade e o desprezo pela   existência da pessoa negra e exaltando, mais uma vez, a já tão exaltada branquidade, reafirmando os seus privilégios em detrimento da população negra, que, é bom lembrar, representa a maioria da população brasileira 

O que pretendo com o conceito de literatura negro afetiva

A partir da publicação deste artigo e através da compreensão do que significa o conceito Literatura Negro Afetiva, desejo que este possa subsidiar pesquisadores e analistas da área da leitura/educação a nomearem outras obras de outros autores, nacionais e estrangeiros,  que tenham em textos e/ou imagens as características apontadas e desenvolvidas aqui, incluindo as produções estrangeiras. Sendo assim, pretendo que os leitores e os intelectuais/especialistas envolvidos no “mundo dos livros”, tais como; editores, livreiros, escritores, ilustradores, professores, contadores de histórias e pesquisadores, mediante as reflexões apontadas e desenvolvidas neste texto, sejam capazes de identificar nas obras literárias voltadas para a infância se as mesmas se “enquadram” dentro das características  apresentadas  e estudadas  aqui.  

Ressalto que comecei a divulgar o termo Literatura Negra Afetiva para crianças e jovens em entrevistas, em encontros presenciais e em participações  online desde o final de 2019.  Explicava que meus livros ofereciam uma Literatura “negro afetiva” por terem muita representatividade negra e muita afetividade dentro das histórias que inventava.  Cada vez que citava o conceito, criava uma expectativa nos ouvintes e/ou leitores quanto a onde encontrar a referência do   termo e a    sua concepção epistemológica, propriamente dita. Contemplar esta demanda  através de uma  construção de escrita, com fundamentos teóricos alicerçados em um formato de artigo, passou a ser um desafio para mim ao longo desse tempo. 

Os estudos do Mestrado  intensificaram o  olhar crítico ao mercado editorial

No inicio do ano de 2019, em  minha defesa da dissertação de Mestrado em Relações Étnico-Raciais no Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca – CEFET/RJ,  apresentei a pesquisa intitulada A Literatura afro brasileira como Letramento racial e fortalecimento das identidades negras: uma narrativa auto biográfica, baseada na teoria autobiográfica, “a escrita de si”. 

A  opção por uma  teoria autobiográfica exigiu de mim muita dedicação, por vezes perturbadora, ao meu ato de escrever.  Sobre esta teoria, nos explica Josso (2004):

Falar das próprias experiências formadoras é, pois, de certa maneira, contar a si mesmo a própria história, as suas qualidades pessoais e socioculturais, o valor que se atribui ao que é “vivido” na continuidade temporal do nosso ser psiocossomático. Contudo, é também um modo de dizermos que, neste continuum temporal, algumas vivências têm uma intensidade particular que se impõe à nossa consciência e delas extrairemos as informações úteis as nossas transações conosco próprios e/ou com o nosso ambiente humano e natural. (JOSSO, 2004, p.48).

Escrever sobre a própria história é libertador, doloroso, mas também curativo. Nesta escrita dissertativa, tive a oportunidade de construir um texto   que implicou num mergulho profundo em minha vida de professora e de escritora. Pude revisitar toda a minha caminhada juntamente com meus sustos, perdas e ganhos, as  minhas fortalezas e minhas fragilidades. Os meus trinta anos  de professora  negra de escola pública foram repensados,  assim como, e muito especialmente, a minha obra literária.  Neste tocante, refleti no “Como?” e no “Porquê?” escrevia. Naquele momento histórico em que me preparava para ser mestra, foi preciso focar nestas reflexões e transformá-las em objeto de estudo e, a seguir, em texto acadêmico. Isto foi uma experiência marcante e desafiadora para mim.

Nessas reflexões, a preparativa de minha dissertação de Mestrado trouxe para análise o meu primeiro livro, O Menino Nito, publicado em 1995, com criação textual em 1988. Este livro foi  a pedra inaugural da Literatura negro afetiva para crianças e jovens. Uma história amorosa de um menino negro,  protagonista, bonito, criativo, amado, com família, pai, mãe, com médico em casa. Até então, não havia percebido a característica “negro afetiva” tão evidente neste livro em particular e em quase toda minha obra.   

