‘Macaco’, ‘urubu’, ‘tira isso da cabeça’: africanos relatam situações de discriminação no Ceará

Evy Amado, de Cabo Verde — Foto- Thiago Gadelha:SVM

População negra do Ceará, a menor dos nove estados nordestinos, cresceu nos últimos anos principalmente com a chegada de estudantes africanos.

Por Nícolas Paulino no G1

Evy Amado, de Cabo Verde — Foto- Thiago Gadelha:SVM

Os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2013, dão conta de que o Ceará tem 4,6% da população autodeclarada negra – o menor percentual das nove unidades da federação do Nordeste. Contudo, além dos brasileiros afrodescendentes, hoje parte da população negra do estado é formada por estrangeiros africanos, que vêm principalmente de países lusófonos a estudos.

Atualmente, a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), em Redenção, recebe 1.103 estudantes de seis países: Guiné-Bissau (663), Angola (227), Cabo Verde (78), São Tomé e Príncipe (71), Moçambique (38), Timor-Leste (25) e Costa do Marfim (1). A maioria cursa Humanidades (218) e Engenharia de Energias (140).

Já a Universidade Federal do Ceará (UFC) tem 81 estudantes africanos com status ativo, sendo 79 participantes do Programa de Estudantes-Convênio de Graduação (PEC-G) e mais dois conveniados na Pós-Graduação. A maioria, segundo a instituição de ensino, vem de Cabo Verde, Guiné-Bissau e Angola.

Emigrantes de territórios sem heranças de períodos escravistas, estrangeiros ouvidos pelo G1 relataram se deparar, no dia a dia, com situações de discriminação na capital do estado, que aboliu o regime escravocrata em 1884, quatro anos antes da assinatura da Lei Áurea.

“Lá fora, a gente vê o Brasil de novela, aquela maravilha. Mas nem tudo é maravilhoso”, afirma Narciso Mendes, 33, que deixou Guiné-Bissau e mora em Fortaleza há quase dez anos.

“Uma vez, estava com um amigo esperando uma amiga que tinha ido se trocar. Na rua, tinha um cara bebendo e ele disse que ia ligar pra polícia porque tinham dois macacos olhando para a cara dele”, conta.

Em outras duas situações marcantes, ele diz que foi chamado de “urubu” e que “de branco, só tinha os dentes”. Narciso nunca formalizou queixas, embora saiba que existem canais para isso. De janeiro de 2016 a junho de 2018, por exemplo, 34 denúncias de discriminação étnico-racial no Ceará foram informadas ao Disque 100, do Ministério dos Direitos Humanos. No primeiro semestre deste ano, foram três casos.

Mito da democracia racial

“Lá fora, a gente vê o Brasil de novela, aquela maravilha. Mas nem tudo é maravilhoso”, afirma Narciso Mendes — Foto- Gabriel Borges:PMVR

O preconceito racial também incomoda a universitária cabo-verdiana Evy Amado, 23, que vive há cinco anos em Fortaleza. “Quando cheguei aqui, eu ainda alisava os cabelos. Mas pensei: por quê? Para me parecer com eles? Eu tive que me afirmar mesmo. Dizia: ‘eu tô gostando dele assim, ele vai se manter assim’”, revela.

Mas o desafio mesmo, revela, é exibir os cachos na rua. “Um dia, uma senhora botou a mão no meu cabelo. Foi meio constrangedor porque eu nunca tinha passado por isso. Não deu tempo nem de ver ela direito ou de ter uma reação. No mesmo dia, um senhor gritou ‘Ah, tira isso da cabeça!’. Mas era meu cabelo. Como assim tirar da cabeça?”, indigna-se.

Para o professor Luís Tomás Domingos, docente moçambicano que gerencia o Núcleo de Estudos Africanos e Afro-Brasileiros (Neaab) da Unilab, o grande erro do brasileiro é comparar o africano a um escravizado. “Os que chegam aqui não se consideram nesse patamar. Eles não tiveram esse histórico de escravidão”, lamenta.

O especialista analisa que o Brasil vive o “mito da democracia racial” ao propagar o orgulho da miscigenação sem políticas públicas efetivas de igualdade racial. “O nosso convívio ainda não foi bem elaborado para ver o outro diferente não pela cor da pele, mas como ser humano. É essa dimensão que está em crise. Ninguém nasce racista. É questão de educação”, explica.

Década dos afrodescendentes

Ceará tem menor percentual de população negra entre os estados do Nordeste — Foto- Dario Oliveira:Código 19:Estadão Conteúdo

Zelma Madeira, coordenadora especial de Políticas Públicas para a Promoção da Igualdade Racial no Ceará, lembra que, até 2024, está em curso a Década Internacional de Afrodescendentes, instituída pela Organização das Nações Unidas (ONU). O momento é de promover a autoafirmação e resgatar a memória das comunidades negras.

“A abolição brasileira foi inconclusa porque os negros foram libertados sem nenhuma política de reparação ou ação afirmativa que pudesse ajudá-los na inserção qualificada à sociedade”, avalia a pesquisadora. O cenário perdura: Madeira lembra que, dos 13 milhões de brasileiros desempregados atualmente, mais de 64% são negros ou pardos.

A coordenadora também defende a sensibilização da população e do poder público quanto ao futuro da juventude negra e periférica, perfil que mais é vítima de homicídios no Ceará, segundo o Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência (CCPHA). “Precisamos oferecer a esses adolescentes outros destinos que não os homicídios, os delitos e o encarceramento em massa. Eles têm mostrado, na periferia, muito talento, criatividade e inteligência”, destaca.

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