Luiza Bairros: Negros têm de ser prioridade no Brasil sem Miséria

Os negros e os pardos constituem a maioria – 70,8% – da população de 16,2 milhões de miseráveis que o programa Brasil Sem Miséria pretende beneficiar. Para a ministra da Igualdade Racial, Luiza Bairros, tal fato deveria levar os mentores do programa, a ser lançado nos próximos dias, a explicitar desde o primeiro instante que seu alvo principal é justamente essa população. A decisão contribuiria para focar as ações, orientar os agentes sociais e atrair negros pobres que “acreditam muito pouco na capacidade do poder público de olhar para sua situação”.

por Roldão Arruda, no  Estadão

Luiza: ‘Sociedade conviveu muito tempo com a desigualdade’

Em entrevista ao Estado, a ministra também defendeu a permanência de cotas raciais nas universidades e a sua extensão a concursos público. Para Luiza, que é socióloga, o Brasil precisa superar tendência de achar natural a pobreza entre negros. “Existe um pressuposto, alimentado pelo racismo, de que os negros são pessoas sem capacidade”, disse.

Nesta sexta-feira, 13, dia do 123.º aniversário da Lei Áurea, que oficialmente pôs fim à escravidão, há situações a lamentar e a comemorar, segundo a ministra. Na primeira categoria está o fato de maioria das pessoas miseráveis, com renda mensal inferior a R$ 70, como definiu o governo, ser constituída por negros. Para comemorar, a constatação de que cada vez mais os negros brasileiros assumem a cor de sua pele, como demonstrou censo demográfico do ano passado.

A senhora tem sido ouvida nas conversas e preparativos do programa Brasil Sem Miséria que deve ser lançado nos próximos dias?

Participamos de reuniões com o Ministério do Desenvolvimento Social para conhecer a versão preliminar e a nossa preocupação foi sempre no sentido de insistir de que se deve ir além do diagnóstico de que os negros constituem a maioria dos miseráveis. Para nós, o fato de quase 71% da população de 16,2 milhões de miseráveis identificados pelo governo serem negros, tem que ser traduzido nas ações do programa. Sugerimos que seja explicitado que as categorias que serão prioritariamente beneficiadas são formadas majoritariamente por pessoas negras. Estamos falando de população de rua, grupos que trabalham com reciclagem de material, mulheres negras que chefiam famílias, comunidades negras rurais, jovens negros do meio urbano, principalmente dos bairros mais empobrecidos, mulheres que trabalham na pesca como marisqueiras, mulheres quebradeiras de coco e por aí vai. É importante deixar isso explícito considerando que existe uma certa tendência no Brasil de se naturalizar a presença de negros na condição de pobreza. Isso não é algo que cause estranheza às pessoas, porque existe um pressuposto, alimentado pelo racismo, de que os negros são pessoas sem capacidade e sem força de vontade, além de uma série de outras imagens negativas.

A senhora poderia dar um exemplo de como essa explicitação seria útil?

Podemos citar o caso das ações específicas que o programa terá para a agricultura familiar – um setor no qual existe uma tendência a se esquecer o negro. O agricultor familiar não é associado normalmente ao trabalhador negro. Por isso é preciso deixar claro à pessoa que trabalha no programa que ela está procurando comunidades negras rurais, quilombos, e que é isso que vai encontrar. Se a gente nomear, o programa também fica mais evidente para quem se deseja atingir. O nosso pressuposto para esse recomendação tem a ver com o que aconteceu após a adoção de cotas para negros nas universidades.

Qual a relação entre as duas coisas?

À medida que ficou evidente a intenção de se democratizar o acesso à universidade pela via da inserção de estudantes negros, ocorreu uma reação muito positiva no meio da juventude negra, que passou a se inscrever no vestibular – coisa que não fazia antes, porque a universidade não era para ela. Cresceram enormemente os cursos vestibulares para negros. Por isso acredito que o programa de combate à miséria deve deixar explícita sua vontade de incluir aqueles segmentos que até agora esquecidos e que acreditam muito pouco na capacidade do poder público de olhar para sua situação.

A senhora percebe essa descrença?

Sim. Ela é particularmente visível no caso das comunidades rurais, que não têm a dimensão do que pode ser o seu direito, do ponto de vista de acesso a serviços.

As cotas no ensino superior têm sido muito criticadas e devem constituir o próximo grande debate no Supremo Tribunal Federal. Como a senhora vê essa reação?