Ressalto que o meu entendimento quanto à expressão “negro afetiva” é identificada como o sentimento de amor presente nas linhas e entrelinhas e/ou nas imagens dos meus livros. Anteriormente à criação deste termo/conceito, nomeava meus  livros como sendo uma literatura afro brasileira afinada com o conceito de  Debus (2017,p.), que nos diz: “A literatura afro brasileira ´é uma terminologia usada  que aponta ser esta uma literatura produzida por escritores afro-brasileiros.” 

Após a defesa da dissertação do Mestrado ocorrida em maio de 2019,  os meus estudos sobre os aspectos ligados à afetividade dentro das histórias com temática negra e/ou personagens negros e/ou em protagonismo se intensificaram e as reflexões ficaram mais profundas E desde então, neste pós defesa,  não conseguia mais encaixar os meus livros, a “minha literatura”, o meu modo frequente de abordar e retratar os meus inúmeros personagens, em textos e imagens,  em “literatura afro brasileira”, simplesmente.  Este conceito “literatura afro brasileira” é um bom porto. Ele ancora a minha literatura, já que  sou uma mulher negra que escreve livros com temática negra, personagens negros, mas  este conceito de literatura  “afro brasileira”  não me  contemplava  integralmente.  Sentia a ausência, nesta nomeação de minha literatura, de um ponto específico que anunciasse uma particularidade da minha escrita, isto é, o seu aspecto “afetivo e amoroso” marcante e presente nos textos que inventava. Uma demanda foi então instaurada: percebi uma necessidade da criação de uma nova nomenclatura que evidenciasse esse amor que emerge e  se destaca em  meus livros oferecidos à infância. E foi aí que nasceu o conceito de Literatura Negro Afetiva para crianças e jovens. É a retratação, e por vezes a revelação, de uma maneira de estar no mundo. É a pluralidade de existências, dentro de uma rede de afetos, apresentada em espaço de ficção para os leitores sonhares refletirem, vivenciarem a diversidade que é linda – lembrando sempre que o que não é linda é a desigualdade e a falta de respeito a essa diversidade que está na vida: nas ruas, nas praias, nas praças, nas escolas, nos mercados, nas casas precisam estar nos livros de literatura voltados para as infâncias e juventudes.

Os personagens negros apresentados nas histórias que escrevo, e que são cuidadosamente ilustrados pelos ilustradores queridos, são transbordantes de  humanidade. 

Mas preciso fazer uma reflexão: o que parece ser óbvio nesta formulação quanto à natural “expressividade humana das existências negras” com suas complexidades, afetos e subjetividades infelizmente, por questões históricas, onde o racismo é o pano de fundo, não é considerado como tal. 

Este entendimento de “não humanidade” imprime uma ideologia racista, povoa o imaginário dos leitores e dita, redita, reproduz e reafirma essa “não  humanidade” da pessoa negra dentro da literatura infanto juvenil. No entanto, esta forma depreciativa e cruel  de representação de não humanidade vem sendo cada vez mais confrontada por literaturas que valorizam a pessoa negra e suas histórias. 

Esta “não humanidade” que abordo neste artigo diz respeito a uma herança maldita dos horrores do tempo da escravidão, dentro dos navios negreiros e no tratamento que os negros escravizados recebiam dos seus “senhores”.  Infelizmente, por mais absurdo que pareça, a reprodução ideológica dessa desvalorização, desumanidade, invisibilidade e silenciamento da personagem negra ainda, vergonhosamente,  aparece em textos e/ou imagens dentro de alguns  livros voltados para o universo infantil. Mas é importante ressaltar que essas  “tristes evidencias racistas” apareciam  em  maior quantidade dentro do universo mercadológico de livros para infância antes do advento da Lei 10.639/ 2003. Obras com tais características, desrespeitosas com as vidas negras, tendem a prestar um desserviço à formação das nossas crianças, podendo ocasionar mesmo “uma deformação da infância brasileira” que pode vir a prejudicar a formação de gerações inteiras. Mas, repito, este cenário editorial  com estas características de negação da vida e da humanidade às personagens  negras dentro das histórias foi bruscamente mudado  com a  promulgação da Lei 10.639/2003, que obriga o ensino da história, arte, cultura e resistência da população negra escravizada dentro dos currículos de toda a educação básica, nas escolas  públicas e particulares  e em todo território nacional.   Para subsidiar o entendimento, referencio uma pesquisa feita pela professora, doutora, escritora e pesquisadora Eliane Debus, a qual analisou a produção editorial de   livros de literatura  direcionados à infância  com  personagens negros no pós lei 10.639/2003:

