Livro de Sueli Carneiro mostra que racismo opera pelo Estado e por práticas sociais

Pesquisadora publica em livro tese de doutorado de 2005, em que analisa as relações raciais no país

FONTEFolha de São Paulo, por Victoria Damasceno
A filósofa e escritora Sueli Carneiro - 11.nov.2019 - Zé Carlos Barretta/Folhapress

Sueli Carneiro inicia sua obra do lugar de escrava. Do espaço reservado aos negros excluídos da “rés(pública)”, que vivem na condição de não cidadãos. É desta forma que abre seu novo livro “Dispositivo de Racialidade“, fruto de uma tese de doutorado feita há quase 20 anos.

Embora a obra chegue às prateleiras atrasada, permanece atual ao retratar as relações raciais do Brasil hoje. Em evento de lançamento, Carneiro chegou a dizer que o racismo se multiplicou no país de uma maneira não vista anteriormente. Trouxe à memória o governo Bolsonaro ao dizer que nunca na história do país o fascismo se manifestou de forma tão virulenta —o que também mostraria a vivacidade de sua tese.

“Então, paradoxalmente a demora da publicação acabou se prestando ao livro apresentar uma evidência total de fenômenos que estão ocorrendo neste momento e que estão na ideologia da democracia racial”, diz.

Para ela, é também momento da “branquitude” se posicionar.

Na obra, convida ao diálogo com o “Eu hegemônico”, branco, confiante que seja possível construir cenários “que representem emancipação para todos”. Para convencê-lo do encontro, convoca filósofos tradicionais. Usa como base o conceito de dispositivo de poder do francês Michel Foucault, além da teoria do alemão Martin Heidegger —ousa também chamar à mesa o filósofo jamaicano Charles Mills.

A estratégia parece vir de experiências prévias. Anos antes de ingressar no doutorado, foi rejeitada por docentes do Departamento de Filosofia da FFLCH, na USP, por considerarem que a África não produzia filosofia, apenas tradição oral.

Desde o primeiro “não” foram precisos anos, a insistência de amigos, entre eles a orientadora Roseli Fischmann, docente da Faculdade de Educação da mesma instituição, para que ingressasse na pós-graduação.

A jornada começou no mestrado. Ao se qualificar, foi convidada a transformar os achados em doutorado, tamanha era a quantidade de escritos, conta Fischmann. Mulher negra naquele nível de ensino, como Carneiro, pela memória da docente, era coisa difícil de se ver.

“O que foi vivido naquele tempo foi realmente muito complexo e muito difícil. Essas pessoas que abriram os caminhos, eu diria que pagaram um preço muito alto. Nunca foi fácil para negros e negras”, diz a docente. “A única coisa que eu posso falar foi que todos passaram muito sofrimento.”

A teoria de Carneiro foi publicada em livro quase 40 anos depois de seu impulso inicial, um trabalho feito por ela para uma aula que discutia os volumes de “História da Sexualidade”, de Foucault, ministrada por José Augusto Guilhon em 1984. Na época, a então estudante, impactada com a obra, construiu um esboço do que viria a ser sua versão com base nas relações raciais.

Utilizou o conceito de dispositivo de poder elaborado por Foucault para aplicação no caso da sexualidade. A teoria consiste na rede que se estabelece entre elementos ditos e não ditos, como discursos, instituições, leis e enunciados científicos, por exemplo, para atingir um objetivo estratégico que atende a uma urgência histórica. Tais normas, institucionalizadas ou não, formatam relações de poder.

O dispositivo de racialidade, portanto, consiste na ligação entre práticas e normas institucionalizadas e socialmente aceitas, que colocam o branco como padrão e o negro como sua negação.

A teoria é estruturada pelo contrato racial de Mills, que reconhece uma supremacia branca mundial por meio de um sistema político formal e informal de privilégios. Ou seja, um acordo feito entre brancos para manter negros no lugar de subalternidade.

“A nossa metáfora local disso está nos ditos populares, que dizem que o Código Civil é para os brancos, e o Código Penal é para os negros”, disse Carneiro.

