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FONTEPor ANA PAULA LISBOA, do O Globo
A escritora e ativista Ana Paula Lisboa Foto: Ana Branco / Agência O Globo

Existe ainda em mim um lugar reservado para o inacreditável. No fundo eu sei que não deveria me surpreender, mas sigo boquiaberta com a falta de noção da Humanidade.

Não é tudo, não me surpreendo, por exemplo, com quem pede intervenção militar ou faz buzinaço em frente a hospital. Essas pessoas eu já conheço e, sinceramente, não esperava nada de muito diferente. Quem me surpreende são as outras, as que pregam o bem, o amor, a democracia, mas não descem de seus pedestais.

Eu fico mesmo ainda surpresa que mesmo quem se diz a última bolacha do pacote da desconstrução, em 2020, numa pandemia, ainda chama África de África. Assim, como se fosse um grande bloco preto homogêneo.

Ontem, por exemplo, eu estava assistindo à TV brasileira, como vocês sabem, eu vivo em Angola. No jornal da tarde, a âncora chamava ao vivo correspondentes em várias partes do mundo (todos brancos). Eles contavam sobre suas experiências de confinamento, as tretas políticas, o aumento de mortes em alguns países, mas também de esperança em países que começavam a se abrir. Ela foi dos Estados Unidos até a Nova Zelândia, passando pela América do Sul, Ásia e claro, Europa. Fiquei feliz em ver noticiada a Nova Zelândia, país que tem até o momento pouco mais de mil casos confirmados.

Confesso que meu coração se encheu de esperanças, palpitei ao pensar que veria algum correspondente, sei lá, pelo menos na África Sul, que tem mais de três mil casos. Mas aí a jornalista deu “boa tarde” e fim.

Então eu percebi que nestes meses de distanciamento social mundial, a única notícia realmente pertinente foi quando o médico francês disse que seria bom testar as vacinas em ÁFRICA e todo mundo ficou indignado. Ele depois se resumiu não a pedir desculpas, mas a dizer que nós entendemos errado o que ele disse.

Eu sei que vocês podem dizer que eu estou entendendo errado, que “eu tô por fora ou então que eu tô inventando”, mas excluir do boletim de notícias de uma pandemia mais de um bilhão de pessoas, não pode estar certo.

Eu fico com raiva de procurar e só encontrar referências a esse grande bloco preto homogêneo que não existe. Eu tô de saco cheio desse olhar colonizado e colonizador e, se é pra reconstruir algo no mundo, vamos começar por aí. Porque falta de teste, falta de estrutura, falta de respiradores, falta de leitos e falta de recursos a gente vê por aqui, mas vê por aí também.

Talvez ao invés de noticiar o tempo inteiro o que não tem, deveriam se concentrar em falar o que tem. Essas histórias bobas que são contadas sobre os europeus e que emocionam a todos. Em Angola estamos usando o tempo para aprender on-line línguas como o lingala e o kimbundo, outro dia o Agualusa escreveu que estava fazendo aulas de dança com uma professora angolana, e eu tenho um vizinho que canta todos os dias. Às vezes ele também discursa.

O que nos afasta de noticiar “África” de outras formas não é a falta de correspondentes, é a distância imagética da potência, é o olhar sempre em busca da escassez, que geralmente não olha o próprio rabo. É mais uma vez o pacto narcísico da branquitude (vão ler Cida Bento!), tão doentio que só consegue ver a si mesmo, mesmo numa pandemia.

Enfim, eu só queria contar que estamos bem por aqui, na medida do possível.

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