“As exigências da lei 10.639/2003 culminaram com o florescimento de um nicho mercadológico a partir da necessidade de livros que tematizem e problematizem as questões étnico-raciais, por meio da representação de personagens negras como protagonistas e narrativas que focalizem o continente africano como múltiplo; desfazendo ideias enraizadas como aquelas que trazem as as personagens negras em papéis de submissão e/ou retratando o período escravista, bem como a representação do continente africano pelo viés do exótico.” (DEBUS, 2017, p. 49)

Dessa forma então, além de suas conquistas para a população negra, a promulgação da Lei 10.639/2003 também potencializou a literatura infanto juvenil  afro-brasileira, que ganhou novo fôlego. A lei abraçou e apontou a importância desses  livros dentro das relações étnico-raciais como material de diálogo, estudo e contribuição para o letramento racial dos leitores, dentro e fora da convivência  escolar. 

“A minha produção literária voltada para a temática afro-brasileira me proporcionou conhecer e ficar amiga de escritores que militam na mesma área, como: Júlio Emílio Braz, Rogério Andrade Barbosa e Kiusan Oliveira, que hoje fazem parte da minha rede profissional e de afetos. Considerei que o mestrado seria uma singular oportunidade de rever criticamente a minha obra literária e legitimar a potência, agora com um olhar mais apurado, de algumas outras obras de reconhecidos escritores negros como eu. Nesses estudos, reafirmei como esses autores, através de seus livros, contribuíram e contribuem para o letramento racial das crianças e jovens brasileiras, em suas obras protagonizadas por personagens, culturas e histórias negras.” (JESUS, 2019 p.95)

A citação acima faz parte da minha dissertação. Nela potencializo a função dos livros com temática negra e os autores específicos dessas literaturas como grandes agentes e formadores de uma nova mentalidade, logo, de uma ideologia, um novo olhar frente à diversidade. As leituras desses autores citados, e mais alguns outros como Otávio Junior, que ganhou o Jabuti com o seu livro emocionante Da minha Janela (2020), são preciosas oportunidades para que  os leitores fortaleçam o letramento racial e que atuem como agentes antirracistas em suas convivências. 

A LITERATURA NEGRO AFETIVA –  FUNDAMENTANDO  O CONCEITO .

A solidariedade está na base  da identidade negro-brasileira, juntamente com o desejo de pertencimento. (Cuti,2010)  

O conceito novidadeiro Literatura negro afetiva se configura e se amplia  a partir dos estudos do conceito de  Literatura negro brasileira de Cuti e ganha peculiaridades dentro da literatura voltada para crianças e jovens.

Cuti diferencia a literatura negro brasileira, noção criada por ele, de literatura afro brasileira e afrodescendente: 

“O ponto nevrálgico desta diferença é o racismo  e seus significados no tocante à manifestação das subjetividades negras, mestiças e brancas. Quais as experiências vividas, que sentimentos nutrem as pessoas, que fantasias, que vivências, que reações, enfim, são experimentadas por elas diante das consequências da discriminação racial e de sua presença psíquica, o preconceito? Esse é o ponto!” Cuti, 2010,p.39)

E Cuti continua… 

“O sujeito étnico branco do discurso, bloqueia a humanidade da personagem negra, seja promovendo sua invisibilidade, seja tornando-a ou mero adereço das personagens brancas ou apetrecho do cenário natural ou de interior, como uma árvore ou um bicho, um móvel ou qualquer utensilio ou enfeite doméstico. Aparece, mas não tem função, não muda nada, e se o faz é por mera manifestação instintiva, por um acaso. Por isso tais personagens não têm história, não tem parentes, surgem quão se tivessem origem no nada.” (Cuti, 2010, p.88)

Neste ponto e a partir dessas observações, vou tecendo o conceito de Literatura negro afetiva fortalecendo a necessidade de atenção e de prestígio que os personagens negros precisam ter dentro dos livros voltados para infância e juventude. Nunca mais a desatenção, o descuido, a invisibilidade, o silenciamento e a margem. Nem em texto e nem em imagens. Livros que respeitem as infâncias negras.

