Maioria dos moradores de comunidades do Rio ajudou outra família durante a pandemia, diz pesquisa

FONTEO Globo, por Gilberto Porcidonio
Ladeira dos Tabajaras, comunidade de Copacabana Foto: Gabriel de Paiva / Agência O Globo

Moradora da comunidade Ladeira dos Tabajaras, na Zona Sul carioca, a vendedora Patrícia Melo, de 28 anos, que trabalhava vendendo sanduíches na praia, teve sua renda fortemente afetada com a pandemia. Foi só no início desta semana que ela conseguiu um emprego em uma oficina de automóveis de Botafogo, perto de casa. Durante este tempo, ela se dedicou a ajudar quem estava em dificuldades em sua própria comunidade. Patrícia fez uma lista com os dados de 800 famílias para que pudessem receber cestas básicas e álcool em gel da Associação Esportiva Raiz da Bola.

— Estamos em um momento muito delicado, em que precisamos nos unir mais para conseguir passar por isso — afirma a vendedora.

O exemplo de Patrícia não é uma exceção dentre as comunidades do estado. Uma pesquisa feita pelo projeto SOS Favela!, pela ong Viva Rio e pela Academia Pérolas Negras revelou que, mesmo que a renda dos mais pobres tenha caído 20% , a solidariedade não diminuiu. Mais de dois terços dos entrevistados (69%) declararam que ajudaram outra família que passava por dificuldades durante a quarentena.

Mesmo na faixa de menor renda, em que as famílias recebem menos de R$ 600 mensais, 60,3% dos entrevistados tiveram essa postura solidária. O levantamento foi feito entre 10 e 19 de junho, com base no cadastro de 35.967 famílias de 406 comunidades e 32 municípios.

O Complexo da Serrinha, em Madureira, na Zona Norte, onde 80% dos moradores têm baixa renda e sobrevivem com trabalhos autônomos ou informais, foi outra região da cidade onde a ajuda ao próximo virou palavra de ordem. A assistente social Elaine Casemiro, que é a presidente da Associação de Moradores do Complexo da Serrinha, contou que a postura solidária nunca tinha chegado a um patamar tão alto na favela:

A gaúcha Patricia Melo mora no Tabajaras e, mesmo quando estava desempregada, ajudou uma ong a levar cestas básica a mais de 800 famílias Foto: Agência O Globo

— Tenho 49 anos de Serrinha e nunca tinha visto isso na minha vida. Diria que 70% das pessoas da favela estão se ajudando, antes mesmo dos projetos sociais. Eu, por exemplo, que tinha um quilo de açúcar a mais e sabia de um vizinho que não tinha, me reunia com outros para fazer uma cestinha básica pequena que fosse para ajudar. Tem gente que só tem um punhado de sal em casa e que está se preocupando com o outro.

A falta de trabalho impactou a renda dos moradores das comunidades. De acordo com o levantamento, o problema atingiu 65% deles. Apenas 29% dos entrevistados exerceram alguma atividade remunerada no mês de maio. Desses, a formalidade protege apenas 18%. No bairro da Chatuba, em Mesquita, na Baixada Fluminense, o mecânico e estudante Augusto César, 23 anos, precisou se cadastrar para receber o auxílio emergencial do governo federal por ficar sem trabalho. Ele também passou a fazer entregas como motoboy em um aplicativo. E a dificuldade do momento não o privou de ser solidário. Junto do projeto S.O.S. Favela, Augusto conseguiu distribuir mais de 50 cestas básicas para toda a comunidade.

— As oportunidades de emprego para nós, que somos jovens de periferia, são sempre mais difíceis. Eu diria que a Chatuba é periferia da periferia do Rio de Janeiro, mas nesse momento as coisas se agravaram de maneira radical. Nem todo mundo consegue o auxílio emergencial. Quem consegue continua precisando de ajuda, pois é delicado sustentar uma família só com R$ 600 — disse Augusto.

Os empreendedores das comunidades cariocas que, em razão da pandemia, estão precisando reinventar os seus negócios e atuações, também estão reforçando esta ajuda momentânea. Na comunidade Nova Brasília, no Complexo do Alemão, Zona Norte da cidade, o casal Marcelo Ramos e Gabriela Romualdo, que comanda o Bistrô Estação R&R, destina parte da venda de seu Chope Verde Solidário a quem precisa, além de angariar doações de alimentos não perecíveis para o projeto Tropa de Luz, que já distribuiu 31 toneladas de alimentos no complexo.

— Por que aqui na favela é o famoso “nós por nós” sempre — disse Gabriela.

Economia da pobreza

Para o antropólogo Rubem César, que acompanhou a pesquisa, os dados mostram que as comunidades fluminenses concretizam o que se chama de economia da pobreza, isto é, a rede de solidariedade que existe em meio à completa adversidade. E a pandemia causada pelo novo coronavírus, que aprofundou ainda mais a desigualdade no estado, tornou isso ainda mais evidente.

— Existe um abismo social entre a favela e o asfalto, mas, mesmo na favela, existe uma hierarquia social e quem mais perdeu foi justamente quem menos ganha. Por isso, uma grande ajuda pode ser simplesmente um quilo de feijão com uma vizinha que está na pior. Esse movimento constante de troca faz parte da economia da pobreza, em que as pessoas se viram em pequenos ganhos que fazem a diferença naquele dia. Nisso, um pão vira cinco — disse o antropólogo.

Para Rubem César, essa rede de solidariedade tem a ver com a própria característica das comunidades e não é típica apenas do Rio de Janeiro:

— Isso tem a ver com o mundo da favela, que é o da vizinhança, do relacionamento, das crianças que brincam e vivem juntas sempre. Nelas, existe um trânsito de famílias muito diferente do que existe nos condomínios de classe média. Por isso, ninguém fica parado. Eu vi isso muito no Haiti, que é bem mais pobre do que o Rio.

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