Diante do Palmeiras, o Boca Juniors define hoje (5) uma vaga na final da Libertadores. Se passar, disputará sua 12ª decisão. Numa partida marcada pelo racismo, há 60 anos, os argentinos disputavam sua primeira final e foram derrotados pelo Santos de Pelé, Coutinho e Pepe.
“Macaquitos de Brasil”
Na edição de 1963, os santistas foram recebidos por gritos de “macaquitos de Brasil”, em La Bombonera; hoje, as competições sul-americanas registram recordes de denúncias de injúria racial.
Seis décadas depois daquele jogo, o mais recente encontro entre brasileiros e argentinos na Libertadores também foi marcado pela discriminação racial: torcedores do Boca chamaram palmeirenses de macacos, na quinta-feira (28), no jogo de ida das semifinais, outra vez na Bombonera.
“Não fazem ideia do que passávamos dentro do campo”, relatou Pelé, em 2012, sobre a experiência vivida pelos santistas no confronto que rendeu ao Peixe o bicampeonato continental.
‘Vibraram com muita raiva’: Santos de Pelé venceu o Boca e gritou contra racistas
Jogar lá é muito complicado. Na minha época não havia registros da imprensa, e não fazem ideia do que passávamos dentro do campo. Santos era um time experiente e só faltava jogar na lua, mas lá foi impressionante. Lembro como se fosse hoje: na nossa entrada em campo, a torcida do Boca cantando ”los macaquitos de Brasil, los macaquitos de Brasil’… tudo para desestabilizar a gentePelé, ao declarar a torcida pelo Corinthians, outrora seu rival, contra o Boca na decisão de 2012
O Santos venceu por 3 a 2 no primeiro jogo da final da Libertadores de 1963. Na volta, na Bombonera, mais uma vitória santista: 2 a 1, de virada. Foi de Pelé o simbólico gol da vitória: uma perturbadora caneta no zagueiro Magdalena precedeu o chute cruzado para vencer o goleiro Errea, que ainda tocou a bola com o pé. Os rivais ficaram no chão, estatelados, e o Rei, agredido verbalmente pela torcida e em campo pela dura marcação adversária, explodia na comemoração.
“Quando marcaram os gols na vitória por 2 a 1, o Pelé e o Coutinho vibraram muito, com raiva. Coutinho me contou que, na Argentina, os jogadores do Santos eram xingados sempre, mesmo os que não eram negros. Isso servia de combustível para eles. Ganhar dos argentinos era um prazer duplo”, relata Guilherme Guarche, historiador do Santos, ao UOL Esporte.
Recorde indesejado: discriminação persiste, mas brasileiros estão mais atentos
As denúncias de injúria racial na Libertadores e na Sul-Americana já haviam registrado o recorde no ano passado, e o número foi superado em 2023. Até o momento, segundo o Observatório da Discriminação Racial no Futebol, foram 21 casos neste ano. Desses, nove geraram punições. Prisões ocorreram em três ocasiões.
O fato de as denúncias terem aumentado não significa necessariamente uma alta nos casos, segundo Marcelo Carvalho, diretor do Observatório. O que pode se interpretar dos números é uma conscientização maior da população e dos atletas sobre o racismo.
“A sociedade brasileira evoluiu no entendimento de que é crime e discute de forma veemente o racismo. Temos uma lei que tipifica o racismo como crime. Não há essa lei na Argentina e na Espanha, e esse debate terá reflexo nas competições sul-americanas”, pondera Carvalho.
Até o momento, a mudança mais significativa, para ele, é o processo – ainda que gradual – de o futebol entender que não pode abrir espaço para o racismo.
“Até 2022, tínhamos casos noticiados, mas eram de 5 a 6 denúncias [por ano], e em 2022 tivemos um salto, antes desse recorde em 2023. E muito disso pelo debate que acontece no Brasil, de entender que também no futebol isso não pode acontecer. Esse processo de educação e conscientização leva que os brasileiros notifiquem esses casos no exterior ou aqui. A diferença é o olhar do brasileiro para os casos”, analisa.
Para o diretor da entidade, somente punir os clubes não vai surtir efeito no combate ao racismo. Isso porque, não raras vezes, os torcedores reagem mal às sanções sofridas pelas equipes pelas quais torcem.
“Antes, a Conmebol era pautada por multas, entendia que dessa forma se combatia o racismo. Depois da conversa que tivemos, mostramos que o torcedor não vai entender assim. Há de passar pela conscientização, pela educação do que é o racismo e o quanto ele é significativo para a população negra. Esse é o processo. É um debate que temos de entender, que os clubes sul-americanos não têm como grave o racismo. Mas a xenofobia, sim. Para eles, é algo muito mais grave que o racismo”, conclui.