Cuti considera ainda   que, após o advento da Lei 10.639/2003 e o aumento de volume das obras com temática negra chegando às escolas, instigando alunos a novos voos, poderá ocorrer revelação de novos talentos  de  uma vertente infanto juvenil negro brasileira, mas adverte: “Sem nos iludir, é preciso que o senso critico acenda suas luzes em face dessa produção, pois o racismo não dá trégua e não poupa as crianças”. (Cuti, 2010, p.144) 

Preciosos estes apontamentos de Cuti. Eles fortalecem o conceito de Literatura Negra afetiva aqui apresentado.

Enfatizo a valiosa contribuição de Cuti para esses estudos. Pesquisador  dedicado e militante respeitado, é  iniciador de Cadernos Negros e fundador do grupo Quilombhoje. Ele provoca a todos nós, homens negros e mulheres negras da literatura, de que “a literatura brasileira é abusivamente branca!”. 

Ele tem toda razão. Afino minhas ideias com as dele. Colocando este termo “brancura” dentro da literatura voltada para crianças e jovens, ainda hoje isso é perceptível. No entanto, reconheço uma visível  mudança no cenário editorial de livros para infância no pós promulgação da Lei 10.639/2203, como já desenvolvi aqui. E quero evidenciar  que   a insistência na citação dessa lei  ao longo deste artigo é porque ela é de fato um marco, uma chave, uma conquista extremamente importante. Ainda longe do ideal (principalmente quanto a sua efetivação dentro das escolas), mas um grande avanço que precisa ser celebrado e referenciado em todas as  oportunidades. E observo com alegria de que este é um caminho sem volta.   Esta estrada onde o protagonismo negro faz sua presença é fruto de uma militância intelectual negra que transformou em Lei Federal da Educação, todo o desejo de uma raça.

Mas afinal como podemos identificar e qualificar a literatura negro afetiva? 

Alguns fatores deverão ser considerados ao se analisar uma obra literária voltada para crianças e jovens na perspectiva de uma  Literatura negro afetiva. Reforço aqui que os analistas das obras literárias devem ler toda a obra com muita atenção e criticamente observar os detalhes das ilustrações. Aliás, esta recomendação vale para a análise crítica de todo e qualquer  livro de literatura voltada para infância juventude. Nunca validar obras inundadas de estereótipos, preconceitos e desprestígios às pluralidades humanas. Nossas crianças e jovens merecem respeito! Não podemos esquecer que LIVROS FORMAM MENTALIDADES.  

O autor não precisa, necessariamente, ser negro ou se autodeclarar como tal.  Mas é importante que consideremos que um livro com personagens negros,  sendo o autor e/ou  o ilustrador da obra  também negros, contribui bastante  para uma afirmação identitária mais forte. É a subjetividade negra. E mais uma vez Cuti nos ajuda na compreensão desta afirmação quando nos fala uma inconsciência negra, algo que não é resultado de mera elaboração intelectual, algo que por ter sido já elaborado, vai além dela. Pertence mesmo ao estar-no-mundo…
  

Outro aspecto importante é observar se a obra apresenta em seu enredo, histórias diversas de vivências e experiências carregadas de carinho, ternura, abraços, laços de amizade, rede de afetos, acolhimento, risos, choros e alegria. Mesmo com enredos espinhosos, mesmo com abordagens de temas indigestos, o amor e os sentimentos de  “não estar sozinho ou abandonado” deverão estar presentes.

Os personagens apresentados deverão  ser transbordantes de humanidade. E a obra ainda deve contemplar diversidade racial, priorizando, no entanto, o protagonismo negro. Esta representatividade negra positiva deverá ser percebida através dos textos e das imagens e no diálogo entre  ambos. 

Quanto ao texto propriamente dito, deverá ter, majoritariamente,  personagens negros com representatividade positiva, assim como a contemplação da temática africana no que diz respeito à cultura e à religiosidade. A narrativa deverá descrever com respeito os personagens negros, mesmo os vilões e aqueles que não estejam em protagonismo. As descrições referentes às características físicas (fenótipo) e  psicológicas dos  personagens  deverão  ser apresentadas buscando exaltar a beleza e a potência dos mesmos, sem desmerecê-los ou humilhá-los. 

