A lógica branca da morte de Johnny Alf

Quando o mundo branco se põe a fazer elogios desmedidos a respeito do trabalho ou da personalidade de um negro, sempre me preparo para o pior. Por favor, não me venham falar em baixa estima, que estou na defensiva e tudo o mais. O furo aqui é bem mais embaixo. Segundo Friedrich Nietzsche, “o comentário demasiadamente elogioso produz mais indiscrições que a censura”. As louvações, neste caso, têm fundo culposo − efetivam-se sem que possamos lhes prever as consequências. Desvelam a imprudente face do preconceito. Para compensar toda uma série de episódios aniquiladores do ânimo de muitas personalidades negras fundamentais para a nossa cultura, o senso comum carrega nas tintas da apologia purgativa sobre aqueles que perecem ter vivido vidas que poderiam ter sido, mas não foram. Parodiando o adágio relativo à vingança, pode-se dizer que tal espécie de elogio é um prato que se oferece frio ao seu maior interessado. Por essa razão, Cruz e Sousa é o Dante negro; Leônidas, o “Diamante Negro”, Elizete é a Divina, e assim por diante.

Por Ronald Augusto, do Sibila

Johnny Alf, morto recentemente, faz jus agora ao obituário condizente com tal lógica excludente, suportada pela tolerância da branquitude hegemônica. Como de costume, alguém deve ter afirmado que Alf foi “o caso clássico do artista que não teve o reconhecimento à altura de seu talento”. Para Ruy Castro, o compositor, pianista e cantor Alf “foi o verdadeiro pai da bossa nova”. Contemporâneo de Antonio Carlos Jobim, João Gilberto e outros que transformaram a Bossa Nova em um fenômeno mundial, ele começou, entretanto, sua carreira mais cedo e passou parte da década de 1950 tocando no Beco das Garrafas. João Donato testemunha que aprendeu com ele todas as harmonias modernas que a música brasileira começou a usar na Bossa Nova, no samba-jazz e nas músicas instrumentais. Alf ajudou a fundar um fã-clube de Frank Sinatra no Rio e também admirava George Gershwin e Cole Porter. Mas sua maior influência, como pianista e cantor, foi provavelmente Nat King Cole. O apelido “Genialf”, palavra-montagem cunhada por Tom Jobim, cumpre a função ambígua de manter o dilema debaixo de panos quentes, já que, em fim de contas, serve tanto para mitigar a sensação de indiferença com relação ao músico e arranjador, e, de outra parte, graças à sua tonalidade domingueira no uso do trocadilho, restaura a platitude da cordialidade racial, relançando os dados futuros de nossa hiperestesia, fincada nessa identidade morena em perspectiva. Mas o mulato Johnny Alf, suprassumo do “produssumo” bossanovístico, nascido no bairro de Vila Isabel no Rio de Janeiro, reduto do samba, filho de soldado do Exército e de mãe que trabalhava em casa de família, terminou seus dias em um asilo, doente e quase esquecido por seus parceiros. Montagem rápida: o corpo de Cruz e Sousa volta de Petrópolis (para onde se dirigira na tentativa baldada de vencer a tuberculose) em um vagão destinado ao transporte de gado.

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Johnny Alf

A estúpida invisibilidade, suportada por interdições, óbices e imposturas de fundo meritocrático a que são conduzidos alguns criadores negros no Brasil −principalmente aqueles “fujões” que escapam ao modelo ou que não cumprem o esperado −, está emblematizada para mim em um episódio do percurso poético de Cruz e Sousa. Close reading: trata-se da epígrafe baudelairiana aplicada por Cruz e Sousa ao pórtico do seu livro Broquéis (1893). Vejamo-la: Seigneur mon Dieu! accordez-moi la grâce de produire quelques beaux vers qui me prouvent à moi-même que je ne suis pas le dernier des hommes, que je ne suis pas inférieur à ceux que je méprise. A citação, além de situar o simbolista negro em determinado repertório ou em um círculo estético de (auto)referências, e de pô-lo em relação com o continuum da tradição poética, representa, a uma só vez, o inextrincável dilema da esterilidade e da criação, e o dilema e a oportunidade de um trajeto poético que se inaugura. Isto é, na remissão ao poeta francês, Cruz e Sousa corre o risco, comum em tal situação, de fazer mera reverência ou apologia.

