Manchetes de jornal: quem atira ou quem morre?

Imagem retirada do site Justificando

A violência é uma constante nas manchetes dos jornais. São inúmeros os relatos todos os dias. Nesta coluna, já falamos sobre a maneira como essas violências nos são apresentadas pelos jornais. Este texto, portanto, pode não trazer uma ideia nova a você que já me acompanha por aqui. Mas este tema precisa ser explorado, para que o jornalismo ganhe – e nós, leitores, também.

Por Jana Viscardi, do Justificando 

Imagem retirada do site Justificando

Deixe-me dar a você um exemplo ocorrido recentemente: o Exército fazia uma operação na região da Vila Militar, na zona oeste do Rio de Janeiro e atiraram contra o carro de uma família. Foram mais de oitenta disparos, feitos diretamente contra este veículo, supostamente suspeito. Quem dirigia o veículo era Evaldo dos Santos Rosa que, atingido pelos tiros, morreu. A família se dirigia para um chá de bebê e teve seu passeio brutalmente interrompido. Duas versões diferentes foram apresentadas pelos representantes da ação militar, mas o que vemos nas manchetes dos jornais nos traz, muitas vezes, o mesmo enfoque: quem recebeu os tiros, não quem efetuou os disparos.

Num caso como este, no entanto, não há outra forma de descrever senão indicando quem disparou, algo como Exército atira em veículo e mata um de seus ocupantes. Não há aqui qualquer julgamento sobre o ocorrido, mas a simples descrição de um fato. No entanto, vários jornais de grande circulação optaram por não seguir essa lógica:

Imagem retirada do site Justificando

Observe que em todas essas manchetes, o foco está no homem que foi morto pelo Exército. Em circunstâncias como essa, antes de se ver uma notícia reverberar, é comum que as pessoas comecem a pensar no que é que esta pessoa que foi alvo dos tiros estava fazendo. Ela devia estar fazendo algo de errado. Se o leitor apenas der atenção à manchete e não ler a notícia, pode ficar apenas com essa imagem na cabeça, sem questionar mais profundamente o que pode ter acontecido – já que são tantos os casos de violência e tão corriqueiramente justificada pela ação de quem recebeu os tiros.

 

É aqui que a troca de “homem morre após disparos” para “exército atira e mata homem” faz toda a diferença; Essa simples descrição dá destaque a quem efetivamente precisa ser questionado na história: o Exército que, ao efetuar essa operação, falhou em proteger os moradores da região, ao atirar contra essa família.

As manchetes são um recorte da nossa realidade. Elas são um dos caminhos para que percebamos o que acontece no mundo. Por isso, é tão importante repensarmos a forma como os relatos de violência são apresentados todos os dias – para que você, eu, todos nós, lancemos nosso olhar para o absurdo da violência sem banalizá-la ou justificá-la, reconhecendo com maior clareza seus agentes nas diferentes situações em que ocorrem.

 

Jana Viscardi é doutora em Linguística pela UNICAMP, com passagem pela UniFreiburg, na Alemanha. Professora e palestrante, faz vídeos semanais sobre linguagem e comunicação (e otras cositas más) no canal do Youtube que leva seu nome.

 

-+=
Sair da versão mobile