Reafirmo, então, que os enredos, que são múltiplos e variados, podem suscitar situações de conflitos tal qual a vida real. Isto faz parte do mundo ficcional, que muitas das vezes retrata a via real. Mas é fundamental, na avaliação dessa literatura negro afetiva, que os personagens negros  tenham história própria, com família e com humanidade evidente. Deverão, sempre que possível, garantir uma  ambiência ficcional ancorada no afeto, no amor. Ter conflito é humano e faz parte do cotidiano e, muitas vezes, são momentos de grandes aprendizagens para os envolvidos. Mas é importante reafirmar que, para se afinar com a Literatura negro afetiva, é preciso que não se perca a humanidade dessas abordagens, se distanciando das atrocidades cometidas aos personagens negros  nas literaturas oferecidas à  infância e juventude num passado recente.  Evidencio aqui o bom senso do profissional que avalia os livros de literatura para infância. É preciso “ler as entrelinhas” e ler as imagens. O conjunto da obra tem que ser um abraço para o leitor negro e nunca um empurrão desprezante…

Atenção especial deverá ser dada à retratação da narrativa do autor pelo ilustrador, isto é, o reconto imagético do texto. Para definirmos  ser uma obra um exemplo de Literatura negro afetiva, as imagens e as ilustrações deverão ser respeitosas, fugir dos estereótipos e  reforçar de maneira positiva a identidade negra, preservando a humanidade dos personagens negros. Faço aqui uma observação quanto à insistência  relacionada ao uso frequente do termo  “humanidade” neste artigo. Este é um ponto bastante desconfortante, porém relevante no que tange às questões relacionadas à discriminação racial, quer sejam na realidade  ou na ficção. Quero chamar a atenção dos leitores de que muitas vezes a negação da humanidade da pessoa negra é fator determinante para o desrespeito e desatenção às vidas negras, isto é, legitima e impulsiona as práticas racistas.  

Quanto às  capas dos livros, elas têm muito a nos dizer.  A capa é um convite àa leitura. Ela  tem que respeitar a dignidade dos personagens negros  e nunca colocá-los dentro de contextos depreciativos e desrespeitosos. Esses serão representados com   dignidade, isto é, vestidos, limpos e calçados, jamais animalizados, desqualificados ou subalternizados, tanto nas capas quanto em todo o corpo do livro analisado.   

APLICABILIDADE DO CONCEITO 

 TRÊS LIVROS DE LITERATURA NEGRO AFETIVA

1- O MENINO NITO

Ilustração: Victor Tavares / Divulgação Editora Pallas

Este livro considero o número 1 da Literatura Negro afetiva que apresento neste artigo.

A presença do Nito no cenário editorial da década de 1990 contrariava o tratamento comum dado aos personagens negros até então. Salvo raras exceções, os personagens negros eram representados na literatura infantil em textos e imagens que os apresentavam em condição inferiorizada aos demais personagens, em ter nome e em  muitas vezes em atitudes servis, sem família e em algumas  outras tantas situações de explícita vulnerabilidade social. Esses personagens negros eram retratados quase sempre descalços, sujos e despenteados. (JESUS, 2019,p.12)

Sinopse:  Nito abria um berreiro por tudo e ninguém aguentava mais tanta choradeira. Um dia seu pai o chamou num canto e veio com aquele discurso: “Você é um rapazinho, já está na hora de parar de chorar à toa. E tem mais: homem que é homem não chora.” Essas palavras martelaram na cabeça do Nito…  O personagem é um menino negro protagonista, amado  e feliz!

ANÁLISE:  

Quanto ao texto, trata-se de uma narrativa amorosa, apesar de dolorosa para o personagem principal.  O livro apresenta uma problemática comum a algumas famílias nas quais um menino com características  muito sensíveis (neste caso aqui, um menino muito chorão)  causa um desconforto ao pai. A temática é sobre   gênero, e não racial. No entanto, as imagens produzidas pelo ilustrador apresentam um protagonista negro. Isto amplia a história e o seu valor dentro de uma perspectiva racial. As imagens construídas (a pedido meu) por Vitor Tavares é de  um menino negro, boNito, com família, com médico em casa e  amado por todos, tendendo a descontruir estereótipos. A humanidade  referente às fraquezas e equívocos dos personagens, fruto de entendimentos nefastos sobre “ser assim” ou “ser assado”, é  potencializada pelas imagens criadas. Ao final, um grande abraço acontece entre pai e filho e as escutas e acolhimentos são acordados. 