Ao mesmo tempo, usa Heidegger para mostrar que o racismo reduz a pessoa a particularidade de ser negro, e resguarda aos brancos a universalidade.

Ao citar filósofos como Mills, a autora contesta também pensadores contratualistas, como Thomas Hobbes, John Locke, Jean-Jacques Rousseau e Immanuel Kant. O cenário é retratado pela professora de ética e filosofia da Unicamp Yara Frateschi no posfácio da obra, que mostra como contratos sociais tradicionais ignoram o contrato racial intrínseco, uma vez que encobre “a liberdade dos brancos e a dominação dos negros”.

À Folha, a professora pontua que, embora a obra tenha sido escrita há quase 20 anos, foi publicada em um momento em que há uma revisão mais aprofundada e crítica desses filósofos, principalmente com relação a gênero e raça.

“A crítica que ela faz ao Kant e ao Hegel é muito séria, sublinhando o racismo deles”, diz Frateschi, também responsável por transformar a tese em livro. “E ela, ao mesmo tempo que faz uma crítica dura da filosofia ocidental, de alguns filósofos, se apropria.”

Carneiro retoma escritos de Kant, como “Observações sobre o Sentimento do Belo e do Sublime”, quando o alemão afirma que “os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo”.

“Tão essencial é a diferença entre essas duas raças humanas, que parece ser tão grande em relação às capacidades mentais quanto à diferença de cores”, escreveu ele, em trecho citado por Carneiro.

Em tom semelhante, Hegel é lembrado como aquele que vincula africanos à brutalidade. “O negro representa o homem natural em toda a sua selvageria e barbárie: se pretendemos compreendê-lo, devemos deixar de lado todas as representações europeias”, afirma o também alemão em “A Razão na História”.

A intelectual não se debruça sobre conceitos amplamente debatidos no Brasil atual, como o racismo estrutural, tema de livro de Silvio Almeida, e racismo institucional, recentemente apontado por Muniz Sodré, nesta Folha, como a real forma com que o preconceito racial age no Brasil.

Biógrafa de Carneiro, a escritora Bianca Santana avalia que a tese agora transformada em livro torna este debate ainda mais complexo, uma vez que a pesquisadora mostra como o racismo opera no Brasil por meio de normas escritas e aparentes, mas também daquelas que não podem ser ditas.

“Então, quando a gente fala daquilo que está nomeado, versus aquilo que é prática cultural, como se uma coisa fosse oposta a outra, me parece que isso desconsidera a complexidade de como o racismo opera no Brasil”, aponta Santana. “Está, sim, na estrutura, com normas que estruturam a sociedade racista, mas também temos a prática social.”

Na época que Carneiro escreveu sua tese, pouco modificada em relação ao livro, o debate sobre tais teorias era ainda incipiente no país.

A obra inclui, porém, a discussão sobre a criação de políticas de ação afirmativa como as cotas raciais, tema já avançado no Brasil na época. Em 2003, dois anos antes de Carneiro finalizar sua tese, a Universidade de Brasília se tornou a primeira instituição de ensino superior a instituir cotas para negros. Sete anos após a tese, em 2012, a Lei de Cotas foi aprovada, com abrangência para todas as universidades federais do país.

Carneiro se formou doutora em 2005, em uma cerimônia em que a trilha sonora foi o hino nacional da África do Sul, país que havia se livrado do Apartheid e colocado Nelson Mandela no poder na década anterior. Havia acabado um dos mais conhecidos regimes de segregação racial do mundo. O som que ecoava no prédio da Faculdade de Educação da USP, em São Paulo, parecia mostrar que o racismo era peste mundial, fosse na África ou nas Américas.

DISPOSITIVO DE RACIALIDADE – A CONSTRUÇÃO DO OUTRO COMO NÃO SER COMO FUNDAMENTO DO SER (Imagem: Portal Geledés)

DISPOSITIVO DE RACIALIDADE – A CONSTRUÇÃO DO OUTRO COMO NÃO SER COMO FUNDAMENTO DO SER

  • Preço R$ 69,90 (432 págs)
  • Autoria Sueli Carneiro
  • Editora Zahar

-+=
Sair da versão mobile