Era esperada, porque a sociedade conviveu por muito tempo com a desigualdade e, como já disse, passou a achar natural. O que sustenta a permanência da desigualdade racial no Brasil é justamente o fato de pessoas acharem que negros e brancos não são iguais, que não têm a mesma c apacidade. Sob esse ponto de vista é muito mais fácil manter a sociedade do jeito que sempre foi do que criar condições para mudanças. Nos Estados Unidos também se viu uma reação conservadora muito forte em relação às ações afirmativas. O que deve ficar bastante evidente, por outro lado, é que estamos passando por processos de transformação profundos. O fato de o último censo demográfico ter demonstrado que a população negra ultrapassou a metade do total de brasileiros é emblemático.

Por que?

Porque demonstra uma mudança de mentalidade. Todos os analistas do censo perceberam nitidamente que houve um aumento em todas as faixas etárias de pessoas que se declararam negras. Isso ocorreu até com pessoas que haviam declarado outra coisa em 2001. É uma mudança super positiva, que contraria todos os prognósticos feitos a respeito da população negra no início do século 20. A aposta era de que essa população desapareceria, por meio da miscigenação e de outros caminhos.

Pode-se dizer que existem coisas para serem comemoradas neste 13 de Maio.

Sim. Mas na questão racial todo avanço implica no surgimento de novos desafios. A cada patamar alcançado aparecem novas contradições. É por isso que muitas vezes surge a sensação de que continuamos no mesmo lugar.

Hoje, qual seria a nova contradição?

Ao mesmo tempo que celebramos o fato de a população negra constituir maioria no Brasil, o que é uma prova de resistência e de enfrentamento do racismo, que não permitiu que fosse totalmente diluída, de acordo com a ideia do branqueamento, nós convivemos com esse cenário no qual mais de 70% dos miseráveis brasileiros são negros. Isso é muito preocupante e mostra o quanto temos que avançar para recuperar séculos de exclusão.

Existem problemas também para os negros em situação econômica melhor. Estudos mostram que na iniciativa privada eles ganham menos que os brancos e enfrentam maiores dificuldades para ascender a postos de comando.

Ainda não temos um levantamento abrangente de todos os efeitos das ações afirmativas desenvolvidas no País na área do ensino superior, mas já sabemos que existe uma quantidade de pessoas negras com título universitário muito maior do existia dez anos atrás. E agora? O que fazer? Se você cria estímulos para pessoas, essas famílias e comunidades, agora têm que assegurar a elas a inserção no mercado de trabalho, de modo compatível com a formação que adquiriu.

Ministra, a elevação do grau de escolaridade não ocorreu apenas entre os negros. De maneira geral toda a população mais pobre do País elevou o nível de educação. Por que então desenvolver políticas específicas para os negros, em vez de procurar garantir avanços para todos?

Porque sem políticas específicas, ações afirmativas, cotas, não se consegue produzir os resultados na rapidez com que precisam ser produzidos. Além de inserir pessoas negras em espaços onde antes não chegavam é preciso cuidar para que essa inserção não ocorra com desvantagens. A grande questão é diminuir a desigualdade. Com todo o investimento que se fez em educação, ainda existe uma diferença de cerca de 1,8 ano de estudos entre negros e brancos. Isso já foi maior, mas a diferença ainda existe. O que se quer é isso: chegar a um ponto em que as oportunidades para os dois grupos se tornem efetivamente as mesmas.

A senhora tem viajado pelo interior do País, intensificando contatos com prefeitos e governadores. Qual é seu objetivo?

Queremos que os prefeitos e governadores se comprometam mais com as políticas de igualdade racial. No Brasil existem hoje cerca de 200 órgãos municipais e estaduais voltados para a questão racial, mas a maioria deles padece de problemas sérios, relacionadas à questão da estrutura, de recursos humanos, orçamentos. A nossa pregação para os governos tem sido no sentido de construir, como aponta o Estatuto da Igualdade Racial, um sistema nacional de promoção da igualdade racial e, partir daí, deixar mais evidente as competências das três esferas de poder. Hoje ela ainda fica muito concentrada no governo federal.

Como avalia o resultado dessas conversas?

O desafio maior é levar as pessoas à compreensão de que podemos ir além do diagnóstico. O reconhecimento de que a população negra tem tido mais desvantagens que outros grupos já existe. A questão é saber como se rompe a barreira que impede a reversão desse quadro. Nesta semana, conversando com o governador do Rio, sobre coisas que poderíamos apressar, ele apresentou a proposta se criar cotas para negros nos concursos públicos do governo do Estado. Se a gente conseguir isso no Rio, criaremos para o resto do Brasil uma demonstração com efeito muito positivo.

A presidente Dilma mostra algum tipo de interesse específico pela sua pasta?

Sim. No processo de criação do Fórum de Direitos de Cidadania, que reúne um grupo de ministérios, ela deixou muito evidente a centralidade da igualdade racial, das mulheres e dos direitos humanos.

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