Este é um exemplo de livro de Literatura Negra Afetiva.

2- PALMAS E VAIAS

Ilustração: Salmo Dansa / Editora Pallas

Uma mudança é um desafio para qualquer um. Nesta história contada por Sonia Rosa, a personagem Florípedes experimenta as mudanças da adolescência: um novo corte de cabelo, uma dor de dentes, os peitos que crescem e o corpo que estica de uma hora para outra. Além disso, Florípedes enfrenta mais reviravoltas: ela muda de bairro e muda de escola. Ela precisa então fazer novos amigos e conhecer os novos professores, mas se depara com as diferenças e, para superá-las, decide optar pelo amor, pelo carinho e pela atenção de sua mãe. Aqui o Amor enfrenta o Desamor. E vence.

“As dolorosas e desumanas vaias recebidas na primeira festa da minha escola nova, no pós-remoção (fui removida da favela onde nasci junto com minha família e vizinhos para um conjunto residencial),  ainda hoje dialogam com as palmas generosas de minha mãe. Elas se materializam ainda hoje em minhas lembranças. As imagens amareladas pelo tempo surgem como um filme antigo. Consigo me ver ali, menina, no meio do palco de um clube cheio, no exato momento em que recebia uma “chuva de vaias”. Lembro-me com ternura do sentimento de conforto aconchegante ao receber as tão corajosas e solitárias palmas da minha mãe, enfrentando com seu amor todo o desamor presente naquele clube. A escolha sensata, para carregar no meu peito para sempre, das incentivadoras palmas de minha mãe, e não as vaias a mim dirigidas, fizeram toda diferença no meu caminhar  ao longo da vida. Apesar das dolorosas vaias proferidas, sem piedade, em um clube cheio, ouvi e percebi as palmas vindo de um par de mãos tão conhecidas. Mãos fortes e amorosas. Minha mãe. Escolhi suas solitárias palmas que me apoiavam corpo e alma naquela inesquecível festa de escola” (JESUS, 2019, p.71 e p.72)

ANÁLISE

O texto tem um enredo forte. E autobiográfico. Aconteceu comigo aos onze anos de idade. Entre a dor e o amor, escolhi protagonizar o amor. Este amor  acompanha em corpo e alma na presença marcante de minha mãe em minha vida, em especial nesta festa de escola. Apesar das mudanças, que foram muitas, fortes e profundas, a protagonista Florípedes não perde o encantamento de viver e crescer com a esperança de  dias mais felizes para ela e sua família. Uma narrativa em primeira pessoa cheia de vigor. 

Salmo Dansa fez as ilustrações com muito esmero. Deu vida e beleza às protagonistas negras. Respeitou e retratou  a cumplicidade amorosa entre mãe e filha e a plenitude de ambas terem saído unidas e fortalecidas do episódio das raivosas vaias. Elas estão lindas e estilosas. O amor está, majoritariamente, nas páginas do livro e posso afirmar que em imagens e em texto, neste livro Palmas e Vaias, o amor venceu! 

É um outro exemplo de livro de Literatura negro afetiva.

DONA BRÍGIDA

Ilustração: Walter Lara / Editora Mazza

A história da doce Dona Brígida protagoniza o amor e a fé de uma rezadeira em ação. Um encontro de afeto e de esperança. Uma cura mágica baseada no respeito à sabedoria dos mais velhos. A narrativa, em primeira pessoa, contada por uma menina que ficou doente do pé, mas não da cabeça, nos ensina que entre o céu e a terra existe muita coisa que não compreendemos… como a força das palavras e o poder do amor. Esses dois juntos curam mais do que muito remédio por aí.

O livro Dona Brígida nasceu após uma visita às minhas memórias de infância. A rezadeira Dona Brígida era uma senhora negra muito amada por todo nós, seus vizinhos. Ela amava as crianças e tinha o olhar mais doce do mundo. Com a força das palavras, curava os vizinhos com sua fé e com suas plantas. 