Racismo na América do Sul: por que vizinhos se sentem à vontade
Doutor em antropologia e sociólogo que debruça seus estudos sobre a violência entre torcidas de futebol na América do Sul, o argentino Nicolas Cabrera vive no Brasil e observa a discriminação racial sob duas perspectivas: como a população daqui sente o racismo e como a Argentina e alguns países sul-americanos ainda não o entenderam em sua gravidade.Continua após a publicidade
Já não se trata mais de uma impressão que torcedores das nações vizinhas se sentem mais à vontade para cometer atos racistas nos estádios sul-americanos: os registros recentes mostram isso. Os brasileiros são, em maioria, mais vítimas que autores das denúncias de injúria racial na Libertadores e na Sul-Americana. Mas por quê?
Em relação ao Brasil, os países do chamado Cone Sul, como Argentina, Chile e Paraguai, estão muito atrasados no debate, nas leis e na sensibilidade social de suas populações sobre o racismo, aponta Cabrera. Os motivos são a composição racial dessas nações, suas histórias e mitos de fundação e outros temas de suas agendas públicas influem diretamente em uma discussão mais morosa.
Na Argentina, por exemplo, o nível de discussão sobre o racismo é de negação completa, avalia Nicolas. “A Argentina não se reconhece como um país racista, não reconhece o racismo como um problema do país, não tem uma lei específica que criminalize o racismo como o Brasil. Há uma lei geral sobre discriminação, mas o fato de não ter uma específica mostra que estamos bem atrás [no debate] em comparação ao Brasil”, diz.
Muitos argentinos, chilenos e paraguaios não percebem a gravidade desses gestos e símbolos para os brasileiros, prossegue:
“Normalmente, legitimam os atos racistas em nome do folclore, festa e brincadeiras do futebol, dizem que o brasileiro está chorando demais e não entende os códigos do futebol, que é ‘mimimi’.”
Para entender por que não se vê o racismo com a mesma gravidade, diz ele, há de se observar a história dos países.Continua após a publicidade
“Assim como o Brasil foi criado sob o mito da democracia racial, a Argentina, por exemplo, foi criada sob o mito da branquitude europeia, com a ideia de que eles vêm dos barcos, são todos descendentes da Europa. E isso levou a negar tudo aquilo que não é branco: suas populações indígenas, as populações afro-argentinas, a herança africana. No futebol, onde a própria dinâmica das torcidas leva a se diferenciar do teu rival, eles encontram na questão racial uma forma de diferenciar as nações, os países, as torcidas”, afirma.
O ligeiro ou inexistente avanço do debate que ele observa nesses países se deve, primordialmente, à impunidade – “a Conmebol não faz nada para puni-los” – e à falta de atitude dos próprios clubes, que não entendem o problema e nem seu papel social na resolução.
Cabrera lembra, ainda, que, desde o início do século passado, a imprensa argentina também teve seu papel na manutenção do problema. Como quando, em diversas oportunidades, cometeu racismo ao se referir aos brasileiros como macacos.
Brasileiros respondem com provocações. Peso não é o mesmo, diz pesquisador
Recentemente, um movimento inverso partiu das arquibancadas. Como uma resposta aos constantes atos racistas, os torcedores brasileiros passaram a provocar os argentinos mais intensamente. A forma escolhida foi rasgar dinheiro diante deles, em alusão à desvalorização do peso e à crise econômica argentina. Nicolas Cabrera pondera que a provocação atinge os vizinhos em um ponto sensível, os inflama e até serve de argumento para justificarem os atos racistas: “os torcedores dizem que ‘os brasileiros também estão zoando a gente'”.
Porém, o antropólogo faz questão de colocar uma divisão clara entre as duas manifestações: não são equivalentes.
“Queimar a nota é ofensivo para os argentinos. Mas não tem como comparar com o peso que significam os atos racistas. No Brasil, fazer a simbologia do macaco é enfiar o dedo numa ferida muito viva, que dói muito”, comenta. Uma provocação talvez em nível similar, segundo ele, “seria afirmar que as Malvinas são inglesas“.
Marcelo Carvalho entende da mesma forma. “Que a gente preste atenção nas comparações. O crime de racismo é um crime contra a dignidade humana, tem uma gravidade maior que as outras. O único que fica acima dele é matar uma pessoa”, afirma.
Dada a gravidade dos atos racistas e das provocações constantes nos estádios, Cabrera enxerga uma tensão que deve levar ao aumento da violência em competições sul-americanas nos próximos anos.
“Não é um problema novo, é problema estrutural. Por conseguinte, a solução não pode ser do dia para o outro. Mas não estou otimista.”