Mães e gestantes negras na pandemia de covid-19: O desafio está ainda maior

FONTEPor Anielle Franco, no Ecoa
Anielle Franco (Foto: Bléia Campos)

As últimas semanas têm sido especialmente difíceis para conseguir dar conta de toda a demanda do trabalho e da maternidade. Além dos desafios que ficam restritos à minha casa e núcleo familiar, ainda tem os trazidos pela pandemia de covid-19, que se misturam intimamente com quem sou e como vivo minha vida. Na última semana li uma notícia sobre uma puérpera de Manaus que veio a óbito apenas 27 dias depois de ter dado à luz, em decorrência não da covid-19, mas da falta de ética e preparo de uma médica. Jucicleia, jovem mãe de 30 anos, morreu após sua médica considerar adequada a utilização de um tratamento experimental com hidroxicloroquina, – defendido pelo presidente Bolsonaro – sem o devido consentimento e nem a devida explicação dos riscos que ele representava. O resultado? Mais uma família destruída pela pandemia, mas principalmente, pelo negacionismo e negligência de quem deveria trabalhar para nos proteger.

Como mãe de duas meninas e tendo passado, durante a minha primeira gestação por violência obstétrica e vivenciado, já na minha segunda gestação a maior pandemia da nossa história e todos os desafios que a mesma representa para mulheres gestantes, e em especial, mulheres negras, que são as mais afetadas no Brasil pela violência obstétrica, essa notícia tocou nos meus maiores medos e sentimentos de indignação.

Segundo a Organização Pan-americana de Saúde, a taxa de letalidade de mulheres grávidas e puérperas pela covid-19 no Brasil é nove vezes maior que a média das Américas. Mulheres negras grávidas e puérperas têm um risco de morte por covid-19 quase duas vezes maior que o de mulheres brancas. Estudos brasileiros detalham o impacto das falhas dos serviços de saúde nessa tragédia: 15% das mulheres grávidas ou puérperas que morreram de Covid-19 até julho de 2020 não receberam nenhuma assistência ventilatória, 28% não tiveram acesso a UTI, 36% não foram intubadas nem receberam ventilação mecânica.Também em meio a esse cenário, veio a orientação do Ministério da Saúde para que – mais uma vez – as mulheres brasileiras considerassem adiar seus planos de maternidade por conta da pandemia. Coisa que não é nenhuma novidade, uma vez que vai de encontro a profunda falta de respeito que os governantes vem tendo e sempre tiveram com mulheres gestantes durante epidemias, como recordamos no período da epidemia do Zika vírus. O dia a dia de gestantes e mães de recém-nascidos tem sido desafiador.

Em meio a essas notícias, sofri, mais uma vez, uma tentativa de cerceamento da minha liberdade de ser mãe e cuidar das minhas filhas, durante uma live onde participei e que uma das organizadoras pediu para que eu não amamentasse a minha filha Eloah, de apenas oito meses.

A situação, além de constrangimento, despertou em mim uma forte indignação, já que ainda em 2021, e em meio a uma pandemia onde nós somos obrigadas a trabalhar de casa, alguém pode acreditar que existe a possibilidade de mudar as necessidades de uma bebê, ou tornar menos urgente o trabalho de dar atenção a uma criança que ainda sequer consegue expressar.Impedir que mães cuidem de seus filhos enquanto realizam outras atividades públicas, é uma das formas mais antigas de limitar as possibilidades de trabalho de mães, além de afastar essas mulheres e suas crianças de espaços de construção públicos. Punir mulheres por dar alimento a seus filhos é uma forma de punir também sua decisão de tornar-se mãe.

Constantemente nosso direito à maternidade, e portanto, nossos direitos reprodutivos são retirados de nós ou nos fazem questionar se de fato o temos. O direito de escolher como, com quem e em que momento você deseja engravidar e ser mãe, precisa ser respeitado. Da mesma forma que o direito de cuidar de sua bebê, pelo tempo que a criança precisar, também precisa ser respeitado, sem que isso cause culpa ou constrangimento para as mães.

O trabalho por direitos sexuais e direitos reprodutivos das mulheres brasileiras ainda possui um longo percurso pela frente. Mesmo assim, sei que estamos no caminho do avanço quando ainda em meio a ataques, encontramos espaços de troca e diálogo sobre as dificuldades enfrentadas por nós, mães negras. Sigo em frente pois não descansarei enquanto não conseguir garantir que esses direitos pelos quais tanto lutamos, sejam de fato efetivados para todas as mulheres e meninas do nosso país hoje, mas principalmente, para as futuras gerações. A luta por justiça reprodutiva para todas continua.

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