ANÁLISE  

O texto é amoroso como a protagonista. E tem mistérios. Fala de desejos de uma menina de ter casa bonita tão qual Dona Brígida, que atua quase como uma heroína negra nesta história. A presença singela da mãe fortalece essa ambiência de afeto, acolhimento e segurança.

Walter Lara traz em suas imagens esta ambiência cheia de simplicidade e rica de valores humanos como a solidariedade, a atenção e o cuidado. A valorização  das vidas negras exaltando sua alegria, plenitude , amor e beleza perpassam as linhas, entrelinhas do texto e as imagens reafirmam este contexto transbordante de afeto.

E um livro de Literatura negro afetiva por que é repleto de amor e  com  a presença do protagonismo negro em texto e imagens!   

CONCLUSÃO

Com base no que foi apresentado aqui neste artigo,  a Literatura Negro Afetiva para crianças e jovens é um conceito novo que pode  gerar uma construção ideológica através da valorização das narrativas  negras e/ou das imagens de personagens negros nos livros de literatura infantil e juvenil.  O grande diferencial dessas literaturas, com essa nomenclatura especifica, é a presença, em prosa, verso e/ou através das imagens, da humanidade da pessoa negra. O reconhecimento desses aspectos tão humanos como amar e ser amado, ter família, ser bem representado – limpo, calçado, penteado – pode contribuir para a construção de uma sociedade antirracista. Isto acontece porque é através da identificação de outras tantas narrativas, que não se ancoram nas “mesmas histórias eurocêntricas” contadas ao longo dos tempos, até então para nossas crianças e jovens, que podemos, objetivamente e subjetivamente, ampliar a presença da população negra e seus afetos dentro das obras literárias voltadas para a infância e juventude. Expandir este imaginário dos leitores sobre o significado das palavras “negro” e “afetiva” ajuda a avançar e descontruir ideias retrógradas referentes às vidas negras, até então equivocadamente reafirmadas nas muitas histórias infantis e juvenis oferecidas aos leitores no passado recente.

Daí a necessidade de marcar, nomeando, essas leituras. É uma Literatura Negro Afetiva porque é repleta de personagens negros, muitos deles em protagonismo, É afetiva porque é repleta de amor. Sim. Amor. Está palavra tão humana e fundamental nas nossas relações interraciais cotidianas que emanam potência para quebrar as barreiras do racismo pela vida afora, dentro e fora das escolas. 

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REFERÊNCIAS

AlMEIDA, Silvio Luiz de Racismo Estrutural. São Paulo. Editora Jandaira, 2020

BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 […] para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 10 jan. 2003.

CUTI.   Literatura Negro Brasileira. São Paulo: Selo negro, 2010

CUTI.  Literatura e Afrodescendência no Brasil: antologia crítica Vol 4. Belo Horizonte: Editora ufmg, 2014. p.55

DEBUS, Eliane. A representação do negro na literatura para crianças e jovens: negação ou construção de uma identidade? In: CONGRESSO INTERNACIONAL CRIANÇA, LÍNGUA, IMAGINÁRIO E TEXTO LITERARIO. 2., 2006, Braga. Anais… Vila Nova de Gaia: Gailivro, 2007. p. 262-269.

DEBUS, Eliane. A temática da cultura africana e afro brasileira na Literatura para crianças e jovens. Florianópolis: NUP,  2017

JESUS, Sonia Regina Rosa de Oliveira Dias de A literatura infantil afro-brasileira como letramento racial e fortalecimento das identidades negras: uma narrativa autobiográfica / Sonia Regina Rosa de Oliveira Dias de Jesus. Dissertação Mestrado, 2019, CEFET/RJ.

JOSSO, Marie-Chistine. Experiências de vida e formação. São Paulo: Cortez, 2004

ROSA, Sonia. Palmas e Vaias. Rio de Janeiro: Pallas, 2009c.

ROSA, Sonia. O menino Nito. Rio de Janeiro: Memórias Futuras, 1995. 

ROSA, Sonia. O menino Nito. Rio de Janeiro: Pallas, 2002. 

SCHUCMAN, Lia Vainer.  Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana / Lia Vainer Schucman; orientadora Leny Sato. — São Paulo, 2012.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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