Por outro lado, apontar para a obra do autor de Les fleurs du mal abre-lhe a oportunidade de um confronto inventivo-comparativo entre a sua voz e um texto que já começava, àquela altura, não obstante as polêmicas que envolveram sua publicação, a ser consagrado como peça canônica. O poeta da Ilha do Desterro, por conta das correspondências complexas entre vida e arte, observáveis em sua obra, se apropria de tal maneira do fragmento de Charles Baudelaire, e o “veste” tão bem, que, por pouco, não chegamos à conclusão de que Baudelaire não teria o direito de ser o seu autor. A epígrafe perece ter sido feita sob medida à experiência ética-estética de Cruz e Sousa, um poeta que precisou provar durante toda a sua vida − diga-se, mais aos outros que a si mesmo −, que não era le dernier des hommes. Na voz de Baudelaire, aquelas palavras sabem a sentimentais frivolidades pequeno-burguesas.

Outro caso de reconhecimento retardatário, ao menos em solo brasileiro, é o de Moacir Santos, criador do classudo disco Coisas, de 1957. Sua vida não teve uma conclusão melancólica como a do precursor da Bossa Nova, ou mesmo como a de Cruz e Sousa. Ele é tido, agora, como um dos maiores mestres da renovação harmônica da música popular brasileira. Vinicius de Moraes, no “Samba da bênção”, canta: “Moacir Santos/ tu que não és um só, és tantos/ como este meu Brasil de todos os santos”. Foi assistente do compositor alemão Hans Joachim Koellreutter e professor, entre outros, de músicos como Baden Powell, Paulo Moura e João Donato. Acho que sofreu menos porque, a partir de 1967, transfere-se para a região de Pasadena, na Califórnia, onde vive e trabalha até morrer, em 2006.

Voltando ao caso de Johnny Alf. Para as condições de uma Bossa Nova de exportação, o mais adequado é que ela fosse branca, e não negra. Para completar esse “branqueamento” do samba através, paradoxalmente, do jazz (negro), era fundamental que os seus corifeus fossem brasileiros de alma branca. Nada de negro (mesmo que fosse um Orfeu) nesse grupelho que concentrava o PIB cultural em um canto da Zona Sul carioca. Como se vê em fotos de família na história das vidas privadas, os negros, ordinariamente, aparecem no limite de corte da imagem, quase fora de quadro. Na história do entretenimento musical dos Estados Unidos, muitos artistas negros tiveram de dar a vez a substitutos brancos de talento inferior, para não chocar o estilo de vida segregacionista daquele país. Little Richard e Ray Charles incomodavam os pais zelosos com relação aos ídolos dos seus jovens. Elvis foi o contraveneno: música negra maquiada de branca; pó de arroz; o “cantor de jazz” virou o cantor branco de rock com suingue de negro. Uma contradição entre termos, o moço branco cool. A música era (e sempre foi) negra, mas os seus ídolos, na perspectiva de massa e do consumo da indústria musical, deveriam ser brancos.

Também o grande filme Assalto ao trem pagador (1962), de Roberto Farias, diz muito sobre essa condenação à desvantagem que experimentamos em uma organização social hipocritamente tolerante. Resumo do filme: Grilo Peru (“caras cor de fiambre”, “rostos cor de peru frio”, de um poema de Gilberto Freyre), é um inteligente criminoso da cidade que diz trabalhar para um chefão que chama de “Engenheiro”, e com isso convence Tião Medonho e outros bandidos da favela a praticarem um roubo a um comboio de pagamentos. O roubo é bem-sucedido. Os bandidos combinam não gastar o dinheiro roubado antes de um ano, pois isso levantaria suspeitas. Mas Grilo acha que pode ser excluído desse acerto, pois não é favelado e tem boa aparência, ou seja, é branco. O fato desperta a ira dos demais. Grilo, então, será executado pela quadrilha. No momento mais carregado de significados e traumas do filme, Grilo Peru, às portas de ser vitimado, diz a plenos pulmões que será morto não por ter rompido o trato, mas porque, de todos ali, era o único branco, de olhos azuis, bonito, e tinha pinta de rico, portanto, estava autorizado a ser perdulário, playboy, e a gastar sua parte do roubo sem parecer suspeito; além disso, eles tinham inveja dele porque fediam, eram feios, e se pareciam com macacos. Tião Medonho o executa com dois tiros à queima-roupa e ordena: “Joguem o corpo dele no rio para os peixes comerem seus olhos azuis”. A Bossa Nova de exportação, sua nívea face publicitária que vai encantar “The Voice”, isto é, Frank Sinatra, é a face rosada do “maestro soberano” (como canta o Chico de olhos glaucos) Tom Jobim. A bossa nova de olhos azuis, corpo embutido em terninho justo, bossa nova ao estilo Grilo Peru (Reginaldo Faria), põe de lado a outra bossa nova macaca e com bodum à la Tião Medonho (Eliezer Gomes), porque ela não tem permissão nem cara para dirigir o carrão zero-quilômetro da modernizante década de 1950.

Assalto ao trem pagador

Johnny Alf

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